As relações entre a Faria Lima e o crime organizado
Edmilson Costa
A Polícia Federal, o Ministério Público e a Receita Federal realizaram na semana passada uma das maiores operações policiais da história brasileira, com o objetivo de desbaratar as relações promíscuas entre a oligarquia financeira estabelecida na avenida Faria Lima, em São Paulo, e uma das facções do crime organizado representada pelo Primeiro Comando da Capital, o PCC. Para se ter uma ideia da dimensão da operação, basta dizer que a investigação mobilizou 1.400 agentes da Polícia Federal, cumpriu 350 mandados de busca em oito Estados (São Paulo, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e Santa Catarina) e emitiu ordem de prisão para 14 pessoas, das quais seis estão presas e as outras ainda se encontram foragidas. O dado surpreendente para muitos foi a ligação estreita entre o crime organizado e os senhores de colarinho branco da oligarquia financeira. As revelações da investigação indicaram que 42 empresas da Faria Lima estavam envolvidas numa engrenagem criminosa, entre as quais fintechs, corretores, gestoras de ativos e bancos, que movimentaram para o PCC cerca de R$ 52 bilhões num esquema sofisticado que utilizava a engrenagem financeira, como fundos de investimentos, para ocultar o dinheiro de origem ilícita.
A narrativa dominante nos meios de comunicação sempre tratou a criminalidade como um problema oriundo das periferias e favelas, envolvendo jovens pobres e pretos, com o intuito de reforçar o estigma das comunidades pobres como regiões perigosas. Tudo isso para justificar a violência policial contra a população dessas regiões. Entretanto, a Operação Carbono Oculto deixou evidente o que sempre se suspeitava, ou seja, o verdadeiro crime organizado faz parte de uma engrenagem controlada por banqueiros, executivos, gestores de fundos de investimentos e respeitáveis consultorias, além de grandes escritórios de advocacia e contabilidade. São estes senhores os responsáveis por estruturar sofisticados esquemas de evasão de divisas, sonegações bilionárias, aberturas de offshores e agora lavagem explícita de dinheiro de facções criminosas. Mas é bom lembrar que esses engravatados não operam sozinhos: se articulam com setores do executivo, do legislativo e até do judiciário, numa engrenagem requintada para naturalizar a corrupção e blindar a impunidade, tudo isso legitimado pela mídia corporativa.
Tais acontecimentos não podem ser avaliados como casos excepcionais, mas como um mecanismo estrutural vinculado às políticas neoliberais. Com a desregulamentação da economia, o sistema financeiro ganhou uma autonomia quase absoluta para criar os chamados novos produtos financeiros, processo que abriu espaço não só para o frenesi especulativo, mas também para a construção de estruturas de lavagem de dinheiro e ocultação patrimonial, além de um esquema de poder paralelo capaz de ditar políticas públicas, influenciar eleições e votações no Congresso e manipular muitas decisões do judiciário. Grandes escritórios de advocacia e contabilidade criam mecanismos legais e de planejamento tributário para burlar o fisco, e o Estado aprova leis para facilitar a aplicação de recursos em offshores e paraísos fiscais, com ausência de tributação de lucros e dividendos para beneficiar essa oligarquia parasitária.
O grande diferencial que se pode observar entre as ações contra a máfia de casaca e os aviõezinhos do varejo das comunidades periféricas é a forma como o Estado atua nesses casos. Nas periferias e favelas a polícia chega com todo aparato bélico, como tanques, helicópteros, fuzis automáticos, bombas de gás lacrimogêneo. Invade residências, atira primeiro para perguntar depois e nessas operações mata não só pequenos delinquentes, mas também muitas crianças e pessoas inocentes. Muitas vezes os policiais se alegram ao expor na mídia os cadáveres dos jovens mortos. Nas operações contra os ladrões de casaca tudo é diferente: não há manchete estampando seus rostos em horário nobre, nem câmeras acompanhando suas famílias desesperadas e humilhadas. Pelo contrário: são tratados com delicadeza e a polícia quase pede licença antes de entrar nos escritórios chiques desses senhores. Não se veem chutes nas portas nem tiros de fuzil, afinal o aparato repressivo foi moldado para tratar com rigor os pobres e com cortesia os banqueiros, executivos, políticos e burgueses em geral, pois estes são parceiros respeitáveis mesmo quando estão envolvidos em crimes bilionários, evasão fiscal, corrupção ativa ou lavagem de dinheiro do crime, como ocorreu com os bandidos de colarinho branco da Faria Lima.
Como operava a cadeia de crimes
O PCC estruturou uma cadeia empresarial com postos de gasolina, fazendas de açúcar, usinas de álcool, padarias e lojas de conveniência, além do tráfico de drogas. Vale a pena listar aquilo que até agora as investigações descobriram: o PCC é proprietário de quatro usinas produtoras de álcool, 1.600 caminhões de transporte de combustível, seis fazendas no interior de São Paulo, um terminal portuário e uma mansão de R$ 13 milhões na Bahia. Um dos negócios mais rentáveis era realizado na área de combustível: empresas importavam combustível com dinheiro do tráfico, que depois era adulterado e distribuído para postos de gasolina dos diversos Estados. Os recursos obtidos com a venda do combustível eram recebidos pelas fintechs e misturados com recursos legais de outros clientes numa conta única, as chamadas contas bolsão, o que tornava muito difícil o rastreamento do dinheiro ilícito. Posteriormente, os recursos eram direcionados a fundos de investimentos administrados ou geridos por organizações da Faria Lima.
Para compreendermos esse escândalo, é importante também sumariar rapidamente o significado das fintechs. Essas empresas surgiram com o objetivo de modernizar e supostamente democratizar o sistema financeiro, mediante serviços digitais inovadores, com baixo custo e acesso facilitado. Diferentemente dos bancos tradicionais, as fintechs operam com pouca estrutura física e totalmente digitais, com abertura de contas empresariais e pessoais sem análise detalhada ou checagem dos clientes, o que cria oportunidades para a infiltração do crime organizado, como a investigação recente identificou. Por meio de aplicativos, oferecem contas digitais, cartões de crédito, pagamentos instantâneos, investimentos, crédito e até negócios com criptomoedas. Esse sistema facilita operações nas quais os recursos passam por diversas camadas de contas digitais, carteiras e plataformas, tornando difícil rastrear operações de origem ilícita. Muitas vezes as fintechs funcionam como uma espécie de banco paralelo digital, um terreno fértil para a atuação de criminosos.
Com esse mecanismo altamente sofisticado, a oligarquia financeira da Faria Lima transformava o dinheiro sujo em ativos aparentemente legítimos, como fundos de investimentos, participação em empresas, compra de imóveis, fazendas, entre outros. O elo entre o dinheiro do crime e o sistema financeiro era operado por meio de laranjas, tais como empresários fictícios, familiares de integrantes da facção criminosa e mesmo profissionais do ramo que atuavam como testas de ferro. Abriam contas nas fintechs, apareciam como sócios, movimentavam recursos, mas tudo isso efetivamente controlado pelo PCC. Os laranjas também cumpriam o papel de empreendedores para a expansão patrimonial, como controle de cotas de fundos de investimentos e outros tipos de propriedades. O mais irônico de tudo isso é que muitas vezes esses bens eram utilizados como garantia para outras operações financeiras, o que ampliava ainda mais o entrelaçamento entre o mercado financeiro e a facção criminosa.
De acordo com as investigações, cerca de 40 empresas da área da Faria Lima estão envolvidas no esquema de lavagem de dinheiro do PCC (Tabela 1) e, entre 2020 e 2024 movimentaram cerca de R$ 52 bilhões, ou 13 bilhões por ano, funcionando em termos práticos como verdadeiros bancos paralelos a serviço do crime. Ou seja, as fintechs operavam como a porta de entrada da cadeia de recursos controlados pelo PCC, que depois eram reciclados e compensados pela máfia de colarinho branco aparentemente sem despertar suspeitas das autoridades regulatórias. Dessa forma, formava-se uma simbiose estrutural entre o dinheiro do crime e o coração do sistema financeiro, alimentando um circuito perverso e uma engrenagem cuidadosamente construída de maracutaias bilionárias, onde caminhavam juntos o crime contra a economia popular, a sonegação de impostos, o enriquecimento da oligarquia financeira e o poder das facções do crime organizado.
Tabela 1
Lista de instituições, fundos e empresas investigadas
1 – BK Instituição de pagamento S/A
2 – Bankrow Inst. de pagamento S/A
3 – Trustee Dist. de Títulos e Val. Mob.
4 – Reag distribuidora de Títulos
5 – Altinvest Adm. de Rec. de Terceiros
6 – BFL Administração de Recursos
7 – Banco Genail S/A
8 – Actual Dist. de Títulos e Valores S/A
9 – Ello Gestora de Recursos
10 – Banvox Dist. de Tit. e Valores
11 – Libertas Asset. S/A
12 – Zeus Fund. de Inv. E Valores Creditórios
13 – Brazil Special Fund
14 – Atena Fundo de Inv. Multiestratégia
15 – Olimpia Fundo de Inv. Multimercado
15 – Olimpia Fundo de Inv. Multimercado
17 – Minnesota Fundo de Inv. Imobiliário
18 – Olsen Fundo de Inv. Imobiliário
18 – Pinheiros Fundo de Inv. Imobiliário
20 – Mabruk Fundo de Inv. em Dir. Creditórios
21 – Redford Fundo de Inv. Multimercado
22 – Participation Fundo de Inv. e Participações
23 – Zurich Fundo de Inv. Multiestratégia
24 – Pompeia Fundo de Investimento
25 – Derby Fundo de Inv. Multimercado
26 – Los Angeles Fundo de Inv. Imobiliário
27 – Gold Style Fun. De Inv. Creditório
28 – Hans 95 Fun. De Inv Multimercado
29 – Celebration Fun de Inv. Multiestratégia
30 – Keros Fundos de Inv. Multiestratégia
31 – Ruby Green Fundo de Inv Imobiliário
32 – Enseada Fundo de Inv. Imobiliário
33 – Green Eagle Fundo De Inv. Imobiliário
34 – Pegasus Fundo de Inv. Multiestratégia
35 – Paraibuna Fundo de Inv. Multiestratégia
36 – Toronto Fundo de Inv. Imobiliário
37 – MAM ZC Tesouro Selic Soberano
38 – Anna Fun. De Inv. Em cotas Creditórios
39 – Real Righ Yeld Fundo de Investimentos
40 – Auster Petróleo LTDA
41 – Safra Distribuidora De Petróleo
42 – Duvale Dist. De Petróleo e Álcool
43 – GGX Global Participações
44 – Vila Rica Participações LTDA
45 – Dubai Administração de Bens
Fonte: Metrópoles
Além das empresas envolvidas com uma das facções do crime organizado, a investigação até agora alcançou muitos dos grandes figurões do mercado financeiro e empresarial, que até então eram considerados figuras respeitáveis no mundo dos negócios (Tabela 2). Ressalte-se ainda que alguns dos nomes aqui listados são apenas uma pequena parcela dos comparsas de colarinho branco e sua relação com os subterrâneos da corrupção e do crime. O aprofundamento das investigações com certeza vai revelar ainda mais nomes, não só de empresários, mas possivelmente de políticos, como já se anuncia, além de integrantes do mundo institucional e da política. Os próximos capítulos dessa investigação vão ser emocionantes e poderão revelar a podridão das relações promíscuas das classes dominantes com os subterrâneos do crime.
Tabela 2
Alguns banqueiros e empresários alcançados pela operação da Polícia Federal
Mauricio Quadrado – Ex-Bradesco e ex-sócio do Banco Master, é sócio das administradoras Trustee e Banvox. As duas empresas são alvos da operação por gerirem fundos utilizados pelo grupo criminoso.
Ricardo Magro – Controlador da Refinaria Refit, chegou a ser preso em 2026 por desvios de fundos de pensão. A refinaria forneceu combustível para o crime por meio da distribuidora Rodopetro.
João Carlos Mansur – Fundou a Reag em 2013, sendo considerada a maior gestora de patrimônio do Brasil, com R$ 299 bilhões. Responsável pelos fundos Malbruk II e Hans 95
Nelson Tanure – Acumula ações nas principais empresas do País, sendo dono de fundos controlados pela Reag e Trustee. Tem negócios com João Carlos Mansur e Maurício Quadrado.
Mohamed Mourad – Um dos chefes do esquema criminoso. Realizava fraudes fiscais, ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro. Se apresentava como CEO da G8LOG e formou uma rede criminosa com parentes, sócios e profissionais cooptados.
Fonte: Lazaro Rosa
Essa teia de negócios ilícitos não se sustentaria sem o envolvimento dos setores institucionais, tais como o financiamento de campanhas eleitorais e a ação dos lobbies no Congresso que atuam em defesa dos interesses financeiros e contra as medidas regulatórias. Um caso recente ilustra bem a atuação do populismo de extrema-direita para blindar as ações regulatórias. Todos devem lembrar que o deputado Nikolas Ferreira se destacou como uma das vozes mais ativas que, mediante fake news, contribuiu para impedir o governo de aprovar instruções normativas para regular as fintechs. Nikolas, mediante vídeo que teve milhões de visualizações, denunciou que o governo queria aumentar o monitoramento da Receita Federal sobre os gastos dos cidadãos, instalar sistema de taxação e controle do pix, visando aumentar a arrecadação. Diante da imensa repercussão desse vídeo e da criação de pânico artificial, o governo recuou das medidas, o que terminou minando a tentativa de ampliar a transparência sobre as movimentações financeiras das fintechs.
Essa ofensiva da desinformação, como sempre acontece nesses casos, não foi uma iniciativa ingênua, porque na prática a disseminação de sofismas como liberdade financeira, defesa dos cidadãos serviram apenas para blindar as estruturas utilizadas pela facção criminosa no mercado financeiro. Isso atrasou a implementação de mecanismos importantes de rastreamento das operações ilícitas que só agora, após a operação, o governo conseguiu implantar. Do ponto de vista do crime, as fake news funcionaram como uma cortina de fumaça perfeita, pois desviou o debate da regulação financeira para temas subjetivos como perseguição do Estado ou liberdade para empreender. Ou seja, enquanto a população era enganada com as desinformações na mídia, os membros do PCC e os operadores da Faria Lima continuavam movimentando bilhões em silêncio, demonstrando uma vez mais que a mentira é parte integrante das ações da extrema-direita para favorecer engrenagens criminosas e blindar a oligarquia financeira.
Um dado importante a ser verificado com a continuidade das investigações é o fato de que o escândalo que veio à tona é apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo, cuja base envolve setores formais e informais usados historicamente para a lavagem de dinheiro e a corrupção estrutural. Não será nenhuma surpresa se a polícia encontrar vínculos explícitos não só entre a máfia financeira e as facções criminosas, mas também outros esquemas envolvendo políticos e setores institucionais do país. Afinal, não poderemos esquecer que o Brasil, nesses tempos de neoliberalismo, vive sob a dominação da ditadura das finanças que fez da quebra dos direitos e garantias dos trabalhadores, das trabalhadoras e pensionistas, da naturalização da corrupção e da normalização da pilhagem ao fundo público uma das fórmulas principais de acumulação de riqueza de poucos. Se as investigações forem mesmo a fundo poderemos dizer que este é apenas o início de um processo que irá revelar não só os crimes de outros peixes grandes, mas também desmascarar a forma de agir do sistema político neoliberal implantado há mais de 35 anos no Brasil.
Numa conjuntura dessa ordem, torna-se cada vez mais evidente por que a oligarquia financeira, os latifundiários e os monopólios em geral estão empenhados em construir uma candidatura de direita para as próximas eleições de 2026. Esse esforço revela um conjunto de ações que se desdobram em vários vetores: controle político, econômico, ideológico e de autoproteção. Afinal, elegendo um presidente alinhado com seus interesses, esses capitalistas terão um aliado fiel no posto mais importante da República, um executor das políticas que refletirá seus interesses e a manutenção de uma estrutura que abre as portas para o saque sistemático aos cofres públicos e, quando for o caso, acobertamento de seus crimes. Não é por acaso que esses setores do capital já estão realizando uma campanha subreptícia e investindo milhões para alinhar a mídia e consolidar a formação de um bloco político ultraconservador, que preserve esse modelo baseado na acumulação predatória, na superexploração dos trabalhadores e das trabalhadoras e no saque do fundo público.
Nessa perspectiva, é fundamental que as forças populares se organizem para dar combate aos setores que transformaram o Brasil num vasto território de saque, no qual o capital financeiro, os monopólios e os latifundiários continuam acumulando riqueza às custas do trabalho de milhões de brasileiros e brasileiras e da miséria da população. É necessário que as forças de esquerda construam um projeto que tenha a capacidade de redefinir o futuro do país, sem conciliação com a burguesia, para derrotar a extrema-direita, colocar em evidência a pauta da classe trabalhadora, com o povo em movimento, na perspectiva da construção do poder popular e do socialismo. Essa alternativa está na ordem do dia: tudo depende da nossa capacidade de transformar a indignação e a revolta latente em força organizada para realizar as transformações sociais no Brasil.
Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB