Em memória da Coluna Prestes

Membros da Coluna Prestes – Acervo de Luiz Carlos Prestes Filho
Edmilson Costa*
A Coluna Prestes completou, neste ano de 2025, 100 anos. Trata-se de um evento dos mais emblemáticos da história brasileira e uma epopeia militar extraordinária, maior que a de Alexandre da Macedônia ou a Grande Marcha de Mao Tse Tung, uma vez que as tropas comandadas pelo capitão Luís Carlos Prestes e composta por tenentes insurgentes e rebeldes populares que se incorporaram à luta, enfrentaram as tropas melhor armadas e muito mais numerosas do então presidente Artur Bernardes, ao longo de 25 mil quilômetros, do Sul ao Norte, do Nordeste ao Centro-Oeste do país, numa guerra de guerrilhas invicta, entre os anos de 1925 e 1927. A coluna insurgente saiu do interior do Rio Grande do Sul, incorporou os tenentes sublevados de São Paulo, percorreu o país inteiro desafiando as forças oligárquicas da República Velha e, nessa trajetória pelo Brasil profundo, escreveu na memória nacional um dos mais belos capítulos da luta popular por justiça social e liberdade.
Portanto, celebrar o centenário da Coluna Prestes deve ser entendido não apenas como um evento militar, mas especialmente como um episódio importante para compreender o Brasil daquela época (e ainda hoje), marcado pelo coronelismo, pelos latifundiários, pelas desigualdades e miséria da imensa maioria da população. Seu legado continua muito atual porque encarnou valores que ainda são muito atuais, tais como a luta pelas transformações sociais, o combate à oligarquia, ao latifúndio, à corrupção e ao autoritarismo dos grupos conservadores, bem como a defesa da soberania nacional e popular. Celebrar este centenário da Coluna é também recordar que o povo brasileiro, em condições muito mais difíceis que atualmente, se levantou contra a opressão e, portanto, pode novamente contestar a ordem estabelecida. É também lembrar que a população pobre da caatinga, dos sertões, do planalto foi capaz de apoiar a coragem e a dignidade daqueles revolucionários que, através da luta popular armada, decidiram enfrentar os poderosos e buscar uma pátria livre e democrática.
Um século depois, a Coluna Prestes permanece como um desses raros acontecimentos que não envelhecem porque foi capaz de revelar o nervo exposto da sociedade brasileira da época, não só em relação à miséria das grandes massas, mas também sobre o poder dos grandes proprietários, a manipulação política das elites regionais, a violência contra os pobres e a ausência histórica de direitos para a maioria da população. A marcha da Coluna também obteve a simpatia da imensa maioria do povo sertanejo, que proporcionou comida, água e informações sobre o inimigo, uma vez que a Coluna se transformou, aos olhos da população rural, num exemplo de ousadia e retidão nas relações entre os insurgentes e a população. Como relata o próprio comandante da Coluna, Luís Carlos Prestes, em entrevista ao Estado de São Paulo: “Encontrávamos um ambiente de muita simpatia. As populações que não fugiam e que mantinham contato conosco compreendiam que lutávamos contra seus inimigos. O povo do interior via no governo federal, nos governos estaduais e municipais e nos grandes fazendeiros os seus inimigos e percebia que todos lutavam contra nós. Não tinham consciência suficiente para aderir à luta e dar suas vidas a uma causa que ainda não compreendiam”.
Além disso, a Coluna se converteu em matéria prima para uma grande radiografia do Brasil profundo ao revelar a estrutura das desigualdades brasileiras, que só muito depois a historiografia viria a reconhecer. Ou seja, o Brasil urbano que contrastava com o país interiorano, majoritariamente rural, analfabeto e miserável. Expôs ainda o poder dos donos das terras e das fraudes nas eleições, escancarando o domínio de uma oligarquia reacionária e violenta. Como ressalta Prestes na mesma entrevista: “Não podíamos imaginar que a situação dos homens do campo fosse tão miserável, apesar de conhecermos as favelas das grandes cidades. O quadro era realmente de horrorizar. O que vimos no interior do Mato Grosso, Goiás, Nordeste foi miséria e exploração. Além disso, as condições sanitárias terríveis … Houve o caso de encontrarmos em algumas choças uma família com três mocinhas. Duas ficaram dentro de casa porque só havia um vestido. As outras estavam nuas e não podiam aparecer. Não era por medo da Coluna, porque o respeito era absoluto, mas sim porque não tinham roupa para vestir”.
Em termos históricos, podemos dizer que a Coluna Prestes pode ser considerada uma espécie de mito fundador das lutas populares organizadas no Brasil porque não só desenvolveu uma trajetória militar vitoriosa, mas especialmente porque tornou visível aquilo que as classes dominantes procuravam invisibilizar. Um Brasil marcado pelo poder do latifúndio, em que os chefes locais e seus jagunços faziam as leis em cada uma das regiões, controlavam e fraudavam as eleições, determinavam quem podia viver ou morrer nos seus domínios. Revelou a falta de infraestrutura e as doenças que atingiam a população e denunciou o poder da velha ordem agrário-exportadora, que criou uma República oligárquica e aprofundou uma estrutura social perversamente desigual. Constatou também que o Estado não existia para a maioria da população, mas apenas para as classes dominantes, que usavam e abusavam do aparato estatal para manter seus privilégios.
O Brasil de nossos dias tem uma imensa dívida com a lendária Coluna Invicta, como diz o historiador Hélio Silva, citado no livro de Nelson Werneck Sodré: “Há, porém, um lado que supera e absorve o lado guerreiro, é a significação política. É a grande marcha que vai despertar o sertão, alertar a cidade, fortalecer os fracos e enrijecer os fortes. Sem a Coluna Prestes o Brasil seria uma colcha de retalhos, dividido pelo domínio das oligarquias”. A Coluna teve também uma importância especial para o imaginário popular brasileiro. Muitas lendas surgiram em torno da Coluna, que eram contadas entre os populares: dizia-se que os insurgentes tinham uma máquina portátil para fabricar balas e que Prestes era adivinho porque sabia sempre onde se encontravam as forças federais e por isso estava sempre prevenido das intenções de seus inimigos. Outros afirmavam que os combatentes tinham o corpo fechado e, portanto, eram imunizados contra as balas. No campo intelectual, a Coluna influenciou até mesmo a literatura regional, com Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, além do pensamento social com Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré, entre outros.
Mas essa epopeia extraordinária e heroica é pouco conhecida pelas novas gerações e pouco investigada pela academia em função da política anticomunista das classes dominantes, que procuram permanentemente, de todas as formas, colocar no esquecimento as insurgências que questionam os poderosos, principalmente a Coluna Prestes, cuja trajetória de invencibilidade se tornou histórica. Mas esse esquecimento tem uma causa ainda maior porque o comandante da Coluna Invicta, o capitão Luís Carlos Prestes, posteriormente aderiu ao comunismo e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Como diz a historiadora Anita Prestes, filha do comandante: “A Coluna estava identificada com Prestes. E Prestes, a partir de 1930, estava identificado com o comunismo e a União Soviética. Por essa razão os donos do poder e seus mais novos colaboradores, os antigos ‘tenentes’, consideraram necessário destruir o mito do ‘Cavaleiro da Esperança’ … Para isso era necessário silenciar a história da Coluna … A Coluna era uma lembrança incômoda e perigosa: não só porque seu principal comandante e líder indiscutível de prestígio nacional se tornara comunista, como a Coluna também representava um exemplo de luta armada que a classe dominante não conseguira esmagar”.
O Brasil dos anos 20
Para compreendermos a importância histórica da Coluna Prestes é necessário reconstruir sumariamente o cenário político, econômico e social dos anos 20 do século passado. Nesse período, o Brasil vivia uma série de contradições: ao mesmo tempo em que emergiam sinais de modernização nas grandes cidades, como o rádio, os bondes elétricos, cinemas, automóveis, o desenvolvimento de uma pequena indústria e a energia elétrica, o país convivia com um sistema político arcaico, no qual imperava o poder do coronelismo; a maioria da população vivia no campo, marcada pela pobreza e o analfabetismo; além de uma estrutura agrária dominada pelos grandes proprietários de terras. “A realidade (do país) continuava eminentemente agrícola. Segundo o Censo de 1920, dos 9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões (69,7%) se dedicavam à agricultura; 1,2 milhão (13,8%) à indústria; 1,5 milhão (16,5%) aos serviços de uma maneira geral”. Ou seja, a vida social dos anos 20 era moldada por esses contrastes permanentes, o que viria a desembocar nas revoltas tenentistas, na Coluna Prestes e na revolução de 1930.
Vale lembrar ainda que em 1922 comemorava-se o centenário da independência, quando então foram realizados vários debates e balanços sobre os cem anos do Brasil independente. Também em 1922 ocorreu a Semana da Arte Moderna, movimento que refletia a emergência de uma consciência nacional na literatura e na arte e marcava o descontentamento de setores jovens das camadas médias urbanas contra os costumes políticos e as estruturas sociais e econômicas da época. Ainda em 1922 foi fundado o Partido Comunista Brasileiro, o que marcaria também um salto de qualidade na luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, que até então era dirigida pelos anarquistas. Também na década de 20 estava emergindo um processo industrial, favorecido pelos problemas causados pela Primeira Guerra Mundial, e a constituição de um proletariado fabril, enquanto no Rio e em São Paulo os jovens começavam a contestar a moral conservadora: fumavam, dançavam, discutiam política e literatura. Ou seja, havia um certo ar de ebulição social naquela sociedade em transição.
Como ressalta o economista Werner Baer: “O poder político estava nas mãos das classes proprietárias cujos interesses eram compatíveis com a divisão internacional do trabalho do século XIX … O efeito exercido pela Primeira Guerra Mundial não foi o de expandir e mudar a capacidade produtiva do Brasil, mas sim de aumentar a capacidade de produção de artigos têxteis e alimentícios originada antes da guerra”. Avaliando também esse período, o historiador Boris Fausto enfatiza o seguinte: “A década de 20 foi tão significativa quanto o conflito europeu, pois nela começaram a aparecer as tentativas de superar os limites da expansão industrial. Incentivadas pelo governo, surgiram duas empresas importantes: em Minas Gerais, a Siderúrgica Belgo Mineira, que começou a produzir em 1924; em São Paulo, a Companhia de Cimento Portland, cuja produção foi iniciada em 1926. Ao mesmo tempo, a partir da experiência e dos lucros acumulados durante a guerra, pequenas oficinas de conserto foram se transformando em indústrias de máquinas e equipamentos”. Vejamos detalhadamente cada um dos aspectos políticos, econômicos e sociais.
Aspectos econômicos: o eixo econômico do país girava inteiramente em torno da produção agrária, especialmente do café, que era responsável por mais de 70% das exportações e principal atividade econômica brasileira, proporcionando grande poder político aos estados produtores. Em outras regiões exercia também importante papel econômico a produção de leite e a produção de borracha, cacau, erva-mate e charque. A produção do café era organizada em grandes latifúndios, com mão de obra barata e relações de trabalho precárias, o que garantia custos baixos e expansão contínua da produção. O sistema produtivo estimulava a superprodução. Para evitar colapsos econômicos, a classe dominante pressionava o governo a intervir sempre que os preços caíam no mercado internacional. O mecanismo garantia que os fazendeiros não ficassem vulneráveis às oscilações do mercado, estimulando ainda mais o plantio, o que ampliava o problema estrutural da superprodução. Essa política implodiu com a crise de 1929. Do ponto de vista industrial, o governo concedia ajuda especial aos novos setores industriais, tanto que as indústrias recentes, como química e metalurgia, experimentaram um crescimento significativo. “Entre 1925 e 1929 os fabricantes de artigos não-têxteis testemunharam taxas de crescimento superiores à média da indústria”, diz Baer.
Aspectos sociais no campo. A base social da produção agropecuária era o latifúndio, que no interior do Brasil exercia a autoridade econômica, política e policial em seus territórios. Os/as trabalhadores/as viviam presos às relações de dependência: moravam geralmente nas fazendas ou em casas de pau-a-pique, contraíam dívidas impagáveis nos armazéns da fazenda, o que lhes obrigava a manter vínculos de lealdade com os patrões. Quando alguém se revoltava era ameaçado pelos capangas e impossibilitado de se deslocar livremente no território. Outros trabalhadores eram meeiros: trabalhavam a terra uma parte para si e outra para o fazendeiro. A grande maioria dos trabalhadores e das trabalhadoras vivia na miséria, sem escolas, hospitais, saneamento básico, professores para seus filhos e com ausência completa de direitos trabalhistas. A mortalidade infantil era altíssima e as doenças atacavam a maioria das famílias. Enfermidades como malária, varíola, febre amarela e tuberculose atingiam populações inteiras do campo. A miséria e a fome eram uma realidade cotidiana para milhões de trabalhadores/as do campo. Nas grandes metrópoles, um dos traços mais importantes foram as mudanças ocorridas com a imigração. “Cerca de 3,8 milhões de estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930”. Mesmo com os trabalhadores europeus, as condições de trabalho não eram das melhores e ocorreram muitos conflitos com os donos do café, acostumados a lidar com a mão de obra escrava. No entanto, ao longo das décadas seguintes, muitos imigrantes alcançaram boas posições na sociedade brasileira, e alguns deles se tornaram grandes industriais, mas os/as trabalhadores/as negros/as continuaram na miséria, sem terra e sem perspectivas.
Aspectos políticos. O sistema político da República Velha na década de 20 era estruturado através da chamada política dos governadores, que reconhecia a autonomia dos governos regionais, mas em contrapartida todos deveriam agir em coesão com o poder central. E o poder central era exercido, alternadamente, por representantes dos Estados de São Paulo e de Minas Gerais, esquema que ficou conhecido como política do café com leite. Em termos práticos, essa política dava poder aos chamados “coronéis”, que mandavam e desmandavam nas suas regiões, consolidando o poder das oligarquias. Esses “coronéis” tinham os chamados “currais eleitorais” em seus domínios, onde os votantes eram mantidos sob vigilância até atender a vontade do coronel, mecanismo que era conhecido como “voto de cabresto”. Nas cidades, as fraudes eram frequentes, tanto no alistamento dos eleitores quanto no reconhecimento dos eleitos. E como última instância, existia ainda uma “Comissão de Verificação”, que podia anular a eleição de um parlamentar. A população em geral encarava as eleições como um jogo das classes dominantes e pouco se interessava pela votação. “A percentagem de votantes oscilou entre um mínimo de 1,4% da população total do país (eleição de Afonso Pena em 1906) e um máximo de 5,6% (eleição de Júlio Prestes em 1930)”. Em outras palavras, o sistema oligárquico da década de 20 era uma estrutura organizada desde os coronéis do interior até os mais altos cargos da República para manter o poder das oligarquias agrário-exportadoras.
A emergência dos tenentes
Enquanto a oligarquia se aferrava ao poder, uma série de fenômenos começavam a modificar o cotidiano das grandes cidades, especialmente seus polos mais dinâmicos, como São Paulo e Rio de Janeiro, impulsionados pela urbanização, aumento dos negócios e da burocracia, novas formas de lazer e novos estilos de sociabilidade. As indústrias cresciam em São Paulo, enquanto os serviços aumentavam no Rio de Janeiro. Surgiam novos bairros, serviços por bondes e luz elétrica. Os cinemas se espalhavam por várias regiões e se tornavam espaços de convivência social, assim como bares e cafés. Apareceram também as revistas difundindo política, moda, humor e cultura. E o rádio começava a se tornar um aparelho comum nas residências e seus programas possuíam cada vez mais audiência. O futebol se consolidava como esporte nacional e se expandia para os bairros populares. As mulheres conquistavam mais autonomia, usavam cabelos curtos, roupas mais leves e o operariado começava a se organizar em sindicatos.
Essas novas relações sociais e econômicas estavam em contradição com a velha ordem oligárquica e isso podia se notar nos debates políticos, nos movimentos culturais e no descontentamento de vários setores da população. Foi neste contexto que a jovem oficialidade do Exército começou a questionar a ordem oligárquica e seus costumes políticos e conspirar nos quartéis. Vale lembrar que, mesmo com vários setores descontentes, não existia nenhuma organização política ou sindical capaz de transformar o descontentamento em força política disposta a romper com a velha ordem. A própria oligarquia dissidente, apesar de descontente, se adaptava em relação às regras do jogo e da ordem estabelecida. Como única força organizada em uma instituição, os tenentes se transformaram em vanguarda das forças políticas que queriam derrotar o poder da oligarquia, muito embora suas reivindicações políticas se resumissem ao patriotismo, moralidade política, voto secreto e eleições livres.
Como ressalta Anita Prestes: “Os tenentes substituíram os inexistentes partidos políticos de oposição aos governos oligárquicos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes … Na verdade, o clima revolucionário instalado no Brasil causou um forte impacto na juventude militar que, tanto por sua origem social quanto pelas suas condições de vida, estava estreitamente ligada às camadas médias urbanas, sofrendo influência do clima de radicalização de tais setores … Os tenentes reuniam uma série de condições específicas que permitiram sua transformação na vanguarda política da luta contra o domínio oligárquico … Além de disporem de armas, estavam organizados numa instituição de caráter nacional – as Forças Armadas – o que lhes propiciava o estabelecimento de contatos em todo o país, fator de grande importância considerando-se a desarticulação dos demais setores populacionais”.
O primeiro levante dos tenentes contra o governo oligárquico realizou-se no Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1922, e ficou conhecido como “Os 18 do Forte”. Nessa rebelião, os jovens militares buscavam impedir a posse do presidente eleito num pleito que consideravam fraudulento. Os insurgentes planejavam uma rebelião de maior amplitude, envolvendo diversos quartéis no país, mas somente o Forte de Copacabana se rebelou. Cercado pelas forças legalistas, a maioria dos militares que inicialmente aderiram ao levante recuaram, sobrando apenas 18 rebelados, incluindo dois civis, que decidiram enfrentar o governo até o fim. Saíram do quartel e caminharam pela praia de Copacabana, onde foram esmagados pelas forças legalistas, sobrevivendo apenas dois dos 18 jovens oficiais rebeldes – Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Mesmo derrotada, a revolta dos 18 do Forte tornou-se o movimento fundador do tenentismo e inspirou as insurreições posteriores dos jovens oficiais.
Em 5 de julho de 1924, novamente os tenentes se sublevaram, desta vez em São Paulo, liderados pelo general Isidoro Dias Lopes e pelo major da Força Pública paulista Miguel Costa. A insurreição denunciava o domínio oligárquico, a fraude eleitoral e buscava depor o presidente Artur Bernardes. A rebelião conquistou rapidamente as áreas centrais da cidade, ocupando bairros e montando trincheiras em várias regiões. Nestas circunstâncias, o governador do Estado fugiu. O governo federal respondeu com brutalidade, utilizando artilharia pesada e bombardeando vários bairros densamente povoados. Estima-se que entre 500 e 800 civis e militares foram mortos, além de milhares de feridos e desabrigados. Mesmo inicialmente bem sucedidos, os insurgentes não conseguiram resistir na capital e recuaram para o interior, iniciando uma marcha até o Paraná, sempre perseguidos pelas tropas legalistas, até se unirem às forças gaúchas sublevadas, chefiadas pelo capitão Luís Carlos Prestes. Embora militarmente derrotados em São Paulo, o movimento evidenciou a crise da República Oligárquica e, ao se unir às forças gaúchas, realizou uma das maiores epopeias militares do Brasil e possivelmente do mundo.
A coluna Prestes e a guerra de movimento
A epopeia da Coluna Prestes teve início quando os jovens oficiais de Santo Ângelo se levantaram contra o domínio oligárquico, sob o comando do capitão Luís Carlos Prestes e do tenente Mario Portela. A estes insurgentes se juntaram as tropas dos Maragatos gaúchos, ocasião em que decidiram, por razões estratégicas, entrincheirar-se em São Luís Gonzaga. “O levante foi cuidadosamente preparado. Prestes já amargara antes o fracasso do levante de 1922 … Não queria incorrer nos mesmos erros e se cercou de precauções. Em setembro, procurou o comandante do batalhão de Santo Ângelo, major Eduardo Siqueira Montes, e pediu demissão. Era uma forma de ficar livre para conspirar … O levante foi um sucesso: levantamos Santo Ângelo, São Borja e São Luís. Só não foi um sucesso maior porque muitos oficiais, na medida em que os problemas iam surgindo, resolveram fugir para a Argentina”, dizia Prestes.
Com grande mobilidade, ousadia e manobras táticas, os rebelados seguiram enfrentando as forças federais até chegar a Santa Catarina. Movendo-se com dificuldades, com pouco alimentos e muitos seguindo a pé, os insurgentes alcançaram o Oeste do Paraná, onde, em abril de 1925, se encontraram com os tenentes rebeldes de São Paulo, momento em que se confraternizaram e definiram seguir pelo interior do país, para manter acesa chama da revolução e à espera de novos levantes Brasil afora. A partir daí começava a lendária marcha daquilo que posteriormente passou-se a denominar Coluna Prestes e à qual se incorporaram os tenentes paulistas comandados por Isidoro Dias Lopes e Miguel Costa. Eram apenas 1.500 combatentes, mas todos dispostos a lutar para derrubar o governo de Artur Bernardes.
Em um país dominado pelas oligarquias regionais, coronéis com exércitos particulares e uma estrutura que afastava o povo das decisões econômicas e políticas, a Coluna emergiu para a população pobre como a possibilidade de se insurgir contra o atraso e o mandonismo das classes dominantes. A Coluna se distinguiu das experiências militares até então conhecidas porque combinou uma força motivada e extremamente disciplinada com uma tática militar de guerra de movimento, elaborada por Prestes, o que lhe possibilitou cruzar os sertões, a caatinga, os pântanos, as florestas, os rios caudalosos, aparecer e desaparecer diante do inimigo como um fantasma, sem nunca ser derrotada. Enfrentou fome, doenças, emboscadas e batalhas com forças muito superiores em número de homens e armamento. Mas a genialidade de seu comandante militar, Luís Carlos Prestes, possibilitou que a Coluna se mantivesse viva e combatente. Isso só foi possível porque a Coluna mantinha três princípios fundamentais da guerra de guerrilhas: mobilidade, apoio popular e convicção política.
Enquanto as forças federais se moviam lentamente, dentro da estratégia tradicional da lógica militar, dependendo de estradas, ferrovias e equipamento pesado, a Coluna marchava nas mais difíceis condições por regiões inóspitas, mas numa velocidade que surpreendia e desorientava seus perseguidores, criando um estilo de guerra irregular que posteriormente seria implementado por guerrilhas em todo o mundo. Mas a Coluna não poderia ter realizado essa epopeia se não tivesse apoio da população. Por onde passavam, os insurgentes davam exemplo de retidão: os combatentes respeitavam as populações, prometiam fim dos abusos dos coronéis, proibiam saques, violência contra os moradores, especialmente contra as mulheres, e pagavam pelo que consumiam. Essa conduta, mantida durante todo o percurso da marcha, estabeleceu uma relação de confiança e solidariedade em torno da mística da Coluna, apesar da propaganda que os coronéis faziam para apavorar a população, dizendo que os insurgentes eram assaltantes e que queriam matar a população.
Foi dessa forma que a Coluna Invicta percorreu cerca de 25 mil quilômetros por todas as regiões do país, o equivalente a mais da metade de uma volta à terra. Enfrentou milhares e milhares de soldados das forças federais escapando de cercos perigosos, desorientando os soldados inimigos e vencendo batalhas memoráveis. A estratégia de Prestes era criativa e engenhosa, típica da guerra popular: nunca realizar combate frontal onde o inimigo tivesse maior vantagem em forças e armas, não cair em armadilhas e não desperdiçar vidas. Não há paralelo, no Brasil e no mundo, de uma marcha militar tão longa, tão resistente, tão popular e tão politicamente transformadora, pois a Coluna deixou marcas profundas na história e na imaginação política da população, mesmo que até hoje as classes dominantes tentem colocar no esquecimento essa lendária façanha histórica. A Coluna foi também uma escola de formação ética, política e militar, ao mesmo tempo em que realizou a denúncia das estruturas oligárquicas do Brasil dos poderosos. Por isso mesmo, seu comandante é conhecido até hoje como o Cavaleiro da Esperança.
Politicamente, a Coluna também expressava as contradições de sua época. O tenentismo, enquanto movimento geral, não era socialista e buscava reformas dentro da ordem, tanto que a grande maioria dos tenentes terminaram suas vidas como gestores da própria ordem. No entanto, ao longo da marcha, Luís Carlos Prestes amadureceu a compreensão da realidade brasileira, a partir da própria vivência pelo interior do Brasil, e fez a opção definitiva pela revolução socialista, ingressando no Partido Comunista Brasileiro, no qual foi seu secretário geral por mais de quatro décadas. Portanto, nestes 100 anos do início das lutas da Coluna Invicta, é fundamental honrar o Cavaleiro da Esperança e todos os combatentes que lutaram sob seu comando, honrar o povo pobre do interior do Brasil que lhe deu apoio e reverenciar, acima de tudo, a memória de todos aqueles que tombaram na luta contra a opressão e contra o domínio das classes dominantes brasileiras.
Viva os 100 anos da Coluna Prestes!
Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição e Secretário Geral do PCB.
