Segurança pública, violência e barbárie

A barbárie no Estado RJ e as raízes da crise de segurança
Edmilson Costa*
A matança ocorrida no Rio de Janeiro, comandada pelo governador bolsonarista Cláudio Castro, não é apenas mais um episódio da barbárie contra as populações dos morros e periferias, mas um projeto político da extrema-direita para recuperar o terreno que vinha perdendo com os escândalos envolvendo os bolsonaristas, as denúncias em relação à tentativa de golpe e as articulações nos Estados Unidos que resultaram nas tarifas contra o Brasil. Além disso, as grandes manifestações realizadas em todo o país, que resultaram na derrota da PEC da bandidagem, no enterro da pauta da anistia para Bolsonaro e, mais recentemente, a aprovação pela Câmara da isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil deixaram o bolsonarismo numa situação política muito difícil. A chacina realizada no Complexo do Alemão e na Penha foi o caminho encontrado pela extrema-direita para se reposicionar no jogo político, uma vez que a carnificina alterou bruscamente a conjuntura nacional, deslocando o centro do debate político da economia para a questão da segurança pública e proporcionando ao bolsonarismo sair das cordas e colocar o governo na defensiva.
Sob o pretexto de combate ao crime, a matança no Rio foi utilizada como propaganda política, mediante um macabro espetáculo midiático, através do qual o bolsonarismo buscou coesionar sua base social e passar à ofensiva política. Todos devem lembrar que essa não é uma tática nova: ao longo de várias décadas, a política de segurança sempre serviu de mote para as forças conservadoras buscarem prestígio e voto junto à população brasileira. A direita percebeu que essa pauta mobiliza o senso comum e os sentimentos mais primários da população (como medo, frustração, raiva e desejo de segurança) e, por isso, sempre apela para o velho discurso da lei e da ordem. Essa estratégia é funcional porque reorganiza o consenso reacionário em torno da ideia de que “bandido bom é bandido morto”, ao mesmo tempo em que proporciona um mecanismo de controle social que legitima a repressão e desvia o foco das causas estruturais da violência: o modelo econômico, o desemprego, a concentração de renda e a exclusão da maioria da população das decisões econômicas e políticas.
Nessa perspectiva, a mobilização oportunista dos governadores de extrema-direita após a chacina demonstra a natureza instrumental da pauta da segurança. Sob o pretexto de coordenar políticas de combate ao crime organizado, a proposta do chamado “Consórcio da Paz” não é nada mais, nada menos do que uma operação política das forças conservadoras visando as eleições de 2026 e, ao mesmo tempo, uma iniciativa que busca dois objetivos: a) nacionalizar o discurso da lei e da ordem, ocupar o vácuo da liderança conservadora e desgastar o governo; b) constranger o Congresso e o Executivo através da narrativa de que são omissos diante da violência e do crime. Além disso, procura apresentar esses políticos como homens de ação, capazes de propor medidas contra o crime e resolver problemas que o governo não resolve. Na verdade, esse consórcio deveria ser chamado de “consórcio da morte”, porque nasce do massacre de mais de cem jovens pretos e pobres das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto esses governadores se omitem diante das milícias, protegem o capital e reproduzem as desigualdades.
Um aspecto que chama a atenção nessa tragédia é o fato de que a maioria das pessoas nas comunidades apoia a chacina promovida pelo governo do Rio. Esse fato não pode ser ignorado nem tratado com arrogância política. É fundamental buscar as causas mais profundas de tal posicionamento da população. O apoio não nasce da simpatia com a extrema-direita nem da conivência com a violência, mas de uma combinação perversa de medo, ódio, frustração e abandono. Isso porque a população periférica é duplamente oprimida, tanto pelo tráfico quanto pela polícia. De um lado, existe o tráfico armado, que impõe de maneira brutal sua lei nos territórios, alicia os jovens e estabelece seu domínio baseado na ameaça e na força. De outro, o terror policial, que invade as casas, mata inocentes e espalha o medo e violência nas comunidades em nome da segurança. O resultado é uma população encurralada, submetida a uma guerra periódica entre o tráfico e a polícia, sem alternativa de vida e sem perspectiva de mudança.
Em outras palavras, o apoio não é fruto de um conservadorismo consciente, mas do desespero social que leva os mais pobres a apoiar aqueles que lhes prometem segurança, porque não veem outra saída. É justamente nessa conjuntura que o discurso da extrema-direita encontra eco, se fortalece e transforma o medo em matéria-prima para atingir seus objetivos políticos. A história nos ensina que o medo e o ódio, quando manipulados ideologicamente, podem se converter em poderosa força política a serviço das forças conservadoras, legitimando as barbaridades cometidas pelo braço armado das classes dominantes. Podemos dizer que o apoio da população à barbárie é um gesto de desespero, com sinais trocados, uma busca por proteção diante de um país que abandonou os pobres à própria sorte. Por isso, a questão da segurança pública deve ser encarada como uma disputa de classe, diante da qual as forças progressistas não podem ficar passivas: precisam afirmar corajosamente uma concepção de segurança pública baseada na vida, para romper o véu que aliena a maioria da população.
A esquerda na berlinda
O mais dramático dessa conjuntura, em que as forças conservadoras dominam a narrativa, é o fato de que a esquerda tem revelado um despreparo impressionante para enfrentar esse tema. Historicamente, a esquerda sempre evitou tratar a questão da violência e da segurança pública em profundidade, seja por medo de parecer punitivista, seja por não possuir uma formulação sólida sobre o assunto. Limitou-se, na maioria das vezes, à denúncia moral das chacinas e à crítica à violência policial. Mas a denúncia abstrata não organiza nem oferece horizonte político à população. Dessa forma, entregou o monopólio do discurso da segurança à direita, que passou a falar sozinha com as massas, utilizando uma narrativa simplista sobre o medo da morte, a perda dos filhos, a ausência do Estado e a necessidade de repressão. Essa conjuntura é reforçada pelos meios de comunicação e pelas igrejas conservadoras, que diariamente fortalecem a hegemonia reacionária.
A esquerda ainda não conseguiu construir uma linguagem política que traduza as angústias da periferia, nem uma proposta de segurança popular que inclua justiça social, desmilitarização das polícias, combate à lavagem de dinheiro e políticas urbanas e de emprego capazes de atacar as raízes sociais do tráfico e da violência. Continua a reagir espasmodicamente a cada tragédia, sem formular um projeto alternativo que dispute o imaginário popular sobre segurança, território, violência, justiça e perspectiva social. A direita avança no espaço que a esquerda tem sido incapaz de ocupar com propostas concretas e compreensíveis para a maioria da população. Romper esse quadro exige trabalho de base, formulação, criatividade e formação política. Somente assim será possível romper o consenso do medo e transformar a luta contra a violência em luta pela vida, na perspectiva das transformações sociais.
A esquerda também não tem sabido explorar uma contradição decisiva nesta questão da segurança pública: a hipocrisia da direita. Seus porta-vozes clamam por repressão e punição quando o crime é cometido por pretos e pobres, mas silenciam em relação aos verdadeiros chefes do crime, os lavadores de dinheiro, banqueiros, empresários e políticos. O exemplo mais cristalino dessa contradição é o fato de que não há operação policial em condomínios de luxo, nem helicópteros atirando em bairros abastados, nem blitzes em mansões milionárias. A polícia sabe que as favelas representam o varejo, enquanto o atacado mora na zona sul do Rio de Janeiro ou na Faria Lima em São Paulo. A violência é seletiva e cumpre uma função de classe: controlar a pobreza e proteger o capital. O fuzil tem alvo certo: o corpo negro e periférico.
Essa seletividade não é resultado de nenhum desvio funcional ou brutalidade isolada de agentes policiais. É a essência de uma política de segurança de classe. O aparato repressivo é treinado para reprimir os pobres; a juventude negra e parda é suspeita mesmo sem cometer crime algum. Para a polícia, os territórios periféricos são zonas de exceção, onde qualquer arbitrariedade é permitida e protegida pelo Estado. A guerra às drogas, nessas circunstâncias, é um mecanismo de regulação do exército industrial de reserva e o aparato militar cumpre o papel de executor das ordens que mantêm os privilégios dos donos do poder. Parodiando Marx no Manifesto Comunista, podemos reafirmar: o Estado brasileiro é um comitê que administra os negócios das classes dominantes e a polícia é o braço armado encarregado de manter sua lei e sua ordem.
Mesmo diante dessa situação, a esquerda tem sido tímida na denúncia dos criminosos de colarinho branco, do caráter de classe da violência policial e do uso político da morte como forma de gestão das contradições do capitalismo periférico brasileiro. A direita, ao silenciar e encobrir os crimes das classes dominantes, protege seus próprios mecanismos de enriquecimento: corrupção, sonegação fiscal, tráfico de influência, superexploração do trabalho, assalto ao fundo público e rentismo institucionalizado, além das conexões entre milícias, polícia e políticos. A chamada guerra ao tráfico não é, portanto, uma guerra contra os chefes do crime organizado, mas uma guerra dos milionários e de seus representantes na institucionalidade contra os pobres para preservar esse modelo econômico perverso, a especulação financeira, os lucros da burguesia e a desigualdade estrutural brasileira.
O servilismo e a vassalagem ao império
Um dos aspectos mais graves dessa crise é o fato de que, sorrateiramente, antes da matança, o governador do Estado do Rio enviou às autoridades dos EUA um dossiê buscando vincular o tráfico local ao narcotráfico internacional, em busca de apoio político e logístico de Trump e da extrema-direita estadunidense, numa manobra de altíssimo conteúdo de subordinação da soberania nacional à tutela imperialista. Com esse gesto, o governador cometeu não só um vergonhoso ato de traição nacional, mas uma vassalagem sem cerimônia aos interesses de Washington. Esta é a mesma lógica que levou bolsonaristas a erguerem bandeiras dos Estados Unidos nas manifestações pelas ruas brasileiras. Tanto o dossiê quanto esse gesto simbólico revelam o complexo de vira-lata bolsonarista e desmascaram seu falso patriotismo.
Enviar o dossiê aos Estados Unidos significou também uma tentativa de internacionalizar o tema da segurança pública brasileira buscando conferir legitimidade externa à política de extermínio e apresentando-a como parte da guerra global ao narcotráfico. Visa ainda reforçar os laços entre a direita brasileira e o trumpismo internacional, criando um eixo ideológico entre a extrema-direita brasileira e estadunidense e abrindo espaço para eventual ação do imperialismo no Brasil. Essa tentativa de envolver os Estados Unidos é parte de uma estratégia neocolonial, um verdadeiro Cavalo de Troia que justifica espionagem e até intervenção militar. Cláudio Castro e os bolsonaristas agem como capatazes subservientes, dispostos a todo tipo de traição para servir a seus amos e alcançar seus objetivos políticos.
A conexão entre o bolsonarismo e o imperialismo estadunidense se tornou ainda mais clara quando o chefe da Administração de Repressão às Drogas dos Estados Unidos, James Sparks, encaminhou carta à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro não só lamentando as mortes de policiais, mas manifestando disposição de auxiliar o governo fluminense no combate ao tráfico. Essa carta não foi um gesto inocente de solidariedade, mas uma ingerência nos assuntos internos do Brasil, uma tentativa disfarçada de submeter a política de segurança fluminense ao controle norte-americano. É a velha tática imperialista: oferece ajuda, mas o objetivo é penetrar nas instituições para moldá-las de acordo com seus interesses.
O servilismo do governador do Rio lembra também o episódio do filho de Bolsonaro que, financiado pelo pai, viajou aos Estados Unidos para conspirar contra o Brasil e terminou sendo o principal responsável pela imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e sanções contra magistrados do Supremo Tribunal Federal. Esse comportamento é a tradução mais acabada do fascismo tupiniquim: entreguismo, vassalagem e autoritarismo. Não é novidade, faz parte da velha tradição das classes dominantes brasileiras desde o Império, passando pela República Velha, pelas ditaduras e chegando ao bolsonarismo, que não se vê como parte do povo, mas como agente local dos interesses estrangeiros.
O entreguismo bolsonarista não é apenas um ato de covardia: é uma estratégia para tentar voltar ao poder com base na força e no apoio do imperialismo estadunidense. Sabem que, ao demonstrar fidelidade ao império, poderão obter respaldo político, financiamento e apoio nas próximas eleições em 2026. Além disso, a política de extermínio dos pobres está em sintonia com os métodos da extrema-direita internacional e atende também às demandas dos setores médios conservadores internos que se sentem protegidos com a repressão e a morte dos pobres. Não podemos esquecer que o golpe de 1964 teve como pretexto “salvar o país do comunismo” e hoje a “guerra ao tráfico” cumpre o mesmo papel: justificar a interferência imperialista no Brasil.
Pobreza como raiz da violência
Para compreender a crise da segurança pública brasileira, é fundamental avaliar sua natureza. Antes de tudo, é preciso enfatizar que o problema do tráfico e do crime não pode ser resolvido com repressão e extermínio, pois as raízes do problema estão na desigualdade e na miséria que atingem o povo brasileiro. Nossa história recente está cheia de exemplos de operações espetaculares (incursões policiais, matanças, ocupações territoriais) que servem mais a objetivos políticos das forças conservadoras do que à solução real dos problemas, já que logo depois das tragédias o tráfico volta a ocupar os territórios. Na verdade, as classes dominantes brasileiras não pretendem resolver o problema, mas apenas administrar a barbárie que criaram, dosando repressão e abandono conforme suas necessidades políticas.
A cada novo massacre renova-se a ilusão de que a morte pode restaurar a lei e a ordem, mas o tráfico é expressão de um sistema que naturalizou a pobreza, a miséria e a exclusão. Quando o Estado mata, não está combatendo o crime, mas eliminando o excedente humano que não cabe no sistema econômico. Enquanto não forem resolvidas as causas estruturais que produzem o tráfico e o crime (desigualdade, pobreza e falta de perspectiva), o tráfico permanecerá ativo e continuará aliciando novos soldados, que terão vida curta numa guerra que só beneficia a burguesia e o sistema da lei e da ordem. Nessas circunstâncias, apenas a luta por uma nova sociabilidade será capaz de romper esse ciclo perverso de violência e barbárie.
Edmilson Costa é doutor em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É Secretário-Geral do PCB.
