PCB e o trabalho clandestino nas fábricas (1)
Imagem: Lucio Bellentani fichado pelo DOPS em 1972 (Foto: Reprodução)
Edmilson Costa – é doutor em economia pela Unicamp e Secretário Geral do PCB.
Esse trabalho de pesquisa está dividido em duas partes: na primeira, abordamos o esforço teórico dos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) com o objetivo de elaborar uma linha política para a construção do Partido nas grandes empresas (tarefa histórica perseguida pelo PCB ao longo de décadas), justamente no momento em que se desenvolvia a indústria automobilística e metalúrgica no ABC paulista. Na segunda parte, analisaremos em detalhes como o Partido conseguiu, pacientemente, realizar um trabalho de base cujo resultado foi a estruturação de dezenas de células clandestinas nas principais empresas da região, trabalho que começou a ser destruído pela repressão a partir de 1972, com a prisão dos principais dirigentes da Comissão de Fábrica da Volks, a maior da região, e se completou com a grande repressão contra o PCB nos anos 1974-1976.
Durante a pesquisa consultamos todos os números do jornal clandestino do PCB, Voz Operária, que circulou mensalmente em plena ditadura entre os anos de 1965 até janeiro de 1976, e também recolhemos o depoimento do principal dirigente e organizador dos Comitês de Fábricas no principal polo industrial do país naquele período: o camarada ferramenteiro Lucio Bellentani. Em janeiro de 1976, com a ajuda de um traidor, a polícia política invadiu o complexo gráfico do Partido no Rio de Janeiro, prendeu os trabalhadores que lá estavam, bem como os dirigentes partidários ligados à Voz Operária, muitos dos quais continuam com os corpos desaparecidos até hoje. Com a queda, o jornal só voltou a ser publicado novamente um ano depois no exterior.
A avaliarmos os números do jornal Voz Operária, poderemos ver claramente que, mesmo nos momentos mais dramáticos da ditadura, o PCB sempre esteve na resistência, tanto lutando para organizar pacientemente os trabalhadores e as trabalhadoras no interior das fábricas, quanto nos sindicatos, bem como procurando, através do jornal, divulgar as lutas contra a ditadura, denunciar as torturas e buscar influir na grande política e na resistência ao regime. Os comunistas pagaram um elevado preço pela ousadia de enfrentar a ditadura, mas quem pesquisar esse período poderá constatar o arriscado trabalho de militantes e dirigentes que deram o melhor de suas energias, inclusive a própria vida, para a organização do proletariado, pelas liberdades democráticas e emancipação da classe trabalhadora na perspectiva da sociedade socialista.
As próximas gerações, quando tomarem conhecimento do que foi realizado clandestinamente naquele período, deverão se mirar no exemplo desses abnegados militantes da revolução e honrar o legado histórico do PCB. Se este trabalho contribuir para tornar público esse período que a história não contou, ficarei grato.
Autocrítica e apontamentos para a organização nas empresas
O golpe militar significou a maior derrota do movimento operário no Brasil e de sua principal vanguarda, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Um revés tão profundo que somente em 1965 o Comitê Central teve condições de se reunir, avaliar autocriticamente o significado do golpe e iniciar um processo de resistência ao novo regime. Na Declaração de Maio de 1965, o Partido avaliou as debilidades que o levaram à derrota, realizou uma autocrítica por ter se colocado a reboque de um setor da burguesia nacional, e esboçou as primeiras orientações para o movimento operário e popular nas novas condições. Nesse documento, destacou que a política econômica-financeira da ditadura estava sendo ditada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), denunciou que o novo regime destruiu as liberdades públicas, colocou na ilegalidade as organizações sindicais nacionais, como o CGT e as Ligas Camponesas, prendeu centenas de dirigentes sindicais, destituiu inúmeras direções sindicais, impôs interventores nas organizações mais destacadas, acabou com o direito de greve e instituiu uma legislação salarial predatória ao longo de 21 anos.
Numa conjuntura dessa ordem o Comitê Central avaliou que o objetivo imediato era isolar e derrotar a ditadura e conquistar um governo amplamente representativo das forças antiditatoriais, ao mesmo tempo em que conclamava as massas a desrespeitar a legislação ditatorial, especialmente no que se refere aos direitos de reunião, manifestação e de greve, lutar pela liberdade e autonomia dos sindicatos e participar de forma ativa e unitária das eleições sindicais. O documento ressalta ainda a importância de se organizar os trabalhadores do campo contra o latifúndio e pela reforma agrária, com ênfase na aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural, garantia da posse da terra, regulamentação e baixas taxas de arrendamento. “É intensificando nossa atividade entre as massas, nas fábricas, nas fazendas, escolas e concentrações populares que poderemos forjar a ampla frente única contra a ditadura … Devemos dedicar os maiores esforços à recuperação das organizações de base e à criação de novas, principalmente nas empresas, fazendas e escolas, e seu fortalecimento político, político e ideológico, capacitando-as a cumprirem suas pesadas tarefas”.
Em 1966, já refeito do trauma do golpe militar, o Partido elaborou uma reflexão mais aprofundada sobre a conjuntura e os erros que levaram à derrota do movimento popular e, especialmente, do próprio Partido Comunista Brasileiro (PCB), na época a maior organização da esquerda no país, bem como iniciou a construção de uma nova estratégia de construção do PCB entre os trabalhadores e as trabalhadoras, tendo como centro as grandes empresas. O documento de maio de 1966, assinado por Carlos Oliveira, nome de guerra de um membro do Comitê Central, além da autocrítica mais completa sobre as causas da derrota em 1964, enfatiza a necessidade de uma nova estratégia de construção do Partido no meio do proletariado. Oliveira argumenta que, antes do golpe, apesar das recomendações partidárias, os responsáveis pelo trabalho junto à classe operária davam mais atenção ao trabalho de cúpula do que à construção nas bases e nos locais de trabalho.
Em uma dura autocrítica, o documento assinala: “A atividade nas bases, isto é, nos locais de trabalho, nas empresas, foi subestimada e quase não era realizada. E quando o era representava apenas um elemento auxiliar da atividade das cúpulas sindicais. Com o golpe, as lideranças sindicais foram ameaçadas, demitidas, presas, etc., e os sindicatos invadidos, depredados e entregues a interventores da escolha e confiança da ditadura”. Continuando a autocrítica, o documento indica que as articulações daquela época não era mesmo um movimento operário, mas um movimento reformista, economicista, cupulista, sem vínculo efetivo com as bases: “A atividade do Partido junto aos trabalhadores tinha um caráter predominantemente sindicalista, reformista, não revolucionário. Na prática, ou no fundamental, éramos simples força auxiliar das cúpulas sindicais e dos sindicatos”.
A declaração destaca ainda que, mesmo com experiência dolorosa do passado, muitos ainda resistem à autocrítica porque falta a compreensão de que não se deve confundir movimento operário com atividade sindical ou movimento sindical, afinal o trabalho sindical do Partido é apenas um elemento da atividade junto aos trabalhadores. Por isso, o documento ressalta que é necessário mudar essa visão distorcida e levar a atividade do Partido para dentro das empresas, que é o centro da resistência operária.
Para o articulista da Voz Operária, isso não significava de forma alguma deixar de lado ou abandonar o trabalho junto aos sindicatos e às lideranças das cúpulas operárias, especialmente levando em conta a conjuntura do país. No entanto, argumentava que o trabalho junto aos sindicatos deveria ser melhorado, aperfeiçoado e intensificado, mas seria um erro confundir a atividade puramente sindical com o movimento operário. Ressalta ainda o artigo que, nas condições em que o país se encontra, qualquer movimento reivindicatório de caráter econômico choca-se com a política da ditadura, muito embora isso ainda não signifique que a classe operária consiga espontaneamente adquirir consciência da relação entre suas condições de vida e a ditadura. Por isso, os comunistas devem levar essa compreensão à classe operária.
A justificativa do autor tem um fundo ideológico muito importante e parece que artigo buscava intervir na disputa interna ou demover resistências à nova orientação que ainda existia naquele período, possivelmente em função do hábito do processo anterior. “Voltando a nossa atividade para a empresa, centro de gravidade do movimento operário, não o fazemos como sindicalistas, mas como revolucionários. Não o fazemos apenas para mobilizar os trabalhadores em função dos sindicatos e das lutas por aumentos salariais e outras reivindicações econômicas. Mais do que isso, o fazemos tendo em vista esclarecer, educar e organizar a classe operária como força de vanguarda na luta pela renovação da sociedade brasileira. Limitar-se a uma atividade puramente ou eminentemente sindical, descer ao nível de compreensão das massas trabalhadoras e lá permanecer, circunscrever a nossa atividade a organizar a luta por reivindicações econômicas, é cair no reformismo sem consequência (inconsequente, EC). Como partido revolucionário, nossa atividade não deve e não pode ficar presa aos estreitos limites do sindicalismo. Deve e precisa ir além.”
Para Oliveira, essa compreensão é fundamental porque a classe operária deve ser a força aglutinadora da luta de todas as forças sociais contra a ditadura: “A grande contribuição que a classe operária pode e deve dar hoje para a derrota da ditadura e sua substituição por um governo representativo das forças democráticas e antiditatoriais é unir-se e organizar-se em seus locais de trabalho e partir para as manifestações de massa cada vez mais vigorosas contra a ditadura, em defesa das liberdades democráticas, assumindo assim a vanguarda da luta de todo o povo pela redemocratização do país”.
Em novembro de 1966, a Voz Operária voltava novamente ao assunto da atividade de organização dos trabalhadores nas empresas, ao relembrar que a ditadura estava buscando transformar os sindicatos em entidades apenas assistencialistas e que era necessário aliar e combinar a atividade sindical com o trabalho de construção no interior das fábricas: “A atividade dos comunistas deve dirigir-se no sentido de organizar e desenvolver a unidade de ação da classe operária na luta pelos seus interesses econômicos e políticos imediatos e contra a ditadura. Corrigindo erros do passado, quando o peso de nossas atividades recaia no trabalho de cúpula, devemos orientar fundamentalmente nosso trabalho para as empresas … Ao mesmo tempo, os comunistas devem intensificar suas atividades nas entidades sindicais, fazendo uma justa combinação entre o trabalho legal e o ilegal, compreendendo que, por mais difícil que seja a atividade nos sindicatos, jamais poderemos aceitar a tese de abandoná-los, a pretexto de que nas atuais condições (os sindicatos) já não desempenham nenhum papel”.
Construir o PCB nas empresas parecia ser quase uma obsessão dos dirigentes do Partido naquela época, possivelmente porque tinham compreendido a profundidade da derrota, e estavam seguros de que era fundamental mudar o rumo da política de organização do Partido entre o proletariado, muito embora ainda não existisse um plano concreto para viabilizar essa nova orientação. Pelos depoimentos que recolhemos nessa pesquisa, o PCB conseguiu preservar células orgânicas em várias empresas, apesar da brutal perseguição do regime. Lucio Bellentani, que posteriormente seria a principal liderança desse processo de construção do Partido nas grandes empresas, afirma que entrou na Volks em 20 de setembro de 1964 como ferramenteiro e lá já encontrou militantes do PCB, quando então decidiram construir uma organização de base na empresa, o que se consolidou em 1965.
A partir de então esse trabalho seguiu de maneira articulada e clandestina, chegando a constituir células de base em praticamente todas as seções de trabalho da empresa. Provavelmente, o PCB tinha células operárias em outras regiões, mas decidimos concentrar nossa pesquisa na região do ABC, tanto por esta ter se tornado o polo mais industrializado do país como também porque foi no ABC que o Partido concentrou seu trabalho piloto, visando desenvolvê-lo posteriormente para outras cidades.
Às vésperas do VI Congresso, realizado em dezembro de 1967, a Voz Operária voltou novamente a abordar a necessidade de construção do PCB nas grandes empresas em um documento de novembro de 1967, intitulado “Por que e como devemos construir o Partido no seio do proletariado”, onde já abordava de maneira mais sistemática, com elementos táticos, ideológicos e estratégicos, as proposições seriam melhor elaboradas no VI Congresso. “O Partido só pode desempenhar um papel de vanguarda, isto é, de orientador e dirigente revolucionário das massas, se tiver as suas principais bases estruturadas e em ação no seio do proletariado, em suas grandes concentrações empresariais. Esta constitui uma das razões porque devemos construir o Partido no seio da classe operária … Liderando parcelas da classe operária em qualquer local de trabalho ou de vivência das massas, o Partido tem condições adequadas para a função de dirigente das grandes massas”.
Para executar essa tarefa, os dirigentes do PCB recomendavam um trabalho de longo prazo, articulado entre as várias instâncias de direção, com deslocamento de quadros, estrutura clandestina de organização, junção do trabalho legal e ilegal, com paciência e sem precipitações para não alertar o inimigo sobre o trabalho que seria desenvolvido. Após indicar que um elemento central para o êxito desse trabalho é uma justa linha política na qual se conceba a revolução como um fenômeno de massas e não como ocorre com a política foquista, mediante à qual se privilegia a ação de pequenos grupos, isolados das massas, que se imaginam heróis da classe operária, o documento esclarece:
“O trabalho revolucionário para se erigir o Partido no seio do proletariado urbano e rural tem que ser feito o mais sigilosamente possível, pois é a raiz da revolução que crava no próprio sustentáculo do inimigo de classe, as empresas capitalistas. Este (trabalho, EC) tanto pode ser feito de dentro como de fora para dentro, mobilizando quadros, organizações e órgãos dirigentes e todo o seu aparelho de propaganda, de material e de ação para este objetivo”. Para os dirigentes daquela época a tarefa deveria ser conduzida a partir da realidade concreta dos trabalhadores e não da pressa pequeno-burguesa, que costuma queimar etapas e levar a divisão à classe operária.
O trabalho de construção de uma organização revolucionária no interior da cidadela do inimigo deve ser encaminhada com uma linha política clara, planificação, controle, distribuição de tarefas e engajamento do partido nessa tarefa: “Um outro instrumento para a construção do Partido entre o proletariado é a clareza de objetivos nesse sentido, no âmbito nacional, estadual, municipal, distrital e local. A dinâmica da luta de classes exige um plano e controle sistemático de sua execução, considerando os inimigos que o proletariado enfrenta e que desejam sua divisão e destruição … Sem um plano multifacético e um controle sistemático, é muito difícil, e talvez impossível, construir o Partido nas empresas. Essa tarefa do mais alto sentido revolucionário não pode ser considerada como sendo de algumas pessoas, de uma frente do Partido ou de um organismo. É um objetivo essencial, permanente e integral, portanto, de todo o Partido, de todos os organismos e órgãos dirigentes do Partido. Somente um trabalho coordenado global dos militantes pode levar a um bom êxito esse empreendimento.”
O VI Congresso e a tarefa histórica
O VI Congresso do PCB marcou uma virada histórica tanto na linha política em relação à ditadura, quanto na área sindical e, especialmente, em relação à construção do Partido nas grandes empresas. Naquele congresso elaborou-se uma resolução que caracteriza de maneira mais precisa a realidade brasileira quanto às questões socioeconômicas, particularmente em relação à composição industrial e agrícola do país. Ressaltou-se que a economia passou a ter seu centro dinâmico no mercado interno, que o Estado passou a ter um papel importante no desenvolvimento econômico, que a ação do imperialismo provocava a drenagem de parcelas significativas da riqueza nacional para os países centrais e que a ditadura reforçava a dependência brasileira frente ao capital internacional. Enfatizava ainda que o latifúndio era um entrave para a expansão das forças produtivas, mas não obscurecia o peso da penetração do capitalismo no campo. No que se refere aos trabalhadores, a resolução constata a emergência e concentração do proletariado nas indústrias de ponta, como automobilística, química, mecânica pesada, construção naval, eletrônica e de material elétrico, o aumento expressivo do número de assalariados rurais, trabalhadores da área do comércio e dos serviços e um aumento exponencial dos habitantes das cidades.
O VI Congresso definiu que o proletariado brasileiro é a força motriz e principal da revolução. O campesinato e a pequena burguesia urbana constituem com ele as forças fundamentais. No entanto, como era a linha política daquela época, afirmava que a burguesia nacional, tendo interesses objetivos na emancipação do país, seria uma força capaz de opor-se ao imperialismo e de participar da revolução em sua presente etapa. Mesmo assim insistiam que a classe operária, unida à pequena burguesia urbana e ao campesinato, deveriam lutar para conquistar a hegemonia no processo revolucionário.
“A condição política fundamental para a transição ao socialismo reside na hegemonia do proletariado … Esforçando-se para conduzir a luta contra o imperialismo e o latifúndio, as mais amplas massas da população brasileira, inclusive a burguesia nacional, os comunistas exercerão seus esforços principais na mobilização do proletariado e formação de uma sólida aliança com as forças fundamentais da revolução – os camponeses e a pequena burguesia urbana – a fim de colocar o proletariado em condições de conquistar o papel dirigente no bloco das forças revolucionárias.”
Definidas as tarefas fundamentais e tendo o proletariado como centro do processo revolucionário, muito embora mantivessem certas ilusões em relação à burguesia nacional, o VI Congresso elaborou os elementos estratégicos e táticos para aquilo que considerava seu desafio histórico: a inserção do proletariado nas grandes empresas.
“O desafio histórico que se coloca diante dos comunistas brasileiros é o da construção de um forte e numeroso partido na classe operária. Somos a organização política que, ao longo dos tempos, levantou com firmeza os interesses básicos dos trabalhadores. Somos o Partido que possui os mais experientes quadros operários. Muitas das conquistas da classe operária, direta ou indiretamente, foram alcançadas em lutas que os trabalhadores empreenderam sob a direção do Partido. Fortalecer o Partido na classe operária significa, antes de tudo, do ponto de vista nacional, elaborar um plano a longo prazo para a construção e o reforçamento das organizações partidárias nas grandes empresas. As direções deverão acompanhar atentamente a vida das organizações de base nas empresas. O recrutamento de novos membros para o partido, particularmente nas empresas, deve ter curso no processo de luta de massas.”
O VI Congresso elaborou também as diretrizes para a atuação do Partido no movimento sindical e inserção nas organizações legais dos trabalhadores. Como formulação tática para colocar e desenvolver a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, o Partido orientou no sentido de que a luta deveria partir das reivindicações mais concretas, como melhores condições de vida, aumento de salários, liberdades democráticas, direito de reunião e manifestação, além das reivindicações trabalhistas cotidianas. Nessa perspectiva, para o Partido, cada vitória nas lutas cotidianas, por menor que fosse, acumularia forças para outras lutas, os trabalhadores ganhariam mais experiência e se tornariam mais preparados para lutas futuras.
A partir desses pressupostos, o Congresso definiu orientação para o trabalho nos sindicatos, por entender que essas organizações sociais se constituem no principal meio de ativação do movimento operário, o que significa dizer que os comunistas também deveriam realizar uma ampla política de filiação dos trabalhadores e das trabalhadoras em seus sindicatos. Nesse processo, deveriam aproveitar todas as formas de participação legal, inclusive participando das CIPAS, delegacias sindicais, cooperativas, etc., para ampliar os laços efetivos com os trabalhadores. Entre as orientações do congresso também constava atenção especial aos comunistas que assumissem postos de direção nos sindicatos e outras organizações de massa, de forma a que essas lideranças se tornassem os melhores dirigentes populares.
A propósito, a Voz Operária de abril de 1968 traz uma importante orientação sobre a dialética trabalho sindicato-organização nas empresas, ao enfatizar que essa atuação tem uma importância fundamental porque são instrumentos de luta por melhores condições de vida para os trabalhadores e suas decisões facilitam o trabalho dos comunistas dentro das empresas. Portanto, diz o documento, a atuação no sindicato deve ser cotidiana e em estreita ligação com a organização nos locais de trabalho.
“O comunista na empresa deve ser um propagandista do sindicato, campeão da sindicalização, estar em dia com o que se passa em sua entidade profissional e levar e levar os trabalhadores a lutar pela aplicação de suas decisões. Nesse sentido, é de vital importância combater as tendências que levam a não atuar nos sindicatos, sob o pretexto de que os mesmos são dirigidos por policiais ou que a ditadura não permite. Por mais difícil que sejam as condições, devemos atuar intensamente dentro dos sindicatos, levar a massa a participar de sua vida e, dentro deles, luta para modificar a composição das diretorias que não correspondem aos interesses da classe operária”.
Mas o documento alerta que esse trabalho deve se combinar com a luta e a organização no interior das empresas. “É através dos combates diários dentro da empresa que os trabalhadores vão adquirindo experiência e consciência cada vez maior de que sua força reside na unidade e na organização, de que dessa unidade e organização depende a conquista de vitórias que, por pequenas que sejam, vão acelerando a derrota da ditadura … Sem dúvida o trabalho dentro das empresas é uma tarefa penosa e difícil nas circunstâncias atuais. Nós comunistas, que lutamos pelo poder político para a classe operária, devemos saber encontrar em cada local de trabalho os meios e as formas de nos identificarmos com as massas, de nos fundirmos com elas, sentir seus problemas e com elas encontrar a melhor maneira de solucioná-los”.
Com a elaboração das diretrizes táticas e estratégicas, em junho de 1968 a Voz Operária publica um longo documento de duas páginas e meia, assinado por Murilo W. Meirelles, nome de guerra de outro dirigente do PCB, no qual desenvolve mais amplamente as resoluções do Congresso e justifica teoricamente as razões e o significado do trabalho de inserção do Partido nas grandes empresas. Com o título igual a um documento anterior, “Como e porque construir o partido nas empresas”, Meirelles reforça o entendimento de que a construção do Partido nas grandes empresas é uma missão histórica porque nas condições industriais e tecnológicas em que o Brasil atingiu, o proletariado se encontra concentrado exatamente nas empresas e, especialmente, nas grandes empresas.
Além disso, tratava-se de um proletariado muito jovem, onde mais de 50% têm até 20 anos. Portanto, constituía um celeiro de futuros quadros que, ao serem recrutados, poderiam se transformar em importante instrumento de renovação do Partido, podendo inclusive mudar o perfil do PCB. Meirelles avalia que a concentração operária nas grandes empresas traz uma série de vantagens em relação a um ambiente em que a maior parte dos operários trabalha em pequenas empresas, uma vez que, nos pequenos estabelecimentos, os patrões podem exercer influência direta sobre os empregados, enquanto nas grandes empresas isso não acontece. “Nas grandes empresas, centenas ou milhares de operários nem chegam a conhecer os exploradores e tendem à maior solidariedade, unidade e combatividade”.
Meirelles também enfatiza outras características fundamentais da organização partidária nas grandes empresas, ao constatar que a grande maioria do proletariado tem origem recente no campo e geralmente traz consigo elementos de atraso, como a ideologia pequeno-burguesa individualista e aspirações materiais mínimas. “Mas é somente nas grandes empresas, onde são rapidamente absorvidos e integrados no coletivo operário, que se nivelam aos demais … Cada operário sozinho se sente esmagado pelo sistema vigente, mas só nas grandes empresas o proletariado encontra forças para resistir e lutar e onde apalpa (sic) o valor de seu peso específico – milhares de um lado e o patrão de outro. Na empresa e, em particular, na grande empresa, descobre o valor de sua força ao acionar ou paralisar as máquinas, que são as vigas mestras que sustentam o sistema de produção. É o estrato operário dos grandes estabelecimentos, por sua característica de absoluta proletarização, quem pode neutralizar a instabilidade e as inconsequências dos estratos provenientes dos setores improdutivos que integram o vasto mundo que hoje é a estrutura da classe assalariada”.
Outra característica importante para a luta de classes, conforme assinala o artigo, é o fato de que os operários concentrados nas grandes empresas se habituam com frequência a se relacionar com grandes contingentes de massas e, ao se tornarem lideranças, já adquiriram culturalmente as condições para dirigi-las. Além disso, a própria vida prática do ofício nas grandes empresas, com sua hierarquia, integração e disciplina, facilita sua integração numa organização partidária comunista.
“O operário do grande estabelecimento se habitua a movimentar e a lidar com grandes contingentes humanos, condição necessária para se formar como quadro. Neste tipo de local de trabalho, como no complexo metalúrgico, mecânico, elétrico, da petroquímica, dos principais meios de transportes, etc., onde se espraia a mecanização e a automatização, o maior número da mão-de-obra qualificada, de nível cultural mais elevado, com maior tendência à unidade, à organização é, obviamente, propício a produzir líderes e quadros … Pelos organogramas das empresas, no sistema de sua organização e de produção, os empregados são integrados e funcionam em tal hierarquia e democracia (sic), assim como numa disciplina e num coletivo que facilita naturalmente sua estrutura orgânica e integração ideológica nos princípios partidários, na sua democracia e disciplina. Facilita a construção e a consolidação das organizações de base, bem como a formação de suas direções”.
Para aplicar de maneira correta as tarefas do desafio histórico formulado no VI Congresso, Meirelles elaborou um longo histórico de experiências do Partido desde a década de 40 do século passado, procurando para cada momento ressaltar tanto a orientação política quanto os erros e acertos na sua aplicação, de forma a que se recolhessem as experiências positivas e não se repetissem novamente os equívocos do passado. Meirelles destaca que, após o golpe de 1964, algumas iniciativas de construir o Partido nas empresas foram feitas por organizações estaduais e locais e o partido inclusive destacou quadros qualificados para essa tarefa. Muito embora muitas dessas iniciativas tenham tido êxito, não significou uma mudança de qualidade na ação do Partido para cumprir essa tarefa, como propõe a resolução do VI Congresso. Meirelles recomendava ainda que, na execução dessa nova tarefa, o Partido deveria levar em conta os elementos específicos entre empresas públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, bem como as características dos diversos setores da economia, como o industrial, o agropecuário e o setor terciário, além das características específicas da própria empresa em que se vai desenvolver o trabalho.
Metodicamente, o documento elenca especificamente que, para não dispersar forças, o Partido deveria estabelecer uma política de concentração, além do balanço das tarefas ao longo de todo o processo de implementação dessa política. Para tanto, deveria estabelecer prioridades na distribuição de quadros experientes, inclusive recomendando que se empregassem em grandes estabelecimentos ou se transferissem de pequenas para grandes empresas. Essas tarefas deveriam envolver todos os organismos do Partido, bem como era necessário ainda um plano de agitação, propaganda e formação, além de orçamento visando atingir os objetivos. Reconhecendo as dificuldades e complexidade de realização de uma tarefa dessa ordem o documento ressalta algumas recomendações específicas, com muita atualidade até nos dias de hoje:
“O inimigo é vigilante e reforça, à base de sua experiência, a vigilância nos locais de trabalho e é impiedoso. Realiza a repressão, a infiltração e a corrupção. Por isso, é preciso aprender bem a lição histórica de necessidade de absoluto sigilo e vigilância na organização e ação dos militantes estruturados. Cada tarefa interna ou externa, como distribuição de material, figurar em comissões, no trabalho sindical ou outra qualquer, exige a distribuição adequada das responsabilidades, tendo sempre em vista a possibilidade de uma descoberta, uma denúncia, uma demissão do emprego ou a repressão. Não se trata de recuar nas funções revolucionárias, mas de distribuir de tal maneira os ativistas para que, mesmo ocorrendo uma fatalidade, não venha a ser atingida toda a organização ou os quadros mais eficientes. Somente assim é possível agir e continuar, continuar e consolidar para sobreviver em qualquer situação política – nacional ou local. Lembremo-nos sempre: na empresa é onde a luta de classes é antagônica à conciliação, onde ela é firme e consequente até o fim”.
Todo o trabalho de organização no interior das empresas se tornou muito mais difícil com a decretação do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, quando na prática ocorreu um golpe dentro do golpe, e a ditadura desenvolveu um regime claramente fascista. Vale lembrar que, antes do AI-5, o ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações dos estudantes, dos intelectuais, artistas, bem como duas grandes greves operárias que vieram questionar mais fortemente o regime. Passeatas foram realizadas no Brasil inteiro, especialmente após o assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto, no restaurante universitário do Calabouço, um local onde os estudantes pobres faziam refeições diárias no Rio de Janeiro.
A principal dessas passeatas foi realizada em 26 de junho de 1968 no Rio de janeiro, quando reuniu cerca de 100 mil manifestantes e ficou historicamente conhecida como a passeata dos 100 mil, mas ocorreram manifestações em todas as grandes cidades do país. Em 12 de outubro de 1968 ocorreu um duro revés para o movimento estudantil e a União Nacional dos Estudantes (UNE), que vinha efetivamente comandando as manifestações de massa no país. Todos os cerca de 700 delegados presentes ao XXX Congresso da UNE, que estava sendo realizado clandestinamente em um sítio na cidade paulista de Ibiúna, foram presos numa operação comandada pelo DOPS de São Paulo, com o apoio do Exército. Em outras palavras, todas as lideranças estudantis foram apanhadas pelo regime, levando a uma progressiva desarticulação do movimento, especialmente após o AI-5.
Antes do AI-5 ocorreram também greves operárias contra o arrocho salarial, mas nenhuma teve a dimensão das duas principais greves de 1968. A primeira das greves ocorreu na cidade industrial mineira de Contagem e começou em 16 de abril na Companhia Belgo Mineira, quando os operários fizeram reféns os diretores da empresa e se declararam em greve. Depois o movimento se espalhou por outras 17 fábricas, tendo como reivindicação um aumento salarial de 25%. Foi uma greve que nasceu a partir da base operária. Como diz Voz Operária: “Os operários permaneceram durante 24 horas parados dentro da empresa, organizados e unidos, serenos, confiantes na sua força, dialogando com os engenheiros e mesmo com soldados da PM que vieram sitiar a empresa. Os grevistas não se assustaram com o aparato policial. Decidiram dialogar, explicar a greve, argumentando com os soldados mais acessíveis que os próprios soldados não podiam viver com os soldos miseráveis que o governo lhes pagava e que o arrocho salarial também os atingia”.
A greve surpreendeu a ditadura e até o sindicato local: o próprio ministro do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho, se deslocou até Minas Gerais para negociar uma solução da greve, bem como o sindicato também começou a se envolver nas negociações. Ao final de nove dias de greve, o governo concedeu um abono aos trabalhadores de Contagem, que posteriormente foi estendido a todos os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. Foi uma grande vitória operária porque começou a quebrar o arrocho salarial e o governo se comprometeu a não punir os grevistas. Nesse movimento teve um papel importante o camarada Neres, dirigente do PCB de Minas Gerais, posteriormente preso pela ditadura. Foi o último preso político a sair da prisão com a anistia.
Mas a maior e mais organizada greve do período foi realizada pelos operários da cidade industrial de Osasco. O sindicato dos metalúrgicos da região fora ganho pela oposição sindical, comandada por José Ibrahim, e desenvolveu um intenso trabalho de organização no interior das fábricas – os chamados Grupos dos 10, que logo se espalharam pelas empresas da região. A nova diretoria programou uma greve da categoria para novembro de 1968, mas como as bases já estavam fazendo greves espontâneas, então a direção resolveu antecipar o movimento grevista para junho. A greve foi tão bem organizada que um panfleto elaborado dias antes descrevia exatamente como deveria se processar a greve. “Às 8:45 horas as Indústrias Granada e Barreto Kelly aderiram à greve e todos os trabalhadores saíram juntos das fábricas marchando para o sindicato … Duas horas depois a Lonaflex parou, declarando-se solidária ao movimento grevista”. E tudo ocorreu exatamente como descrevia o panfleto.
A repressão ao movimento foi violenta, num nível maior do que os líderes metalúrgicos imaginavam. As forças do Exército invadiram a cidade, com soldados da Força Pública e do DOPS, com cavalaria, brucutus, controle da entrada e saídas da cidade e cerco às fábricas, exigindo que os operários abandonassem as empresas. Na Cobrasma, a maior de todas, os trabalhadores resistiram dentro da fábrica e a polícia invadiu o estabelecimento. Ocorreu uma batalha campal no interior da fábrica ao longo da noite e pela manhã a polícia prendeu 300 trabalhadores. Enquanto isso, o governo decretou intervenção no sindicato e nomeou um interventor, que tentou entrar no Sindicato com um pelotão policial, mas os trabalhadores o impediram de entrar no prédio. Novamente a polícia invadiu o sindicato e prendeu lá dentro mais 80 trabalhadores. A partir daí o movimento arrefeceu e a greve foi derrotada, mas significou o momento mais elevado da luta de classes naquele ano de 1968.