O bolsonarismo e a bandeira da traição

Edmilson Costa*

Nada mais importante que uma grande crise ou uma conjuntura tensa e difícil para revelar o verdadeiro caráter dos movimentos e organizações políticas. Durante muitos anos o bolsonarismo buscou se apropriar dos símbolos nacionais e da bandeira do patriotismo, tanto que entre eles se tratam como “patriotas”. Numa manobra esperta, tentaram sequestrar para seu movimento o verde e amarelo da bandeira e a camisa da seleção brasileira. Nas manifestações de rua sempre procuram aparecer com roupas e bandeiras com as cores nacionais enquanto, contraditoriamente, seu líder bate continência para a bandeira dos Estados Unidos, apoia o genocídio povo palestino e defende medidas antipopulares. Mas a vida demonstrou que esse discurso patrioteiro e a coreografia realizada com as cores verde e amarela servem apenas para mascarar a realidade porque, na verdade, o bolsonarismo é a quinta coluna do imperialismo estadunidense no Brasil e seu patriotismo é apenas uma forma grotesca que a extrema-direita utiliza encontrou para enganar a população e camuflar a sua subserviência aos interesses estrangeiros.

Essa camuflagem se tornou explícita na recente manifestação realizada na avenida Paulista no último sete de setembro. No dia em que se comemorava a independência do Brasil, uma data carregada de simbolismo, a quadrilha bolsonarista realizou um dos eventos mais sórdidos e ultrajantes da história recente do país, ao estender uma bandeira gigante dos Estados Unidos na manifestação, num ato servil de provocação que pode ser caracterizado como uma verdadeira traição nacional. Num momento em que o governo Trump impõe sanções ao Brasil, ameaça o país com poder militar e sua embaixada em Brasília realiza provocações e ultimatos contra nossa nação, além dos navios e submarinos de guerra intimidando a Venezuela, a cena da bandeira na avenida Paulista escancarou o servilismo da extrema-direita aos interesses dos Estados Unidos, reforçando a compreensão de que o bolsonarismo, ao contrário do que se autointitula, é uma corrente antipatriótica e entreguista, que busca justificar e legitimar as ações do imperialismo e agradar os seus patrões em Washington. Além disso, traz um alerta ao povo brasileiro: o bandeirão da Paulista não é uma simples encenação política: representa a essência do projeto antinacional e antipopular da extrema-direita brasileira.

O ato grotesco dos bolsonaristas também não pode ser encarado como excentricidade ou ação independente de pequenos grupos, mas um verdadeiro manifesto de traição ao povo brasileiro e um insulto à memória de todos que lutaram pela independência nacional, com o agravante de que nenhuma das lideranças que esteve presente no evento de São Paulo reprovou ou criticou esse ato antipatriótico, até porque esses líderes estão alinhados com as políticas de Donald Trump e o próprio filho do presidente está nos Estados Unidos tramando contra o Brasil. Estender a bandeira gigante dos Estados Unidos na manifestação revela ainda, de maneira óbvia, que o projeto político da extrema-direita brasileira é a submissão geopolítica a Trump, a entrega do patrimônio nacional e o desmonte da soberania nacional. Com o gesto, o bolsonarismo desmonta o mito do patriotismo tagarelado por suas lideranças e revela sua essência de movimento colonizado, traidor, sem nenhum compromisso com os interesses do povo brasileiro.

A manipulação das massas

O que mais intriga é que o projeto bolsonarista conta com o apoio não só de vastas parcelas das classes dominantes, mas principalmente de setores da população pobre, manipulados pela poderosa máquina de fake news construída pelos grupos de extrema-direita. A maioria desses manifestantes faz parte da população precarizada que, em consequência de anos de propaganda sectária e reacionária, não percebe que estão defendendo os seus próprios algozes, justamente aqueles que foram os principais responsáveis pelas medidas antipopulares tomadas pelo governo Bolsonaro. Essa massa, alienada e fanatizada, segue cegamente as ordens das lideranças dessa quadrilha sem perceber que seus inimigos não são os movimentos sociais, nem os negros e negras, nordestinos ou gays, mas os milionários de quem Bolsonaro recebe ordens. Não conseguem entender que estão defendendo um projeto que atenta contra seus direitos e que foram vítimas, sem perceber, das políticas antissociais implementadas nos quatro anos de governo da extrema-direita.

Para conseguir a manipulação das massas, o bolsonarismo construiu com habilidade e método profissional uma extensa máquina de desinformação que aos poucos foi fidelizando grandes contingentes populacionais nas redes sociais e grupos na internet até serem capazes de mobilizar milhões de pessoas para seus objetivos políticos. Essa base social, alimentada diariamente por narrativas simplistas, mentiras, teorias conspiratórias e todo tipo de preconceito, se transforma em massa de manobra do bolsonarismo disposta a tudo para cumprir as ordens dos líderes, muitas vezes com atitudes nas manifestações que beiram o ridículo, como rezar para pneus, colocar celulares na cabeça para esperar os discos voadores ou levantar cartazes com as propostas mais disparatadas nas manifestações. Isso pode até parecer estranho mas, para os formuladores da política bolsonaristas, faz parte da guerra cultural com o objetivo de desmoralizar a política tradicional e esvaziar o debate público, além de manter a população aprisionada em bolhas digitais, desconectada da realidade, de forma a torná-las obedientes às palavras de ordem bolsonaristas.

Essa máquina de manipulação, financiada por empresários de extrema direita e com estreita conexão com o fascismo internacional, tem um projeto político cujo objetivo é destruir as liberdades democráticas duramente conquistadas com a Constituição de 1988, substituir o debate político pela guerra cultural alimentada pelas fake news e implantar um regime de exceção no país. Não se pode esquecer que Bolsonaro é um apoiador contumaz da ditadura implantada em 1964 e sempre defendeu os torturadores. Da mesma forma que a extrema-direita internacional, o bolsonarismo transformou a mentira em arma central de sua ofensiva ideológica, formando uma militância que rejeita os argumentos racionais e acredita em qualquer absurdo que é veiculado pelas mídias das milícias digitais bolsonaristas. A força desse discurso não está na verdade, mas na repetição constante da mentira, de forma que pareça verdade, como faziam os nazistas. Nessas circunstâncias, é fácil constatar porque Bolsonaro, como todo líder autoritário, tornou-se capaz de mobilizar ressentimentos e preconceitos enraizados na população para consolidar o seu projeto político.

O momento atual da conjuntura brasileira é não só um enorme desafio para as forças populares como merece um estudo psicológico e sociológico sobre fenômenos de massas. É fundamental entender como o bolsonarismo conseguiu criar um ambiente político de culto a uma figura grotesca como Bolsonaro e transformá-lo num personagem messiânico que consegue não só canalizar a frustração social de amplas massas do povo diante de uma ordem econômica que impõe as condições mais degradantes de trabalho e de vida e um sistema político apodrecido, mas também manter esses seguidores em estado permanente de histeria política e sempre dispostos a ser mobilizados para reforçar a dominação dos setores mais reacionários das classes dominantes. Pode-se mesmo dizer que vivemos um momento de ascensão de uma ideologia que conseguiu inverter a realidade e colocar seus seguidores num transe espantoso: precarizados defendendo bilionários, pobres apoiando a destruição de políticas sociais e muitos milhares defendendo os interesses de uma nação estrangeira.

Esse quadro só pode ser compreendido se observarmos um conjunto de fenômenos que ocorreram na sociedade brasileira, a saber: a) o abandono do trabalho de base pela esquerda, cuja omissão abriu espaço para que as igrejas pentecostais, influenciadas por suas congêneres norte-americanas, desenvolvessem um intenso trabalho junto às massas populares nos bairros, com pregações do senso comum, da extrema-direita e do anticomunismo; b) a ação da mídia corporativa, que se transformou em verdadeiro partido político das forças mais conservadoras e diariamente difunde a ideologia neoliberal, reforça o domínio da oligarquia financeira e do agronegócio e defende as políticas de austeridade contra a população; c) a reestruturação produtiva, que desagregou os trabalhadores no chão das fábricas e ampliou a vigilância e a repressão contra a organização operária, quebrando a solidariedade entre os trabalhadores nos locais de trabalho; d) o transformismo do movimento sindical que, de instrumento combativo durante longo período a partir do final da década de 70, se transformou em bombeiro da luta de classes; e) a política de conciliação de classes do PT, que evoluiu para alianças com a burguesia e, quanto mais obtinha cargos nas eleições, mais se adaptava à lógica institucional.

Esse foi o terreno fértil que abriu espaço para o crescimento do bolsonarismo! E o aparecimento desse projeto em nosso país não pode ser considerado um fenômeno passageiro, tanto porque está vinculado à emergência da extrema-direita em todo o mundo, em função da crise do sistema capitalista e do declínio do imperialismo estadunidense, quanto porque vai demorar muito tempo para ser revertido o dano que está provocando em vastos setores da sociedade brasileira. Nessa perspectiva, as forças populares e de esquerda, para retomar os vínculos com os trabalhadores, as trabalhadoras e a população em geral nos bairros e locais de trabalho, deverão retomar o trabalho de base, colocar os pés no barro, porque só assim serão capazes de combater o inimigo nos espaços que ele ocupou por omissão da esquerda ou por ilusões de que se poderiam realizar as mudanças apenas pela via institucional.

O bolsonarismo e a tentativa de golpe

Para compreendermos essa conjuntura de disputa política e ideológica, bem como a tentativa permanente de golpe de Estado por parte da extrema-direita é importante entendermos que o bolsonarismo não surgiu do nada: Bolsonaro é a expressão tosca da maioria das classes dominantes brasileiras, viciadas no autoritarismo e na superexploração dos trabalhadores, que ao longo da história sempre esteve associada e subordinada ao capital estrangeiro. Não podemos esquecer que Bolsonaro, nos seus quatro anos de governo, alinhou-se incondicionalmente às políticas de Donald Trump, sabotou os projetos de integração regional e desenvolveu uma política econômica fundamentada no neoliberalismo mais radical com o ministro Paulo Guedes, realizou reformas antipopulares, destruiu empregos, reduziu os investimentos sociais e precarizou os serviços públicos. Portanto, toda essa movimentação para tentar salvar Bolsonaro da cadeia visa, em essência, retomar e aprofundar o projeto político iniciado quando ele se elegeu presidente.

Vale lembrar ainda que Bolsonaro e seu entorno passaram todo o mandato articulando o projeto golpista para transformar o Brasil numa ditadura, buscando de todas as formas desmoralizar as instituições e o processo eleitoral, atacar as liberdades democráticas e incentivar os militares a intervir no país para continuar no poder. Com a derrota eleitoral, que eles não esperavam, a extrema-direita colocou em execução o golpe de Estado que vinha alimentando há vários anos, com um plano meticuloso que envolvia o assassinato do presidente eleito, do vice-presidente e do ministro Alexandre de Moraes, processo que levaria a um banho de sangue no Brasil. Ao contrário do que dizem agora, o golpe não era bravata, mas uma ação meticulosa da extrema-direita em aliança com militares golpistas, que só não conseguiu ser consumado porque a maioria dos comandantes militares não embarcaram nessa aventura.

Mesmo sem o apoio desses comandantes militares, os golpistas não desistiram e tentaram uma insurreição no dia 8 de janeiro de 2023, quando Lula tinha acabado de assumir a presidência. Para tanto, articularam caravanas para levar milhares de militantes a Brasília, cujo objetivo era criar um cenário de caos institucional, que seria aproveitado pelos militares para justificar o golpe. Esses manifestantes, aliados a outros que estavam acampados em frente aos quartéis, com o apoio de setores das forças de segurança e financiados por empresários simpatizantes do bolsonarismo, invadiram o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso e depredaram as sedes dos três poderes. Só não se tornaram vitoriosos em consequência da decisão institucional do governo e da falta de apoio popular. A tentativa de golpe de 8 de janeiro e as imagens de depredação ficarão na história como um dos capítulos mais dramáticos e vergonhosos da história recente brasileira.

Como o golpe fracassou e, posteriormente, uma série de informações vieram à tona para revelar as tramas dos golpistas, agora esses criminosos estão desesperados, buscando a qualquer custo a anistia para os golpistas e, especialmente, para o seu líder, Jair Bolsonaro. Já realizaram várias manifestações de rua, sem o mesmo ímpeto que as manifestações anteriores quando o bolsonarismo estava no auge, e agora articulam no Congresso a anistia para todos, medida que pode ser considerada uma nova tentativa de golpe, principalmente porque estão recebendo o apoio de Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos, visando proteger a camarilha golpista, impôs ao Brasil sanções de 50% para as exportações brasileiras, e autoridades de seu governo vêm chantageando permanentemente o governo e Alexandre de Moraes com ameaças para salvar Bolsonaro e sua quadrilha de criminosos, numa evidente articulação entre a extrema-direita brasileira e o imperialismo.

O Brasil deve resistir tanto às chantagens do governo Trump quanto às ações da extrema-direita no Congresso e nas ruas para anistiar os golpistas. A punição exemplar dessa gangue de criminosos será uma iniciativa fundamental e pedagógica para que a história não se repita. O Brasil não pode cometer os mesmos erros do passado, quando foram anistiados os golpistas na década de 50 e uma década depois grande parte desses mesmos anistiados lideraram o golpe de 1964. Por isso, é fundamental que os movimentos sociais e populares continuem mobilizados e nas ruas para garantir uma punição exemplar aos golpistas e evitar que seja tramado no Congresso qualquer tipo de anistia a todos os responsáveis pela tentativa de implantar uma ditadura no país. Sem anistia para os golpistas!

Edmilson Costa é pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e secretário geral do PCB.