O ataque ao salário mínimo

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

O rentismo institucionalizado e o ataque ao salário mínimo

Edmilson Costa, é doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB.

Todas as classes dominantes são truculentas e reacionárias e, quando seu poder está em jogo, não hesitam utilizar todos os meios (repressão, golpes militares, sabotagem, ilegalidades) para atingir seus objetivos. No entanto, as classes dominantes brasileiras e, especialmente, o segmento que atua no sistema financeiro possuem uma singularidade que as torna mais autoritárias, reacionárias e entreguistas. Esses maganos têm vocação escravocrata porque descendem direta ou indiretamente da Casa Grande e foram viciados na superexploração e no desrespeito permanente aos trabalhadores e às trabalhadoras, no afastamento das classes populares das decisões econômicas e políticas, na especulação financeira e na repressão permanente ao movimento popular. Os mais de 300 anos de escravidão deixaram marcas profundas na burguesia brasileira.

Por isso não espanta a recente entrevista de um de seus representantes, Armínio Fraga, trineto de barões, um dos homens mais ricos do Brasil, ex-administrador de fundos financeiros de George Soros, ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da Gávea Investimentos, que administra fundos de mais de R$ 16 bilhões, restritos à ciranda financeira. Também representante típico do pensamento econômico neoliberal e dos rentistas, Fraga defendeu, em conferência realizada em 12 de abril, durante o colóquio Brazil Conference, ocorrido na Universidade de Harvard e no Massachusetts Institute of Technology (MIT), o congelamento do salário mínimo por seis anos para conter os gastos públicos. “A receita é: congela o salário mínimo e reduz os gastos tributários em 2% do PIB. Isso daria uma redução de gastos de 3% do PIB e o Brasil viraria o jogo”, diz candidamente o ex-presidente do Bacen.

Mas a sua receita não se circunscreve apenas ao salário mínimo. Ele está de olho em novas reformas do Estado após aquilo que ele define como boas reformas já realizadas, como a trabalhista e a previdenciária, pois acredita que o cenário fiscal brasileiro apresenta uma conjuntura insustentável. Nesse sentido, defende uma nova reforma da previdência, em função do envelhecimento da população, e argumenta que a soma das despesas com a folha de pagamento e previdência atingem atualmente 80% dos gastos governamentais e deveriam cair para 60%. Mas Fraga quer ir ainda mais adiante quando salienta que nos últimos 30/40 anos o gasto público primário passou de 25% para 33% do PIB, enquanto o investimento (exceto as estatais) diminuiu para 1% do PIB. “Temos que repensar a prioridade dos gastos. Quando a gente olha para o SUS, vemos um gasto de 4% do PIB. É um assunto que a gente tem que discutir na arena política”.

Em outras palavras, essa conferência de um representante típico do setor mais parasitário das classes dominantes brasileiras significa abertamente uma declaração de guerra aos trabalhadores e às trabalhadoras, pensionistas, beneficiários/as do INSS, do Bolsa Família, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e contra a grande maioria da população brasileira, que depende dos serviços públicos. Como o salário mínimo é referência para quase 60 milhões de pessoas, essa proposta de Fraga é de uma crueldade típica dos herdeiros de escravocratas, pois vai afetar diretamente os setores mais pobres da população e aumentar a miséria. Um alerta para os ingênuos: esta não é uma proposta técnica, que visa a estabilidade econômica e o desenvolvimento do país. Pelo contrário, é a classe dominante colocando sem cerimônia seu projeto para o Brasil.

Salário mínimo é mínimo demais

Instituído por Getúlio Vargas em 1940, com o objetivo de garantir uma remuneração básica para trabalhadores e trabalhadoras, como alimentação, moradia, educação e transporte, o salário mínimo era fixado regionalmente e só muito tempo depois foi unificado nacionalmente. No entanto, ao longo de sua trajetória o salário mínimo sofreu altos e baixos em relação ao seu valor real. Em muitos períodos ficou abaixo da inflação, em outros se posicionou acima, mas atualmente, mesmo com os reajustes acima do nível de preços, o salário mínimo brasileiro é um dos mais baixos da América Latina, menor por exemplo que no Paraguai, em Honduras, Bolívia, Uruguai, El Salvador, dentre outros países (Tabela 1). Isto significa que a grande maioria dos/as trabalhadores/as brasileiros/as ganha um salário muito baixo, especialmente porque o salário mínimo é referência para uma parcela muito grande de todos os salários.

Tabela 1

Salário Mínimo na América Latina (julho de 2024)

Posição País

Valor do SM

1 Costa Rica

U$ 686

2 Uruguai

U$ 554,70

3 Chile

U$ 540,77

4 Equador

U$ 460,00

5 México

U$ 421,63

6 Guatemala

U$ 421,58

7 Paraguai

U$ 370,74

8 El Salvador

U$ 365,00

9 Bolívia

U$ 362,15

10 Honduras

U$ 345,90

11 Panamá

U$ 341,00

12 Colômbia

U$ 327,16

13 Peru

U$ 275,61

14 Brasil

U$ 257,47

15 R. Dominicana

U$ 239,80

16 Argentina

U$ 162,45

17 Venezuela

U$ 3,57*

Fonte: Blomberg
* SM sem indenizações ou gratificações governamentais

Para termos uma ideia mais abrangente do quanto é baixo o salário mínimo brasileiro, é fundamental observarmos o estudo do Dieese, que relaciona o salário mínimo e o custo da cesta básica, no qual considera que essa remuneração deve ser suficiente para suprir as despesas de um/a trabalhador/a e sua família. A pesquisa da cesta básica acompanha mensalmente a evolução dos preços de 13 produtos da alimentação do/a trabalhador/a. Os bens e quantidades são diferenciados por região, de acordo com os hábitos alimentares locais. Por esses cálculos, o Dieese estima que um/a trabalhador/a deveria ganhar em março de 2025 um salário mínimo de R$ 7.398,94 para sustentar uma família de quatro pessoas. Portanto, um valor muito maior que o salário pago atualmente para grande parcela dos trabalhadores e trabalhadoras, aposentados/as, pensionistas e beneficiários/as dos programas sociais do governo.

Tabela 2

Período

SM nominal

SM Necessário

2025
Março

1.518,00

7.398,94

Fevereiro

1.518,00

7.229,32

Janeiro

1.518,00

7.156,15

2024
Dezembro

1.412,00

7.067,68

Novembro

1.412,00

6.959,31

Outubro

1.412,00

6.769,87

Setembro

1.402,00

6.657,55

Agosto

1.402,00

6.606,13

Julho

1.402,00

6.802,88

Junho

1.402,00

6.995,44

Maio

1.402,00

6.946,37

Abril

1.402,00

6.912,69

Março

1.402,00

6.832,20

Fevereiro

1.402,00

6.996,36

Janeiro

1.402,00

6.723,41

Fonte: Dieese

O salário mínimo no Brasil não define apenas a remuneração dos trabalhadores e das trabalhadoras do mercado formal, mas serve como referência para milhões de pessoas, entre aposentados/as, pensionistas e integrantes dos programas sociais. A dimensão e abrangência do salário mínimo podem ser medidas pelos seguintes dados: em dezembro de 2024 o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) pagou benefícios assistenciais e previdenciários para 40,7 milhões de pessoas. Desse total, 28,5 milhões recebem um salário mínimo. Outros 12,2 milhões ganham acima do piso. Desse conjunto, 34,4 milhões são previdenciários/as e 6,3 milhões recebem benefícios assistenciais. O valor médio das aposentadorias urbanas é de R$ 1.863,38 e das rurais 1.415,06. Como as aposentadorias não são capazes de sustentar aposentados/as, uma grande parcela é obrigada a buscar trabalho para complementar a renda.

Mitos e falácias neoliberais

A vida tem provado que os mitos e falácias das narrativas neoliberais, totalmente desmoralizadas pela realidade, teimam em retornar ao debate, mesmo não tendo dado certo no passado. Os chavões surrados de que, se o governo não fizer o ajuste fiscal, não cortar os gastos, não parar de reajustar o salário mínimo acima da inflação o país vai quebrar, a Previdência vai ficar insustentável e a inflação se tornará descontrolada, não passam de velhos espantalhos que só assustam os desavisados. No período entre 2016, com o golpe contra Dilma, até o fim do governo Bolsonaro os salários não foram reajustados acima da inflação, mas a situação fiscal não foi resolvida. Pelo contrário, houve um agravamento das contas públicas. Ou seja, o congelamento dos salários não promoveu o equilíbrio propagandeado, nem ajustou as contas públicas, apenas ampliou as desigualdades sociais e encheu os bolsos dos bilionários.

Como pertencente ao topo da pirâmide social, Fraga parece não dar muita bola para a realidade. O importante é colocar novamente suas falácias no debate público porque sabe que a mídia corporativa amiga vai repercutir como se tratasse de uma posição neutra e técnica. Mas não tem nada de técnico ou neutro: trata-se de um discurso ideológico profundamente marcado por seus interesses de classe, que se inscreve na lógica da austeridade seletiva, na qual o povo sempre pagará a conta: o Estado vai cortar os direitos sociais e nunca os privilégios do capital. Ou seja, enquanto prejudica os mais pobres da sociedade, mantém um dos juros mais altos do mundo para engordar o bolso dos rentistas, não taxa os lucros e dividendos dos milionários, mantém os benefícios fiscais para os grandes grupos econômicos e transfere renda via operações compromissadas para o sistema financeiro.

Do ponto de vista macroeconômico, as medidas propostas por Fraga implicam numa verdadeira conspiração contra a economia do país, pois o congelamento do salário mínimo por seis anos vai impactar negativamente no poder de compra de milhões de brasileiros e brasileiras, justamente aqueles/as que gastam a maior parte de seus recursos com alimentos. Esse processo terá um efeito multiplicador também negativo na atividade econômica, afetando vários setores, como a indústria de bens de consumo, os serviços, o comércio varejista, resultando numa desaceleração da economia, aumento do desemprego, perda de renda dos trabalhadores e das trabalhadoras, queda na arrecadação tributária e aumento da miséria entre a população.

Essa proposta de Fraga também se insere na tradição tecnocrática e elitista das classes dominantes brasileiras, que buscam naturalizar a pobreza, culpabilizá-la pelos problemas do país e legitimar a retirada de direitos, como se isso fosse apenas uma racionalidade econômica. Mas não tem nada de racional. Pode-se mesmo dizer que é a construção de uma espécie de programa da miséria, um ajuste que só aumenta a pobreza e privilegia os ricos e poderosos, um projeto de empobrecimento em massa da população. Aliás, a proposta do rentista da Gávea Investimentos revela uma dimensão mais profunda: é não só excludente por natureza, mas também busca ampliar a obscena concentração de renda no Brasil, ao mesmo tempo em que desumaniza a maioria da população brasileira ao transformá-la apenas numa variável fiscal, tendo o Estado como gestor da desigualdade.

Em termos de reflexão, é importante salientar que essa proposta de Armínio Fraga está inserida ainda na tradição truculenta, autoritária, reacionária e gananciosa das classes dominantes brasileiras, cujo imaginário se assemelha muito aos velhos senhores de engenho dos tempos coloniais, apesar dos modos atualmente mais refinados. Viciados na superexploração e na impunidade, esse pessoal tem um enorme desprezo pelas classes populares e busca de todas as formas perpetuar o seu domínio, se apossar dos recursos do fundo público e das riquezas produzida por todos, ao mesmo tempo em que são servis ao capital internacional. Dessa forma, as forças que pretendem realizar as transformações sociais e econômicas do país não podem ter nenhuma ilusão nem realizar alianças com essa burguesia truculenta e entreguista.