Bolsonaro condenado: direito e política

Por Mauro Luis Iasi
Publicado originalmente em 12/09/2025 no Blog da Boitempo
“O Estado passa a ter, como fundamento de sua própria legitimidade, um caráter de representação social aparentemente dissociado dos antagonismos de classe, refletindo, de forma ideológica, o lugar público ideal (…) os interesses particulares de caráter estrutural, indispensáveis à permanência das relações de exploração do homem pelo homem”
— Allaor Caffé Alves (Estado e ideologia, p. 250)
Um dos argumentos da extrema direita, agora que ela resolveu argumentar com argumentos, é que o julgamento do seu líder miliciano foi um julgamento político. De pronto, o mais próximo de um comunista no Supremo Tribunal Federal, o ministro Flávio Dino, se apressou a declarar que o julgamento não pode se basear em pertencimentos políticos de nenhuma ordem, e os acusados, sejam eles quem forem, seriam julgados pela objetividade pura da lei. Postura reforçada por seus colegas e enfatizada pelo voto divergente de Luiz Fux.
Neste ponto, porém, devo concordar com a premissa: o julgamento, como o Direito, é inseparável da política, como foram julgamentos políticos a cassação da presidente Dilma Rousseff e o julgamento do presidente Lula, que o levou à prisão, uma vez que que todo julgamento é permeado por interesses políticos.
A pretensão de um direito puro, ao gosto do neopositivismo de Hans Kelsen, acredita possível eliminar do ordenamento jurídico impurezas tais como valores, filosofias, adesões políticas, pertencimentos culturais ou étnicos, e por aí vai. O direito positivo derivaria de normas e, estas, de uma metafísica norma fundamental que orientaria a dogmática jurídica, uma filosofia jurídica, portando dimensões valorativas e éticas propriamente jurídicas até encontrar a objetividade pura da lei.
Se no esforço analítico podemos afastar vetores para compreender determinado fenômeno, não podemos acreditar que tais variantes não interajam e se apresentem na totalidade do objeto estudado. Compreender cada esfera particular de ação e suas determinações, sua legalidade própria, como desejava Weber, não implica que tais esferas não constituam uma totalidade maior — um complexo de complexos, como defendia Lukács contra seu mestre dos tempos de Heidelberg. Nesta perspectiva, não basta anunciar a legalidade própria da esfera jurídica ou da esfera política no que há de particular a cada uma delas, mas indagar em que ponto estes complexos interagem e se determinam.
Se todo julgamento é político, em algum nível, o que diferencia esses três casos?
Parece evidente que, no caso do afastamento da presidente Dilma, o direito serviu de bálsamo legitimador de inequívocos interesses políticos. Uma vez tomada a decisão do afastamento, a norma e o ritual jurídicos serviram para legitimar (não sem lançar mão de casuísmos e malabarismos retóricos) o ato em si mesmo ilegítimo. Duas figuras eminentes do mundo jurídico, Miguel Reale Jr. e Hélio Bicudo, associadas a uma tresloucada professora de Direito, Janaína Paschoal, emprestaram (no caso da última, vendeu) suas supostas autoridades para transformar as chamadas “pedaladas” em crime de responsabilidade e justificar o impeachment.
No caso de Lula, no bojo da midiática operação Lava Jato, o universo jurídico compareceu menos como legitimação do fato e dos interesses nele envolvidos, e mais como espada vingativa na mão de um medíocre juizeco que teve dificuldades até mesmo para escrever sua própria dissertação de mestrado. A dimensão política se escancara quando o mesmo juiz virou ministro da Justiça do governo de extrema direita que ele ajudou a viabilizar enquanto sonhava com voos mais altos, como a presidência da República ou uma vaga no STF.
No presente julgamento, que condenou os golpistas liderados pelo chefe da quadrilha, Jair Bolsonaro, a dimensão política comparece, em primeiro lugar, pelo fato de que o julgamento político é sempre uma prerrogativa dos vencedores. Tivesse o golpe se consolidado, os golpistas estariam julgando os atuais juízes, ou mesmo os condenando sem julgamento, como ocorreu fartamente na ditadura inaugurada em 1964, que serviu de modelo ao aspirante a ditador.
Em segundo lugar, porque não podemos compreender o julgamento apartado da conjuntura política que marca o Brasil desde o golpe parlamentar, jurídico e midiático de 2016. O Brasil, que sempre foi um país dividido, como tenho dito muitas vezes neste espaço, agora encontra-se fraturado. Uma fratura que se apoia nas desigualdades estruturais, mas que as leva a um patamar qualitativamente distinto, na medida em que se expressa em alternativas políticas que emergiram das contradições próprias do ciclo político hegemonizado pelo PT.
A polarização que se dá entre a centro-esquerda e a extrema direita representa no universo político uma divisão no bloco dominante. Setores do bloco dominante apostaram na aventura neofascista, encantados pela capacidade de a extrema direita mobilizar segmentos de massa, setores médios e constituir uma real alternativa ao longo período de predomínio da centro-esquerda e da conciliação de classes. No entanto, a experiência prática do desgoverno do miliciano, a tensão e instabilidade geradas e sua culminação na tentativa de golpe fizeram com que segmentos do bloco dominante recuassem e agora operem para descartar o núcleo bolsonarista, tentando preservar a útil força de extrema direita que a ele veio associada.
Sem esse contexto, o julgamento é incompreensível. O STF não julga os golpistas porque é um bastião da ordem democrática e da constitucionalidade. A mesma instituição acompanhou com paciência bovina os desmandos durante todo o governo miliciano, assim como abençoou com legalidade jurídica o afastamento de uma presidente eleita e cobriu de bálsamos de legalidade o desmonte dos direitos trabalhistas e os diversos ataques às políticas sociais.
O interesse maior neste caso — e a dimensão política se mede pela correlação de forças expressas em interesses — é, nas palavras de meu mestre Allaor Caffé, “o lugar público ideal (…) os interesses particulares de caráter estrutural, indispensáveis à permanência das relações de exploração do homem pelo homem”. Como pensava Durkheim, o crime serve à consciência coletiva que a ele se contrapõe como amálgama de uma solidariedade contratual. No entanto, para nós, marxistas, a sociedade e seu Estado não podem assumir a forma de uma ficção abstrata. Trata-se da sociedade do capital e do Estado burguês, que expressam no corpo político e jurídico as relações que constituem uma forma determinada de produção e reprodução da vida.
Na igual medida em que se condena o crime, seja ele a abolição do Estado Democrático de Direito ou qualquer outro praticado pelos meliantes, se defende o Estado e suas instituições como se fossem “aparentemente dissociados dos antagonismos de classes”.
Um terceiro elemento a se destacar na particularidade do julgamento que condenou Bolsonaro e sua quadrilha é o fato de que nele se apresentaram duas formas jurídicas que nos permitem compreender como a suposta objetividade do direito e do julgamento se acomoda a interesses de outra esfera, no caso, a política. Quando comparamos o voto de Luiz Fux ao do relator (bem como daqueles que o seguiram), vemos que eles partem das mesmas premissas, que os unificam: a neutralidade do direito e a necessidade de julgar imparcialmente, fundados na objetividade do tipo legal instituído, a defesa intransigente da instituição e da chamada “ordem democrática”. Por que, então, um condena e o outro absolve?
Aquilo que ocupou o lugar de um jornalismo sério se apressa em apresentar o dissenso como mais uma virtude da instituição. Os juristas argumentam que, neste caso, intervém a ação de interpretação da norma jurídica, tarefa precípua de quem julga. No entanto, quando colocamos o julgamento no contexto maior, vemos impresso no campo particular as forças que se entrechocam no país fraturado. Interessante notar que o direito serve igualmente às duas ordens argumentativas.
Do ponto de vista jurídico, o voto do ministro Fux pautou-se pela necessidade de identificar na ação da qual os réus eram acusados (a mão) uma correspondência ao tipo penal determinado (a luva). Como me alertou Mário Miranda (em debate no programa Canal Livre de 11 de setembro de 2025), com razão, não devemos caricaturar tal procedimento como mera tecnalidade para livrar a cara do obtuso ex-presidente e, hoje, presidiário. Nós devemos defender a postura segundo a qual a condenação deva se basear em tipificações claras e precisas, assim como a conduta dita criminosa deve corresponder aos tipos estabelecidos. No entanto, tal recurso foi claramente orientado por interesses na direção de absolver o miliciano e jogar aos leões o general e o ajudante de ordens. No que diz respeito à forma, chama a atenção que o extenso e cansativo recurso de embrulhar seu voto em uma enxurrada de referências, numa retórica metafísica, parece servir ao propósito de esconder o fato de que a ênfase estava na determinação rígida do tipo e na desconsideração das provas.
O voto do relator, ministro Alexandre de Moraes — que entende de golpe, uma vez que ele próprio foi nomeado por um golpista —, foi na direção oposta, amparado num vasto arsenal de provas apresentadas pela Procuradoria Geral da República fundadas no trabalho investigativo da Polícia Federal. O voto de Flávio Dino seguiu na mesma direção. O voto da ministra Carmen Lúcia, com serenidade e profundidade, articulou preceitos teóricos, fundamentos jurídicos e as provas, com direito à poesia de Affonso Romano de Sant’anna.
Uns e outros são movidos por interesses, valores e concepções de mundo. O universo simbólico do direito serve como ferramenta de legitimação argumentativa, para um e para os outros. No entanto, creio haver uma diferença substancial.
Marx, em suas reflexões sobre o método da economia política, ao refletir sobre a maneira particular de o cérebro compreender o mundo de forma científica, que difere da arte, da religião e do senso comum, nos diz que “o objeto concreto permanece em pé antes e depois, em sua independência e fora do cérebro ao mesmo tempo, isto é, o cérebro não se comporta senão especulativamente, teoricamente” (A ideologia alemã, p. 258).
De forma leiga diante do universo jurídico, chama a atenção o fato de que numa postura resulta que o direito serve de tapume que esconde o fato, e noutra serve de janela que permite ver o fato e a ação dos sujeitos que o constituíram. O artifício, duvidoso, de que não há provas que imputem ao ex-presidente golpista, porque não há uma assinatura, uma declaração inequívoca ou ação provada no sentido da realização da tentativa de golpe, faz com que o tapume jurídico obstrua a visão de parte do fato acontecido no terreno do real. O principal instrumento para tanto é a particularização dos atos isoladamente. No caso dos outros votos (do relator, de Dino, Cármen Lúcia e do insípido presidente Zanin), a conexão entre tipo penal e ação criminosa dirige-se à totalidade da ação no tempo, permitindo que a janela jurídica mostre lá no real o fato e as conexões que, na análise jurídica, vincula sujeitos, ações e intenções criminosas.
Ninguém pode ignorar o fato de que aquilo que orienta a ação em uma ou outra direção não é o melhor ou pior uso do direito, mas a dimensão dos interesses que dele se valem. Se a primeira turma contasse com a presença dos ministros indicados por Bolsonaro e o julgamento se desse em outro contexto conjuntural, o mesmo direito positivado, o mesmo ordenamento jurídico constitucional e o mesmo ritual de seres togados em negro poderiam ter produzido outro resultado, bem diverso.
Ainda que tardiamente, nos cabe festejar que o arrogante aspirante a fascista passará os próximos 27 anos e três meses na cadeia. Como dizia Ruy Barbosa, justiça que tarda não é justiça, mas injustiça qualificada. Sobre este julgamento podemos afirmar: ela tardou demais, mas foi muito bem qualificada.
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Mauro Iasi é professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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