As manifestações populares e o novo imposto de renda

Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil

Edmilson Costa*

As manifestações de setembro continuam gerando efeitos políticos na conjuntura brasileira, mais uma vez evidenciando que a força das ruas desempenha um papel central nos rumos do país. Na quarta-feira passada a Câmara dos Deputados, que tinha aprovado na semana anterior a PEC da bandidagem e a urgência do projeto de anistia para Bolsonaro, fez um giro de 180 graus e aprovou por unanimidade o projeto que isenta do pagamento do imposto de renda as pessoas que ganham até R$ 5 mil por mês (R$ 60 mil por ano) e reduz o desconto para aqueles que percebem até R$ 7.350,00 a partir de 2026, projeto que estava parado na Câmara há vários meses. Para quem não acreditava que a pressão popular seria capaz de reorientar as decisões institucionais no Parlamento, essa votação dos deputados é o exemplo mais claro de que a mobilização coletiva é o instrumento determinante para se alcançar mudanças e conquistar vitórias. Aquele Congresso, que legislava em causa própria, aprovava medidas ultrajantes e antipopulares e zombava da população, como num passe de mágica, encontrou a unanimidade para aprovar um projeto que, mesmo ainda tímido, começa uma trajetória de justiça tributária, que deve se aprofundar no futuro.

É importante destacar que a unanimidade não constava nos cálculos de nenhum analista da crise brasileira. Os mais otimistas previam a aprovação, mas não por consenso. No entanto, ninguém previa o “milagre” da unanimidade, uma vez que a extrema-direita e vários deputados do Centrão vinham articulando chantagens explícitas: condicionar a aprovação do imposto de renda à anistia a Bolsonaro; outros afirmavam que só aprovariam a medida se houvesse o compromisso com cortes na saúde e educação e muitos propuseram abertamente introduzir emendas que blindavam os privilégios dos mais ricos. Todos esses movimentos buscavam apenas concessões do governo porque, em termos práticos, a oposição já tinha percebido que, após as manifestações, o custo político da rejeição a uma medida desse porte seria muito alto, mesmo que essa medida fosse beneficiar politicamente o governo. Além disso, os eventos de setembro continuam bem vivos no imaginário político e uma eventual rejeição a um projeto que iria beneficiar as pessoas de menor renda poderia reacender a chama das manifestações populares, que é o terror de todas as forças conservadores e mesmo dos setores conciliadores.

A direita e a extrema-direita sabem que o povo, quando decide se mobilizar, esse gesto escapa ao controle das cúpulas institucionais e coloca em risco não apenas seus privilégios, mas também a própria governabilidade. Por isso, mesmo a contragosto, foram obrigados a ceder. Uma lição a se tirar desse processo é o fato de que, se as manifestações conseguiram provocar essa mudança, é porque tocaram no ponto de maior fragilidade do bloco conservador, que é o medo do povo mobilizado nas ruas. A nossa história confirma que nenhuma conquista dos trabalhadores foi realizada sem luta. A diferença agora reside no fato de que as mobilizações surgem em meio a uma conjuntura de crise econômica prolongada, baixo crescimento econômico, avanço das políticas neoliberais e das forças de extrema-direita no Brasil e no exterior, além de um movimento sindical e popular distanciado das lutas, o que torna a mobilização bem mais difícil, mas também muito mais valiosa as conquistas dos trabalhadores. Portanto, colocar as massas nas ruas é o principal ensinamento que deverá orientar a jornada dos trabalhadores, das trabalhadoras e da juventude no próximo período.

O que foi definido na Câmara

Em termos concretos, o projeto aprovado na Câmara estabelece uma mudança importante no imposto de renda. Pela nova regra, todos os contribuintes que ganham até R$ 5 mil por mês (60 mil por ano) ficarão isentos de pagamento. Além disso, há ainda uma redução escalonada na carga tributária para todos aqueles que recebem até R$ 7.350,00, o que amplia o alcance do projeto aprovado na Câmara. Para termos uma ideia objetiva do significado da medida, vejamos alguns exemplos práticos: os contribuintes que ganham até R$ 5 mil pagam mensalmente R$ 312,89 ou R$ 4.067,00 anualmente, quantia que ficará à disposição dos trabalhadores e das trabalhadoras a partir de 2026. Já os que recebem R$ 6.200,00 terão um ganho anual de 1.990,57 e os que ganham R$ 7.200,00 deixarão de pagar anualmente R$ 259,69 (Tabela 1).

Tabela 1


          Ganhos com as mudanças no Imposto de Renda

Renda Mensal Ganhos mensais Ganho anual  
5.000,00 312,89 4.067,52  
5.400,00 259,64 3.375,28  
5.800,00 206,38 2,682,93  
6.200,00 153,12 1.990,57  
6.600,00   99,86 1.298,22  
7.000,00   46,60     605,86  
7.200,00    19,98      259,69  
7.350,00    0      0  
Fonte: G1 – Confirp Contabilidade

m termos sociais, isso significa que milhões de trabalhadores terão alívio em sua renda mensal, cujos recursos agora estarão disponíveis para gastarem em alimentação, transporte, saúde, educação ou pequenas melhorias no padrão de vida, o que, consequentemente, vai gerar um efeito multiplicador na economia. Em termos quantitativos, cerca de 26,6 milhões de trabalhadores e trabalhadoras deixarão de pagar imposto de renda no Brasil, assim distribuídos: 15,2 milhões já estavam isentos pela legislação anterior; outros dois milhões haviam se beneficiado pela elevação da faixa de isenção para dois salários mínimos; e agora, com a medida da Câmara, 9,4 milhões passam a integrar a categoria de isentos.

De acordo com os cálculos do Ministério da Fazenda, a isenção do imposto aprovada pela Câmara vai custar para os cofres públicos cerca de R$ 25,8 bilhões por ano. Para compensar essa desoneração, o governo adotou uma medida que inicia o rompimento com a lógica regressiva do sistema tributário brasileiro, ao cobrar uma alíquota progressiva sobre rendimentos superiores a R$ 600 mil anuais. Essa alíquota seria escalonada, começando com 1% até chegar a 10% para quem ganha acima de R$ 1,2 milhão anual. Para entender: a alíquota é o percentual dos ganhos que concretamente é descontada pelo imposto de renda. Vejamos alguns exemplos: se uma pessoa ganhou R$ 200 mil em um ano e pagou um total de R$ 20 mil de imposto de renda no mesmo período, sua alíquota foi de 10%. Um outro contribuinte que ganhou R$ 6 milhões por ano e pagou de imposto R$ 300 mil anualmente, teve uma alíquota de 5%. Ou seja, mesmo que o contribuinte que ganhou R$ 6 milhões tenha pago à Receita um valor absoluto maior que a pessoa que recebeu R$ 200 mil anuais, o contribuinte de maior renda pagou um valor proporcionalmente bem menor. Ou seja, o impacto real sobre a renda dos mais ricos é menor que os efeitos sobre aqueles de menor ganho.

O alívio concedido às pessoas de renda mais baixa deve ser compreendido como uma conquista parcial, fruto da pressão popular, mas não uma solução definitiva para resolver a questão tributária, porque o Brasil mantém uma estrutura de cobrança das mais regressivas do mundo industrializado. Aqui os milionários e bilionários pagam proporcionalmente menos impostos que a maioria da população, especialmente quando comparamos com as camadas médias urbanas assalariadas. O próximo desafio será transformar esse passo inicial em uma janela de oportunidade para conquistar uma reforma tributária mais abrangente, baseada nos interesses populares, capaz de quebrar a espinha dorsal da regressividade do sistema. Isso implica consequentemente enfrentar interesses poderosos dos grandes grupos empresariais, do sistema financeiro e dos sonegadores em geral que, ao longo dos anos, seguem blindados por legislações antipopulares, voltadas a privilegiar os interesses do grande capital e drenar recursos para grandes capitalistas, acionistas nacionais e estrangeiros, através da subtributação.

A elevada concentração da renda no Brasil

Um dos efeitos mais perversos do sistema tributário brasileiro é a brutal concentração de renda e patrimônio no país. Estudo sobre a tributação da renda entre 2007 e 2023, realizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais (Sindifisco) e publicado em vários órgãos de imprensa, indica que a tributação sobre a renda dos mais ricos nesse período caiu cerca de 40%, especialmente em consequência da isenção dos lucros e dividendos distribuídos aos acionistas, que deixaram de ser tributados desde 1996 no governo Fernando Henrique. Essa legislação, que privilegia milionários e bilionários, é um dos principais fatores da regressividade tributária e consolidou-se como um verdadeiro presente aos rentistas brasileiros, colocando o Brasil na lista dos raros países do mundo que não tributa dividendos. Outro elemento da regressividade é o congelamento da tabela do imposto de renda. Como os salários costumam ser reajustados anualmente, a falta de atualização da tabela faz com que os trabalhadores e as trabalhadoras sejam empurrados/as para faixas de maior renda, situando as pessoas de menor renda na categoria de pagadores do imposto, além de aumentar as contribuições para faixas renda média, especialmente dos setores médios urbanos.

Os dados do Sindifisco revelam de maneira cristalina a função concentradora do imposto de renda: em 2023, contribuintes que receberam acima de 320 salários mínimos por mês (equivalente a R$ 5.068 milhões anuais) pagaram em média alíquotas correspondentes a 4,34% de imposto. Já as pessoas que se situavam na faixa entre 5 e 30 salários mínimos, com rendimentos anuais entre R$ 79,2 mil e R$ 475,2 mil, foram tributados em 9,85%, mais que o dobro daquilo cobrado aos mais ricos, mais uma vez demonstrando que, quanto mais se ganha, proporcionalmente se paga menos imposto. Ainda segundo os dados do Sindifisco, a explicação para essa distorção está no fato de que a maior parte da renda dos milionários provém dos dividendos, que é a parte dos lucros empresariais distribuídos aos acionistas. Os números divulgados pelo Sindifisco não são apenas estatísticas técnicas: trata-se da radiografia de um sistema de classe que transforma o imposto de renda numa das grandes ferramentas da concentração de renda no Brasil. Em outras palavras, a combinação de isenção de dividendos, desonerações seletivas, congelamento da tabela do imposto de renda, além da sonegação legalizada, como os chamados planejamentos tributários, compõe uma matriz tributária feita sob medida para privilegiar os ricos e poderosos do país.

Estudo realizado pelo economista Sergio Gobetti, baseado em dados provenientes das declarações do imposto de renda divulgados pela Receita Federal, indica que o fluxo de lucros e dividendos cresceu em 2023 atingindo a marca simbólica de R$ 1 trilhão, incluindo nesse total os juros sobre capital próprio. “Desse trilhão nada menos que 47% foram apropriados por cerca de 160 mil pessoas que fazem parte do 0,1% mais ricos do país, estrato que acabou concentrando 12,5% da renda nacional disponível das famílias brasileiras em 2023 … Além do aumento significativo do volume de dividendos distribuídos, os dados divulgados pela RFB (Receita Federal Brasileira) mostram um crescimento extraordinariamente alto dos rendimentos das aplicações financeiras”. Para se ter uma ideia dos ganhos especulativos, basta dizer que em 2023 esses recebimentos com aplicações financeiras alcançaram R$ 399,7 bilhões. Tal mecânica explica a brutal concentração de renda no Brasil. “A renda do 1% mais rico, que normalmente oscilava entre 20% e 21% da RNBD (Renda Nacional Bruta Disponível) na década passada cresceu para 25,2% em 2021, caiu para 24% em 2022 e voltou a subir para 24,4% em 2023 … Da mesma forma, a fatia concentrada pelo 0,1% mais rico passou de 9,1% em 2017 para 12,5 em 2023”.

Em outro estudo, o mesmo economista analisou a evolução da renda dos mais ricos no Brasil entre os anos 2017 e 2022 e trouxe à tona um conjunto de dados que confirmam a impressionante concentração de renda e o privilégio dos mais ricos. Segundo o levantamento, mesmo em período de contração econômica, como na pandemia, os mais ricos não apenas mantiveram como ampliaram seus ganhos num ritmo muito superior ao restante da sociedade. O dado mais escandaloso refere-se ao estrato correspondente ao 0,1% mais rico, que no período aumentou seus ganhos em 87%. A parcela correspondente a 1% mais rica também apresentou resultado notável: seus ganhos cresceram 67% entre 2017 e 2023. Já os setores que se posicionam nos 5% de maiores ganhos ampliaram sua renda em 51%. Em contrapartida, os restantes 95% tiveram aumento médio de apenas 33% no período analisado (Tabela 2). Isso significa que, enquanto a maioria da sociedade mal se recuperava da pandemia, os mais ricos multiplicavam seus rendimentos. Esses dados demonstram que a concentração de renda não é apenas uma herança histórica, mas resultado de escolhas políticas desenhadas para privilegiar as classes dominantes brasileiras.

  Tabela 2

  Evolução da renda dos mais ricos no Brasil:
  Centil Item 2017 2022 Var(%)
  Top 0,1% Renda (R$ milhões) 431.070 813.735  
  Número Pessoas 152.288 153.666  
  % População adulta 0,102% 0,100%  
  Renda média (mensal) 235.885 441.290 87%
           
  Top 1% Renda (R$ milhões) 961.224 1.618.599  
  Número Pessoas 1.522.882 1.536.670  
  % População adulta 1,017% 0,996%  
  Renda média (mensal) 52.599 87.776 67%
           
  Top 5% Renda (R$ milhões) 1.715.713 2.719.899  
  Número Pessoas 7.309.833 7.683.352  
  % População adulta 4,88% 4,98%  
  Renda média (mensal) 19.559 29.500 51%
           
  Demais 95% Renda (R$ milhões) 2.988.518 4.103.959  
  Número Pessoas 142.493.304 146.662.846  
  % População adulta 95,12% 95,02%  
  Renda média (mensal) 1.748 2.332 33%
           
  Total Renda (R$ milhões) 4.704.231 6.823.858  
  Número Pessoas 149.803.137 154.346.198  
  % População adulta 100% 100%  
  Renda média (mensal) 2.617 3.684 41%
           
  Centil   2017 2022 Diferença
  Top 0,1% Renda dos mais ricos 9,2% 11,9% 2,8%
  Top 1,0% em proporção da 20,4% 23,7% 3,3%
  Top 5% renda total 36,5% 39,9% 3,4%

Embora consideradas positivas, as mudanças no novo imposto de renda não resolvem o problema estrutural da regressividade do sistema tributário brasileiro. O país continua mantendo uma matriz fiscal altamente dependente dos impostos indiretos sobre o consumo, o que penaliza os mais pobres, enquanto preserva os ganhos do capital, heranças milionárias, lucros e dividendos. A partir dos dados que analisamos pode-se dizer que as classes dominantes brasileiras construíram um sistema tributário que concentra renda no topo e historicamente procura bloquear todas as tentativas de avançar para uma reforma tributária efetivamente progressiva. Esse processo se intensificou com a implantação das políticas neoliberais a partir do início dos anos 90 e vem se aprofundando até os nossos dias, sob o comando da ditadura das finanças. Como as manifestações de setembro demonstraram, essa reforma não acontecerá por dádiva dos setores privilegiados pelo aparato institucional, mas somente pela pressão organizada das massas, com força suficiente para romper o círculo vicioso da pobreza das grandes massas e apontar no sentido das profundas transformações sociais. Esta será a batalha central que os trabalhadores, as trabalhadoras e a juventude deverão realizar no próximo período.

*Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É Secretário Geral do PCB.