PCB e o trabalho clandestino nas fábricas (2)
Um plano detalhado de inserção no proletariado
Edmilson Costa – doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB.
O jornal Voz Operária de janeiro de 1969 destaca com veemência que o AI-5 teve como objetivo golpear o movimento operário para ampliar as arbitrariedades contra os sindicatos e, inclusive, contra a Justiça do Trabalho. Portanto, os trabalhadores e as trabalhadoras encontravam-se diante de condições muito mais difíceis que o período anterior e que, naquelas circunstâncias, a unidade e a organização da classe assumiam um papel ainda mais decisivo na luta contra a nova ofensiva da ditadura. O jornal registra ainda que as novas medidas tomadas pelo regime foram uma reação à movimentação e às greves dos trabalhadores e trabalhadoras na luta contra o arrocho salarial:
“O ano de 1968 marcou um nível mais alto nas lutas dos trabalhadores, depois de enfrentarem e superarem enormes dificuldades impostas pelo golpe de abril de 1964. Em vários Estados foi golpeada a política de arrocho salarial. Numerosas e vigorosas greves foram desencadeadas em importantes setores profissionais, como bancários, metalúrgicos, gráficos e assalariados agrícolas. Libertos das intervenções, grande parte dos sindicatos começou a passar às mãos de verdadeiros representantes dos trabalhadores. Concorridas e movimentadas assembleias eram realizadas. Importantes encontros de âmbito regional e nacional eram promovidos, contribuindo para uma unidade mais ampla dos trabalhadores em torno de programas comuns”.
“Nessa conjuntura e diante das novas dificuldades, um novo e árduo caminho deverá ser perseguido”, diz o número seguinte do jornal. Mesmo sem abrir mão do trabalho sindical, apesar da ditadura querer transformar as entidades em instituições recreativas, a hora era de redobrar esforços para a organização do trabalho no interior das empresas. “… Os trabalhadores devem ter certeza de uma coisa, que a base de sua organização é a empresa. Podem fechar os sindicatos ou limitar seu poder de decisão. Entretanto, as fábricas eles não fecham. Sem deixar um só momento a luta pelo fortalecimento de seus sindicatos, através de uma maciça sindicalização e participação em suas atividades, os trabalhadores devem intensificar cada vez mais a sua organização nos locais de trabalho. Não importam as formas de organização, se conselhos sindicais ou comissões sindicais, etc. O importante é unir e criar as condições mais elementares de organização. No processo de lutas por suas reivindicações, quer no âmbito das empresas ou das reivindicações gerais, os trabalhadores criarão as condições … para o desenvolvimento de lutas de lutas vigorosas da classe operária e do nosso povo contra a ditadura implantada em nosso país desde abril de 1964”.
Por iniciativa do Comitê Central (CC), em outubro de 1968, foi realizado um ativo sindical nacional para se debater o desafio histórico de construção do Partido no interior da classe operária e, especialmente, nas grandes empresas. Em fevereiro de 1969 o próprio CC formulou uma resolução pela qual determinava a todos os Comitês Estaduais e Territoriais a construção do Partido nas empresas, “fundamentalmente nas grandes empresas”, bem como estimulava todas as organizações partidárias a realizarem encontros visando a permuta de experiências e as formas de organização do Partido nas empresas.
Na edição de julho de 1969, a Voz Operária divulgou um longo documento onde fundamenta o desafio histórico aprovado no VI Congresso, reafirmando a concepção de que a revolução é um fenômeno de massas e não pode ser guiada pela ação imediatista da pressa pequeno-burguesa; realiza um diagnóstico das modificações ocorridas na sociedade brasileira, tais como a dinâmica do processo de industrialização, a concentração do proletariado nas grandes empresas e o aumento dos assalariados no campo, bem como destaca a proletarização de vastos setores da pequena burguesia e o crescimento desses setores nos centros urbanos. Essas modificações ocorridas no capitalismo brasileiro – ressalta o documento – não solucionaram os problemas que afligiam a população. Por isso era fundamental organizar os trabalhadores e as trabalhadoras nos locais de trabalho, preferencialmente nas empresas industriais.
Especificamente no que se refere à organização no interior das empresas, o documento realçava que o trabalho junto à classe operária é determinante porque o proletariado fabril, ao estar integrado no processo de produção e ser explorado, reúne a característica de classe unida na luta por suas reivindicações e pelo socialismo de maneira mais firme e consequente que qualquer outra classe. Por isso, o Partido deveria centralizar sua organização nos locais de trabalho da classe operária.
“Na grande empresa a exploração dos trabalhadores é muito maior, devido ao desenvolvimento tecnológico e à organização do trabalho, que contribuem para extrair do operário o máximo de suas forças. O trabalhador da grande empresa pode verificar com relativa facilidade como ele é explorado no trabalho, inclusive pelo seu esgotamento físico, e como se acumula a riqueza dos donos das empresas. A grandeza da fábrica e a variada complexidade de suas máquinas deixam claro para os operários porque eles não detêm os meios de produção. Trabalhando juntos, centenas e milhares de pessoas, torna-se mais fácil conhecerem-se entre si; sofrendo a mesma exploração, subordinados às mesmas normas e regulamentos do grande patrão, o caminho para a unidade, a organização e a solidariedade fica mais claro e melhor para ser trilhado. Esses fatores fortalecem a consciência de classe, bem como estimulam o ódio aos patrões exploradores, aguçando a luta de classes e a necessidade de transformar esse sistema social e político numa sociedade em que não haja exploração do homem pelo homem”.
Para o PCB, a política de concentração nas grandes empresas não significava o abandono da organização nas empresas de serviços, comerciais, escolas ou escritórios ou junto aos trabalhadores rurais, afinal esses outros setores do proletariado são aliados do proletariado fabril no processo da revolução brasileira. A orientação do documento era de que esse trabalho fosse implementado a partir das reivindicações mais imediatas dos trabalhadores, o que seria de mais fácil compreensão e possibilitaria aproximar os trabalhadores do Partido.
“Aqueles que ingressam no Partido o fazem por muitos motivos, porém, a maioria não conhece a ideologia do Partido, nem assimila sua política de organização. A nossa primeira tarefa deve ser a de formar a consciência partidária entre os novos recrutas, através do trabalho ideológico e político em termos teóricos e práticos e de forma sistematizada. Sem isso, o número de ativistas entre os filiados será sempre inexpressivo … O trabalho de educação é decisivo nessa tarefa, porém é preciso compreender como educação não apenas os cursos, mas toda a atividade partidária, a vida do Partido, isto é, a vida revolucionária”. Entre outras maneiras de formar a militância, o documento recomendava o estudo de livros e revistas, os círculos de estudo, seminários e cursos. Além dessas tarefas, o Partido fez ainda um conjunto de recomendações aos órgãos intermediários no sentido de que deveriam estudar as condições dos seus locais de atuação, as empresas onde seria realizado o trabalho e os problemas mais sentidos pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras, porque só assim poderiam se aproximar do operariado e cumprir o desafio história dessa construção.
Estavam assim criadas as condições para a construção prática do desafio histórico. Isso foi realizado através da elaboração de um plano detalhado sobre a construção de bases comunistas nas grandes empresas. Trata-se do documento de seis páginas no qual se estabelecem os princípios, objetivos, diretrizes específicas, prazos e recomendações gerais, ou seja, um roteiro pormenorizado para a implementação do plano. Datado de fevereiro de 1970, o documento se intitula “Roteiro do Plano de Construção e Consolidação do Partido nas Empresas (Placconpe)” e seus redatores o dedicam ao centenário de Lenin. Mais uma vez o documento reafirmava que a construção do Partido nas grandes empresas, tanto nas empresas industriais, dos transportes, comunicação, comerciais, de serviços e agroindustriais e agropecuária e entre os assalariados rurais, era uma tarefa estratégica para a luta não só para derrotar a ditadura, mas para criar as condições visando a realização da revolução brasileira.
O Plano estabelecia para as organizações de base do Partido um prazo de dois anos para a implementação das tarefas e definia que cada escalão partidário deveria realizar uma planificação específica para o trabalho de organização das bases em sua área de atuação, bem como determinava que o Comitê Central deveria realizar uma política de destinação de recursos para a construção e consolidação do plano. Como o documento enfatizava, para que fosse realizado um processo de construção e consolidação organizativa, presumia-se que já existiam bases organizadas e que o plano se encarregaria de absorver as experiências em curso e definir um trabalho metódico e planejado a partir de então.
Para os redatores do documento, o Placconpe abriria caminho para a aplicação plena do desafio histórico definido pelo VI Congresso e contribuiria para organizar e conduzir as massas para tarefas como a luta pela conquista das liberdades, a anistia geral, a convocação de uma assembleia constituinte e a formação de um governo das forças antiditatoriais. Nesse processo, diz o documento, é fundamental garantir uma posição independente da classe operária que, com essas diretrizes, prosseguirá sua luta até a conquista do socialismo no Brasil. Em termos práticos, o Placconpe fixava as seguintes diretrizes para a construção do Partido entre os trabalhadores nos seguintes setores: “Nas massas das empresas industriais, fundamentalmente nas grandes empresas; nas empresas de transporte, comunicação e nos grandes empórios comerciais; nas empresas agroindustriais e agropecuárias (bem) como entre assalariados e semi-assalariados agrícolas, fundamentalmente nas grandes concentrações; nos serviços públicos, nas universidades e escolas técnico-profissionais, incluindo professores e estudantes fundamentalmente”.
O documento esclarecia que era importante fortalecer as organizações já existentes nas empresas e formar novas organizações de base dentro de uma política de massas, visando ligar essas células clandestinas às organizações de massa nas empresas e nas categorias profissionais. Entre os pré-requisitos para que um plano dessa natureza tivesse êxito, era necessário um diagnóstico sobre a área de atuação de cada organização de base, sobre as empresas onde seria realizado o trabalho, bem como em relação à qualidade do militante a ser recrutado (operário, líder de massas, jovem, técnico), de forma a desenvolver uma política de construção dentro da cultura comunista, especialmente levando em conta o centralismo democrático.
O Placconpe recomendava ainda que o trabalho de construção nos locais de trabalho deveria ser combinado com o fortalecimento dos sindicatos nas empresas e junto aos trabalhadores e às trabalhadoras, além do necessário trabalho ideológico de formação para elevar a consciência revolucionária dos quadros dirigentes de forma a estimular iniciativas e firmeza nas ações de massa. Outro elemento importante do plano era o processo de planificação e assimilação da linha política elaborada no VI Congresso e o trabalho de solidariedade entre trabalhadores e trabalhadoras.
“Planificar, em cada escalão partidário, a formação de direção de base da empresa e também de camponeses e estudantes. Ajudá-los a assimilar e aplicar a linha política do Partido e, igualmente, a formação de quadros, incluindo cursos, círculo de estudos, palestras, debates e pesquisa e etc. A planificação dessa medida deve ser iniciativa dos órgãos intermediários, com o apoiamento das organizações de base … Orientar a organização e o funcionamento da solidariedade de massa e a prática do internacionalismo proletário em todos os escalões partidários, ganhando as bases para a participação ativa do trabalho de solidariedade”.
O Plano também definiu um roteiro de discussão e implementação das tarefas, ressaltando que esse trabalho estaria subordinado ao Comitê Central. As discussões deveriam começar nos Comitês Estaduais, Territoriais e nas Grandes Empresas, onde seriam aprovados os objetivos, diretrizes e metodologias de trabalho e, posteriormente, essas discussões seriam realizadas pelos órgãos intermediários e de base, que deveriam especificar as tarefas de cada órgão na construção partidária, entre as quais as seguintes tarefas:
“Relacionar as empresas existentes na área da organização, de acordo com o grupo de empresas (A, B C, e D), selecionar aquelas que devem ser objetivo de planejamento e definir as que são fundamentalmente importantes para a política de concentração … Selecionando o que fazer … onde e como, quem e quando fazer”. Previa ainda a mobilização de militantes para que o processo de discussão envolvesse a todos, de forma a que pudesse implementar o plano de baixo para cima, garantindo que os objetivos nacionais fossem resultado do debate realizado por cada base. Com essa estrutura de trabalho, o Placconpe advertia também para a necessidade de organizar os trabalhadores e as trabalhadoras tanto para o trabalho legal quanto ilegal, bem como observar com atenção as normas de segurança e vigilância.
Finalmente, o Plano estabelecia o prazo de dois anos para o cumprimento dessas tarefas, divididos em dois períodos, envolvendo a preparação e execução: “O período de preparação é de seis meses – inicia-se em primeiro de maio e termina em 31 de outubro de 1970. O período de execução é de um ano e meio – inicia-se em primeiro de novembro de 1970 e termina em 30 de abril de 1972. O período de execução está dividido em três fases – de seis meses cada uma – para efeito de controle global em todo o território nacional” . Após o estabelecimento dos prazos, estabelecia-se um conjunto de medidas práticas orientando a forma com que as organizações do Partido deveriam fazer para aplicá-lo: “Recrutar e organizar os trabalhadores assalariados nos quatro grupos de empresas objetivados de acordo com os pré-requisitos estabelecidos; estruturar novas organizações de base de empresas e consolidá-las, fortalecendo as existentes e as novas, com a prática do trabalho ideológico e político das massas; recrutar e organizar nas empresas de âmbito nacional de grande região geográfica à base de planos específicos, sob o controle do CC (Comitê Central, EC) e apoiados nos órgãos estaduais e municipais, onde se encontram instalados, objetivando a construção e consolidação de cada organização”.
Prossegue o documento de orientação do trabalho nas grandes empresas: “orientar os membros do Partido nas organizações de base a filiarem-se às entidades de massa da empresa ou categoria profissional e planificar na base e nos órgãos intermediários a formação e funcionamento das frações (órgão coordenador de uma determinada tarefa de uma categoria, EC); organizar o trabalho de finanças na organização de base e concentrar no Mês Nacional das Finanças (outubro); adotar no CC e em todos os órgãos intermediários uma política correta de destinação dos recursos financeiros para a construção e consolidação do Partido nas empresas, tendo em vista a política de concentração”. O Placconpe previa ainda uma política de formação dos militantes, um trabalho de agitação e propaganda pelas bases e a distribuição do jornal clandestino do Partido, a Voz Operária, entre os trabalhadores.
Bellentani, o ferramenteiro da revolução
A região em que o PCB apostou como espaço-piloto para a implementação desse projeto foi o ABC Paulista e, especialmente, a maior empresa metalúrgica da região, a Volkswagen, que na época tinha cerca de 30 mil operários. A decisão de centralizar o trabalho no ABC estava dentro da análise da conjuntura brasileira e do desenvolvimento industrial que o Comitê Central tinha elaborado em resoluções anteriores para justificar a construção partidária nas grandes empresas. Isso porque nessa região encontravam-se praticamente todas as empresas automobilísticas, as maiores metalúrgicas e produtoras de autopeças do país, bem como o maior contingente do proletariado. Como o desafio histórico era a construção de um forte e numeroso Partido na classe operária, a decisão de centralizar o trabalho no ABC era o caminho natural do PCB. Além disso, o Partido tinha uma longa tradição na região. Em 1947 o marceneiro Armando Mazzo foi eleito prefeito de Santo André, tornando-se o primeiro prefeito comunista do Brasil. De igual forma, o PCB sempre teve bases operárias na região, mesmo após as perseguições realizadas pela ditadura. Essa tradição de luta na região possibilitava ao Partido ter um conhecimento melhor que outras organizações no teatro de operações onde iria desenvolver a construção das células comunistas. Por isso, o ABC foi transformado em local privilegiado para essa operação política junto à classe operária contra a ditadura.
Vejamos o que nos informa o principal organizador do trabalho político na região, o ferramenteiro da Volks, Lucio Bellentani, que também era o secretário político do Comitê de Empresa da Volks e principal organizador clandestino dos operários na região. “Entrei para a Volks em setembro de 1964 e no início de 1965 o Antônio Turini, que já trabalhava na empresa e era militante do PCB, me recrutou. A partir daí começamos nossa militância. Mas é importante dizer que meu pai e minha mãe eram militantes do PCB. No início, começamos a discutir a necessidade de organizar o Partido na fábrica e no Município, mas essa organização visava inicialmente mais o trabalho de oposição sindical porque o Sindicato dos Metalúrgicos, naquela época, era dirigido por um grande pelego, o Paulo Vidal”. O Partido chegou a lançar, em 1970, uma chapa de oposição no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Essa chapa era composta por militantes do Partido e por integrantes da cooperativa dos trabalhadores, mas não obteve êxito na eleição. “Uma coisa interessante nessa eleição é o fato de que Lula era da outra chapa e foi eleito como suplente à Federação dos Metalúrgicos”.
A informação de que Paulo Vidal era um pelego e aliado dos patrões e da ditadura pode ser confirmada pela Voz Operária de junho de 1970, em matéria assinada por Amador Bueno, na qual ele relata uma série de ações de Vidal contra a classe operária e, pelos dados objetivos que expõe, devia ser um militante que estava presente no movimento sindical da cidade e nas assembleias do sindicato. “O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, além de se colocar a serviço das empresas, é um agente do aparelho policial e repressivo do governo, remetendo para o SNI, DOPS e etc., relatórios das assembleias, como fez na assembleia do dia 20 de fevereiro último, à qual tratava de debater o reajuste salarial do último dissídio coletivo … Na assembleia do Cine Anchieta … foi surpreendido com a participação de uma massa com mais de mil trabalhadores e percebendo que a esmagadora maioria defendia um reajuste de 35% (enquanto ele queria apenas 30%, EC) e a unidade com os demais metalúrgicos do interior do Estado, procurou manobrar, ganhar tempo e vencer pelo cansaço. Ficou ainda mais apavorado com o nível de consciência política demonstrada pelos trabalhadores que renderam um minuto de silencio em homenagem e solidariedade aos companheiros presos pela ditadura”. Percebendo que estava derrotado, o agente patronal foi manobrando, desde as 19:15 horas e só à meia noite, quando a massa cansada e irritada se havia retirado em sinal de protesto e a assembleia estava reduzida a 141 pessoas, é que permitiu a votação das resoluções”. Só assim Paulo Vidal teria conseguido aprovar suas resoluções, inclusive impedindo a recontagem dos votos. As resoluções eram tão absurdas que o próprio Tribunal Regional do Trabalho não as aceitou e julgou o processo coletivo em conjunto com os metalúrgicos do interior, que aprovaram os 35%.
Na região do ABC concentrava-se não só o núcleo duro da classe operária, com centenas de milhares de trabalhadores sendo que a Volks era a maior fábrica da região. A organização do Partido na Volks, conta Bellentani, envolvia paciência, segurança e vigilância, afinal não se pode esquecer que o país estava vivendo uma ditadura. O Comitê Central, empenhado na implementação do projeto, prestava muita assistência às lideranças comunistas da região, com orientação e muitos cursos de formação política. Bellentani conta que, entre os fatos que inspiraram a organização na Volks, estavam as leituras que fazia da guerra do Vietnã e a maneira como o general Giap organizava os guerrilheiros, de forma compartimentada, em plena guerra. Então Bellentani deduziu que, se era possível organizar guerrilheiros nas selvas, debaixo de balas e bombas, também era possível organizar os trabalhadores numa ditadura.
E assim foi feito. “Então fomos realizando o trabalho de organização. A base foi crescendo. Muitas vezes a gente fazia reunião dentro da própria fábrica, às vezes no vestiário, nos banheiros. Essas reuniões eram mais para a distribuição de tarefas e material, entrega de boletins, preparação para as assembleias no sindicato. Mas isso era feito com o máximo de cuidado: quando nos reuníamos, deixávamos alguém na porta dos vestiários vigiando. Se aparecesse qualquer estranho, o companheiro assobiava e a gente se dispersava”.
Esse processo de organização foi se tornando cada vez maior com o recrutamento de novos militantes e o Partido chegou a ter organização de base em quase todas as seções da empresa. “Em 1970 e 1971 nós distribuíamos cerca de 300 exemplares da Voz Operária no interior da fábrica e tínhamos cerca de 200 operários contribuindo mensalmente para o Partido. Inclusive estávamos planejando comprar uma gráfica off-set, que na época era uma coisa muito avançada. Já tínhamos dinheiro para isso … As bases eram organizadas pelas seções com no máximo seis pessoas.
A organização era compartimentada, sendo que os trabalhadores-militantes não se conheciam e apenas o responsável de cada base tinha contato com alguém do comitê dirigente dos comunistas da empresa. “Esse Comitê era constituído pelos seguintes camaradas: Lucio Bellentani, Antônio Turini, Afonso Espanhol, Ane Marie e Henrich Plage. Estes dois últimos eram alemães, mas viviam há muito tempo no Brasil e o Heinrich Plage era gerente de um departamento da fábrica, o que nos permitia obter informações sobre os planos da empresa. Também fazíamos boletins no reco-reco, que era um mimeógrafo de mão. Mas a partir do momento em que a segurança da empresa começou a encontrar material nosso, aumentou a segurança e eles passaram a fazer revista dos trabalhadores na entrada e na saída da fábrica”.
Como a empresa identificou que algo estranho estava acontecendo, começou também a se organizar para intensificar a vigilância e a repressão aos trabalhadores. Dessa forma, o Comitê da Fábrica traçou uma nova estratégia tanto para a continuidade do trabalho dentro da empresa quanto em relação à segurança dos militantes. Quando tinham que distribuir algum material para os trabalhadores e as trabalhadoras ou fazer panfletagem dentro da empresa, era feito um planejamento com vários dias de antecedência para que o material entrasse com segurança. “Decidimos que os militantes deveriam levar o material dentro das marmitas, enrolados num saco plástico embaixo do arroz ou do feijão. Aí íamos armazenando o material num fundo falso de um armário da ferramentaria até o dia em que iríamos distribuir. Nós tínhamos tanta atenção com a segurança que aqueles que companheiros atuavam no sindicato se reuniam em separado dos que atuavam somente na empresa. O processo de distribuição era o seguinte: botávamos nos ganchos e nas esteiras e o material ia rodando pela fábrica e os operários iam pegando. Distribuímos também nos pontos de ônibus onde passavam os operários”. Da Volks o trabalho foi se estendendo para outras grandes empresas da região: “Tínhamos gente na Williams, Mercedes, Motores Perkins, Rolls Royce, entre outras. Não eram tão organizados como na Volks, mas se espelhavam nesse trabalho que fazíamos na Volks e a assistências à organização nas outras empresas era feita pelos camaradas da Volks.”
Um dos elementos mais importantes na estratégia do PCB era a formação política, através da qual seria possível formar quadros operários dedicados à revolução, uma vez que o Partido avaliava que os operários geralmente traziam consigo concepções estranhas ao proletariado e, caso fossem deixados à própria sorte, não iriam além da consciência sindicalista. Por isso, era fundamental o trabalho de educação política, conforme assinala a Voz Operária de fevereiro de 1971. “A experiência tem demonstrado que, apesar de todas as dificuldades … é possível organizar bases do Partido nas grandes empresas. Entretanto, essas bases, em geral, só conseguem se consolidar na medida em que, ao lado do trabalho de organização, é levado à frente o trabalho de educação de seus membros”.
Nessa perspectiva, Voz Operária toma como exemplo o trabalho que estava sendo realizado no ABC paulista, muito embora numa linguagem cifrada para despistar a polícia. “A experiência de São Paulo tem demonstrado que uma atividade de massas concreta dentro da empresa – como tem sido o trabalho nos conselhos ou comissões sindicais ou, em alguns casos, o trabalho de agitação e propaganda em torno de problemas que estão afetando as massas da empresa em questão -, permite o recrutamento de novos membros para o Partido e a estruturação de novas bases. Daí em diante o trabalho de educação desses novos militantes, que atualmente está sendo feito em torno do estudo do ‘ABC do PCB’, adquire uma importância fundamental, uma vez que lhes permite a elevação do nível de conhecimento dos problemas do Partido e de alguns elementos de nossa teoria”. Ou seja, o trabalho de formação era fundamental para a educação ideológica da militância operária, contribuindo para impulsionar a ação tanto nas empresas quanto junto às massas.
Todo esse trabalho de organização caiu quando foi preso Amauri Dagnone, um antigo militante que atuava na área sindical e tinha conhecimento do comitê dirigente comunista da empresa. Ele não suportou as torturas e entregou seus camaradas. O primeiro a cair foi o principal dirigente, o próprio Bellentani, que começou a ser torturado dentro da própria empresa. Como Bellentani não colaborava com os torturadores, apesar da insistência de Amauri, que dizia que se ele não falasse a polícia o mataria, o próprio Amauri foi levado ao interior da Volks e foi apontando quem ele reconhecia como sendo do Partido. “Contando comigo, foram sete prisões na Volks, Antônio Turini, Afonso Espanhol, Heinrich Plage, Ane Marie, Geraldo e Rubens. A direção da base caiu. Mas eles não abriram nada, tanto que a organização na empresa não caiu toda, nem a organização no município.”
Essa organização só viria a ser desbaratada dois anos depois com a ofensiva realizada contra o Partido na chamada Operação Radar em 1974/1975, quando a militância na região e praticamente toda a militância nacional do Partido foi presa e quando também foi assassinado na tortura um terço do Comitê Central, o principal dirigente da Juventude Comunista, dois dirigentes do Comitê Militar, organizados na Polícia Militar de São Paulo, e dirigentes estaduais, jornalistas e operários como Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho.
Bellentani costuma contar um episódio que teria despertado a fúria não só da Volks, mas também da polícia política contra o Partido Comunista Brasileiro no interior da Volks. Foi exatamente no dia em que o então ditador Garrastazu Médici encarregou o ministro da Indústria e Comércio, Pratini de Morais, a representá-lo nas comemorações da fabricação de um milhão de carros pela Volks. Para tanto, confeccionou uma medalha (a Medalha do Fusca) para dar aos operários. Como o Comitê de Fábrica tinha informações a partir de um de seus membros, que era da gerência, os comunistas prepararam uma recepção especial dentro da Volks para as autoridades. Eles confeccionaram 10 mil panfletos, introduziram clandestinamente na empresa e, no dia do evento, os colocaram nas esteiras da fábrica na hora da comemoração. Enquanto as autoridades estavam comemorando, entre as quais o governador Abreu Sodré e o prefeito Paulo Maluf, o panfleto denunciando os problemas que os operários vinham sofrendo e a própria ditadura, corria pela esteira para espanto e indignação dos presentes. Além disso, o Comitê Comunista fez uma intensa campanha junto aos trabalhadores para que devolvessem as medalhas.
“Grande parte das medalhas foram devolvidas nas bancadas das chefias. Quando eu estava preso, os torturadores esfregaram na minha cara o jornalzinho que distribuímos naquele dia”. Com as prisões dos dirigentes operários do PCB no interior da Volks e, posteriormente, com o desmantelamento e prisões dos outros militantes durante a Operação Radar, o trabalho dos comunistas foi desbaratado na região do ABC, muito embora em São Caetano, o dirigente do Comitê Central do PCB, José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão de Lula, tenha sido por três vezes eleito para o Sindicato dos Metalúrgicos e em nenhuma conseguiu assumir por determinação da ditadura. Com essa operação, a polícia política conseguiu desmantelar todo o trabalho que o PCB tinha desenvolvido na região.
O trabalho de organização do proletariado nas grandes empresas, com a experiência acumulada no ABC, já tinha se espalhado para outras regiões operárias do país. Uma das últimas experiências exitosas deste trabalho foi a greve dos motoristas e cobradores de ônibus na cidade de São Paulo, realizada em 1974, sob a direção do PCB, tendo à frente o presidente do Sindicato, Alcides Bouno, militante do Partido. O PCB tinha já organização de base na CMTC (Companhia Metropolitana dos Transportes Coletivos, empresa pública municipal) e em empresas privadas, além de dirigentes da Federação dos Transportes. Conforme noticiado pela Voz Operária de junho de 1974, a greve ocorreu no dia dois de maio de 1974 e paralisou parcialmente a cidade, atingindo cerca de dois milhões de pessoas.
O movimento foi desencadeado em protesto contra o reajuste salarial determinado pelo Tribunal Regional do Trabalho, considerado insuficiente pelos trabalhadores. Para a Voz Operária, que noticiou o evento, o movimento obteve uma das maiores repercussões naqueles anos e demonstrou não só a insatisfação com a política salarial da ditadura, comprovando que os trabalhadores e as trabalhadoras já não suportavam mais os reajustes salariais abaixo da inflação, além de indicar a organização do Partido junto aos motoristas e cobradores de ônibus. Além disso, o jornal informou ainda que a população foi simpática ao movimento, porque possivelmente já não confiava nas promessas das autoridades governamentais. Como foi realizada essa greve na maior cidade do país, em pleno regime de terror e ofensiva para liquidar o PCB? O articulista anônimo da Voz Operária descreve com tantos detalhes a greve dos ônibus na cidade de São Paulo, cujo relato demonstra que era testemunha ocular ou participante dos fatos relatados pelo jornal.
“No dia 2 de maio a cidade foi parcialmente paralisada com uma greve de motoristas e cobradores das empresas particulares. Esse movimento teve profundas repercussões, pois milhares de operários não puderam ir ao trabalho. A greve foi total nas seguintes empresas: ‘Alto do Pari’, 11 linhas; ‘Empresa Paulista de ônibus’, cinco linhas; ‘Viação Urbana Penhas’, cinco linhas; ‘Empresa São Miguel’, dez linhas; ‘Cia. Auxiliar’, nove linhas; ‘Viação Itaquera’, duas linhas; ‘Penha-São Miguel’, 328 ônibus ficaram encostados na garagem. Segundo o sr. Paulo Marinho, diretor da CMTC, a greve atingiu uma área de 360 quilômetros quadrados, onde vivem dois milhões de pessoas”. Voz Operária prossegue na descrição detalhada da greve: “Na madrugada do dia 2, principalmente na Zona Leste de São Paulo, nos pontos de ônibus, as filas começaram a se formar … As filas começaram a crescer às quatro e meia da manhã nas ruas de São Miguel Paulista, Itaquera, Guaianazes e outros 20 bairros da Zona Leste, onde cerca de um milhão de pessoas usa diariamente o sistema de ônibus. No final da tarde, no Parque D. Pedro, onde se localiza o ponto final da maioria dos ônibus da Zona Leste, a cavalaria da Polícia Militar ocupou militarmente o local, a fim de impedir protestos populares”.
Um dos aspectos importantes desse movimento grevista foi o fato de que a greve interferiu no processo de trabalho de várias empresas da capital, na interrupção das aulas em colégios e faculdades e, especialmente, teve o apoio da população que, mesmo sendo privada do transporte para ir ao trabalho ou às aulas, compreendeu as razões dos trabalhadores e de suas reivindicações, conforme relata Voz Operária: “Dezenas de viaturas policiais foram mobilizadas para impedir o protesto dos passageiros. Pelos cálculos da CMTC só na Zona Leste deixaram de circular 1.282 ônibus. Milhares de operários não puderam ir ao trabalho ou chegaram com horas de atraso. Segundo um assessor da Federação das Indústrias (de São Paulo, EC) o movimento grevista representou uma queda razoável na produtividade de centenas de empresas. Milhares de estudantes também não puderam ir às aulas. Fato muito significativo foi a reação da população: poucas pessoas ficaram contra os motoristas e cobradores, porque a grande maioria reconheceu que era justo, pois sabem que os rodoviários ganham muito pouco, trabalham várias horas extras por dia em condições duras”.
Diante da greve e da disposição dos trabalhadores de enfrentar os patrões e a política de arrocho salarial, a ditadura procurou de todas as formas desarticular o movimento, mediante a censura aos jornais, que foram proibidos de noticiar a greve. A polícia política foi à casa daqueles que considerava líderes da greve e prendeu dezenas de motoristas. Diz Voz Operária: “Os jornais foram proibidos de dar uma notícia verdadeira sobre o que houve. As televisões receberam ordem de censura para nada dizerem. Mas a BBC de Londres, no mesmo dia, deu uma informação sobre o movimento grevista … As autoridades tudo fizeram para impedir o movimento. Desde a noite anterior, agentes do DOPS procuraram os motoristas e cobradores em casa a fim de ameaçá-los e levá-los para o trabalho. Todos os motoristas da polícia e da Prefeitura foram mobilizados para conduzir os ônibus. Mas em muitos casos se perderam nas ruas, pois a maioria não conhecia os itinerários dos ônibus. A polícia também prendeu dezenas de motoristas que consideravam os cabeças da greve”. Mesmo com toda repressão, essa greve histórica e relativamente anônima para as novas gerações e ausente dos livros oficiais de História, demonstrou que, mesmo nas mais dramáticas condições, a classe trabalhadora tem capacidade de resistir e lutar por seus interesses.
É muito controverso especular sobre conjunturas que poderiam ter acontecido. Os fatos da vida são reais e concretos e, por isso mesmo, qualquer avaliação baseada naquilo que poderia ter acontecido é mesmo mera especulação. Mas não se pode também deixar de avaliar elementos da realidade que ocorreram na mesma conjuntura real e que contribuíram para que determinadas forças políticas e sociais não pudessem ter tido oportunidade de realizar todo o ciclo de atuação política. Trata-se de uma intervenção brutal de um inimigo muito mais poderoso no processo conjuntural, no caso específico, a ofensiva da ditadura para destruir o PCB, e não um resultado do curso natural dos acontecimentos. Com certeza a ditadura sabia perfeitamente quem era seu inimigo estratégico e, por isso, buscou cortar pela raiz um trabalho de base que vinha sendo construído com paciência e heroísmo por dedicados militantes comunistas. Eles não queriam a emergência de um PCB enraizado na classe operária no processo da chamada abertura lenta, segura e gradual.
Os vários documentos da inteligência militar que chegaram ao conhecimento público indicam que ocorreu uma operação de Estado-Maior da ditadura, numa cadeia hierárquica que envolvia desde o presidente da República, os principais chefes militares e da inteligência, até os esbirros que comandavam e praticavam a violência e os assassinatos nas salas de tortura, com o objetivo de liquidar o PCB. Eles tinham pavor da emergência de um PCB enraizado na classe operária no processo da chamada abertura lenta, segura e gradual. Nessa ofensiva, a ditadura matou na tortura os principais dirigentes do Comitê Central, vários dirigentes estaduais e prendeu praticamente toda a militância do Partido no Brasil. São raros os militantes comunistas daquele período que não foram presos. Essa operação desarticulou o PCB por alguns anos, uma vez que seus dirigentes estavam mortos, presos ou no exílio quando começaram as movimentações operárias no ABC no início da segunda metade da década de 70.
Essa conjuntura, aliada aos erros do Comitê Central que voltou do exílio, abriu espaço para que outras forças políticas emergissem na conjuntura, quando os comunistas ainda estavam desarticulados e curando as feridas provocadas pela repressão. Possivelmente a história do movimento operário na região do ABC e no Brasil teria sido outra se a ditadura não tivesse destruído o trabalho dos comunistas entre o proletariado brasileiro. Mas a experiência realizada no ABC, que a História ainda não tinha contado, pode ser considerada uma das mais heróicas e belas páginas da resistência dos comunistas e da classe operária na luta contra a ditadura brasileira.