Intelectuais negros no PCB

Capitalismo, Racismo e Revolução (1930 – 1962)
Robson de Sousa Moraes – militante do PCB de Goiás
Introdução
Entre as décadas de 1930 e 1960, o Brasil viveu um processo acelerado de industrialização, urbanização e reorganização de suas forças políticas. Nesse contexto, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922 e reorganizado após a anistia de 1945, consolidou-se como a principal força da esquerda, difundindo uma leitura marxista da sociedade brasileira. Essa leitura, de forte influência soviética, ao priorizar a luta de classes e o fenômeno do Imperialismo, deu pouco destaque a outras formas de opressão, entre elas o racismo estrutural. A visão internacionalista difundida pela Internacional Comunista, contribuiu para que uma certa historiografia posterior denominou, equivocadamente, de cegueira racial do movimento comunista, ou seja, a ausência de uma compreensão do negro como sujeito histórico e político autônomo.
Este ensaio demostra que a presença de intelectuais negros nas fileiras do PCB, a partir de diferentes experiências, sindical, produção artística, etnográficas, introduziu fissuras e deslocamentos teóricos decisivos. Estes militantes tencionaram a ortodoxia partidária, propondo interpretações nas quais o racismo aparecia como elemento constitutivo da formação capitalista brasileira. Suas trajetórias demonstram que a crítica ao capitalismo no Brasil não poderia ser plenamente compreendida sem considerar a dimensão racial da exploração e da desigualdade.
A literatura sobre o PCB, principalmente a produzida por não militantes, raramente reconheceu a contribuição desses intelectuais negros, concentrando-se em dirigentes como Astrojildo Pereira, Caio Prado Júnior e Luiz Carlos Prestes. Este trabalho propõe ressaltar e analisar as contribuições de Minervino de Oliveira, Édison (Edson) Carneiro, Solano Trindade, Claudino José da Silva e Clóvis Moura, todos com vínculos documentados com o PCB. Ao longo de suas carreiras, essas figuras articularam luta de classes, combate ao racismo e crítica à dependência cultural, antecipando formulações que mais tarde seriam reconhecidas como parte do marxismo negro e das teorias contemporâneas do capitalismo racial.
O problema central que orienta esta pesquisa pode ser assim formulado: de que modo intelectuais negros vinculados ao PCB elaboraram interpretações próprias sobre capitalismo, racismo e revolução? Parte-se da hipótese de que suas experiências e produções teóricas introduziram a raça como categoria estruturante da luta de classes no Brasil. Além disso, suas práticas políticas e culturais, que vão da poesia e do teatro ao parlamento e à teoria histórica, expressam múltiplas formas de intervenção revolucionária, revelando uma crítica radical à hierarquia racial mantida pela modernização capitalista.
O objetivo geral é analisar a contribuição desses intelectuais para a incorporação da questão racial ao pensamento comunista brasileiro entre 1930 e 1962, período que vai da candidatura de Minervino de Oliveira à presidência da República pelo Bloco Operário Camponês (BOC/PCB) até a cisão que originou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Entre os objetivos específicos, busca-se mapear as trajetórias políticas e culturais desses militantes, identificar como suas obras e ações públicas inseriram a temática racial no marxismo brasileiro e avaliar o impacto dessas formulações na formação posterior do pensamento negro de esquerda.
O texto organiza-se em quatro blocos analíticos. O primeiro examina a formação do PCB e suas limitações diante da questão racial. O segundo apresenta as trajetórias e intervenções dos intelectuais negros comunistas, evidenciando como suas práticas culturais e políticas alteraram o horizonte teórico do partido. O terceiro discute, de forma comparada, as concepções de capitalismo, racismo e revolução presentes em suas obras. O quarto bloco reúne as conclusões e propõe uma interpretação integrada dessas contribuições, ressaltando a importância dos intelectuais negros do PCB na constituição de uma tradição crítica brasileira que concebe o racismo como fundamento da ordem capitalista.
O PCB diante da Questão Racial
Fundado em 1922, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) nasceu sob a inspiração da Revolução Russa e das diretrizes da III Internacional. Ao longo das décadas de 1930 a 1960, consolidou-se como o principal instrumento de organização da esquerda brasileira. Sua estrutura teórica, de matriz marxista-leninista, orientava-se pela luta de classes como categoria central de interpretação social e pela estratégia de uma revolução nacional-democrática que unisse o proletariado urbano e o campesinato contra o imperialismo e a burguesia interna. Essa perspectiva, fortemente influenciada pelo marxismo soviético, apresentava uma limitação fundamental: a dificuldade de compreender a especificidade do racismo na formação social brasileira. O negro era reconhecido apenas como parte do proletariado, e não como sujeito histórico de uma opressão estrutural.
Os documentos oficiais do partido entre 1922 e 1960 confirmam essa dificuldade. As resoluções de seus congressos e os programas publicados, enfatizavam o combate ao imperialismo e à exploração capitalista, mas não abordavam o racismo como contradição própria do sistema. O negro era absorvido conceitualmente à condição de trabalhador, e o racismo visto como mero reflexo da luta de classes. As leituras iniciais do PCB entendiam o racismo como proveniente de uma ideologia elaborada e fomentada pela burguesia, e não uma estrutura fundante da desigualdade. Como consequência a imprensa partidária, como o jornal A Classe Operária e a revista Fundamentos (1948–1955), poucos artigos eram dedicados ao tema racial. Quando a cultura afro-brasileira aparecia, era tratada como folclore, expressão popular ou curiosidade etnográfica, mas raramente como forma de resistência política.
A influência da Internacional Comunista, com sua orientação para a unidade internacional do proletariado, tendia a rejeitar o debate sobre identidades específicas, consideradas diversionistas. O PCB, em seus primeiros momentos organizativos, importou esse modelo sem adaptá-lo ao contexto colonial e escravocrata brasileiro, no qual o racismo cumpre papel de sustentação da ordem social. Além disso, o mito da democracia racial, difundido como ideologia nacional desde os anos 1930, penetrou inclusive no pensamento progressista, produzindo a ilusão de que o Brasil havia superado as barreiras raciais. Ainda assim, fissuras começaram a se abrir nesse quadro. A presença de militantes negros como Minervino de Oliveira e Édison Carneiro, nas décadas de 1930 e 1940, trouxe experiências concretas que desafiaram o dogmatismo teórico. Minervino, ao ser lançado candidato à Presidência da República em 1930 pelo Bloco Operário e Camponês (ligado ao PCB), rompe simbolicamente com a invisibilidade política dos negros. Édison Carneiro, por sua vez, como etnógrafo e militante comunista, vinculou o estudo do candomblé e das culturas afro-brasileiras à crítica do racismo e à valorização das classes populares.
Nos anos 1940 e 1950, com o breve período de legalidade do partido, a chamada “frente cultural” passou a integrar artistas, escritores e intelectuais que buscavam expressar a vida popular na literatura, no teatro e no cinema. Nesse ambiente, o interesse pela cultura negra começou a ganhar visibilidade. A revista Fundamentos publicou textos de valorização da arte do povo e de denúncia das desigualdades sociais, o que ampliou o tratamento dado a temas afro-brasileiros na esfera comunista. Intelectuais comunistas, como Clóvis Moura, apontarão mais tarde a necessidade de inserir a raça na dialética social do PCB. Em obras como Rebeliões da Senzala (1959), Moura demonstrará que o racismo não é mero subproduto da economia, mas elemento constitutivo do capitalismo no Brasil. Sua análise questionará a mecânica e dogmática, opção epistemológica de subordinação da raça à classe. Essa crítica ilumina as limitações do PCB e ajuda a compreender a importância das vozes dissidentes que, ainda nos anos 1930 e 1940, abriram caminho para uma reinterpretação da luta revolucionária.
O que se verifica, portanto, é uma contradição típica das esquerdas latino-americanas: enquanto proclamavam a universalidade da emancipação humana, mantinham-se prisioneiras de uma visão dogmática de classe social. O estudo das contribuições dos intelectuais negros comunistas permitirá, compreender como essas vozes transformaram, de dentro, o campo marxista brasileiro e recolocaram a questão racial como elemento indissociável da crítica ao capitalismo e do projeto revolucionário.
Minervino de Oliveira: visibilidade política negra e classe
Entre os intelectuais e militantes negros que se destacaram no interior do comunismo brasileiro, a trajetória de Minervino de Oliveira (1891–1936) ocupa um lugar inaugural. Operário metalúrgico, natural da Paraíba e radicado no Rio de Janeiro, Minervino tornou-se um dos primeiros dirigentes sindicais negros do país e uma das figuras mais conhecidas do movimento operário nas décadas de 1920 e 1930. Sua militância antecede o período de consolidação do Partido Comunista (PCB) e está vinculada à experiência das greves urbanas que marcaram a Primeira República. Filiado ao PCB logo após sua fundação, Minervino foi dirigente da Federação dos Operários em Construção Civil e um dos articuladores da Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), organismos dirigidos por comunistas. Em uma sociedade profundamente hierarquizada racialmente, sua ascensão a posições de direção representava um fato inédito: um trabalhador negro ocupava funções de liderança em um espectro político ainda dominado por intelectuais e operários brancos.
O momento decisivo de sua projeção política ocorreu em 1930, quando o Bloco Operário e Camponês (BOC), braço eleitoral do PCB, lançou sua candidatura à Presidência da República. Tratava-se de um acontecimento sem precedentes na história brasileira: um operário negro disputando o cargo máximo da nação em um pleito dominado pelas oligarquias regionais e pelos representantes da elite branca. O programa apresentado por Minervino e pelo BOC defendia o direito de greve, a jornada de oito horas, a reforma agrária e a nacionalização das riquezas naturais, reivindicações que antecipavam as bandeiras do socialismo e do trabalhismo posteriores. Embora a candidatura tenha obtido votação reduzida, o impacto simbólico foi profundo: pela primeira vez, o povo negro e trabalhador se via representado em um espaço até então reservado à elite.
A imprensa conservadora reagiu com sarcasmo e racismo. Jornais como A Nação e O Globo desqualificaram o candidato chamando-o de “o operário preto” e ironizando sua “pretensão” de chegar à presidência. Esses registros não apenas revelam o racismo das elites. A candidatura de Minervino, principalmente diante das reações conservadoras, expôs de forma contundente, a necessidade do PCB (um partido que pregava a emancipação humana), reconhecer plenamente a opressão racial como eixo de luta.
No interior do partido, a candidatura de 1930 foi vista como um gesto tático, parte de uma estratégia de propaganda e de afirmação pública do BOC. Minervino foi apoiado pelos principais dirigentes, mas sua condição racial nunca foi tematizada e aproveitada como elemento político, sendo que nos documentos e resoluções da época, o racismo aparece diluído na linguagem da luta de classes. A candidatura do BOC contribuiu para trazer à tona a questão de que a classe operária brasileira era majoritariamente negra e mestiça, e que a emancipação dos trabalhadores passava também pela destruição das hierarquias raciais herdadas da escravidão.
A militância de Minervino demonstrava, na prática, essa articulação entre raça e classe. Nas greves do setor da construção civil e nas assembleias operárias, denunciava as condições de vida dos trabalhadores e a perseguição policial, que atingia com mais violência os negros. Ao mesmo tempo, defendia a unidade entre brancos e negros contra o patronato, buscando superar a fragmentação racial como instrumento de dominação. Sua ação política antecipava o conceito de “classe racializada”, que décadas mais tarde seria teorizado por Clóvis Moura.
Com a radicalização política dos anos 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, o PCB passou à clandestinidade. Minervino, identificado como comunista, foi perseguido e preso diversas vezes. Após a sublevação Comunista de 1935, a repressão se intensificou. Em 1936, o dirigente foi novamente detido e assassinado sob custódia policial. Seu nome foi apagado pela repressão do Estado Novo. Somente a partir dos anos 1980, com a renovação dos estudos sobre o movimento negro e o resgate das lutas populares, a trajetória de Minervino de Oliveira começou a ser revisitada. Pesquisadores como Petrônio Domingues, Flávio Gomes e Carlos Zacarias de Sena Júnior demonstraram que ele foi não apenas um dirigente sindical, mas também um símbolo da presença negra na formação do comunismo brasileiro. Sua candidatura de 1930 é hoje interpretada como o primeiro gesto público de visibilidade política negra no campo da esquerda, anterior ao surgimento do Teatro Experimental do Negro e do Movimento Negro Unificado.
O legado de Minervino reside tanto no exemplo quanto na contradição que sua figura representa. Ao mesmo tempo em que expressava a universalidade do proletariado, sua própria existência desafiava o universalismo abstrato, já denunciado por K. Marx em Teses contra Feuerbach. A imagem de um operário negro candidato à presidência denunciava o racismo estrutural da sociedade e enfrentava os preconceitos hegemônicos na época. Nesse sentido, Minervino de Oliveira foi mais do que uma figura simbólica: foi o marco inicial de uma crítica negra a sociedade brasileira e um sopro de vitalidade para marxismo brasileiro, cuja continuidade se manifestaria nas décadas seguintes em autores como Édison Carneiro, Solano Trindade e Clóvis Moura.
O percurso de Minervino permite compreender que a luta contra o capitalismo, no Brasil, esteve desde o início entrelaçada à luta contra o racismo. Sua trajetória, resgatada tardiamente, devolve ao movimento comunista a dimensão da qual a revolução social no país não poderia ser pensada sem a participação do negro, sem o reconhecimento de que o trabalho explorado e o corpo racializado são faces de uma mesma história.
Édison Carneiro: cultura negra, trabalho e antirracismo
A trajetória de Édison Carneiro (1912–1972) constitui um dos elos mais significativos entre o marxismo, a cultura popular e o pensamento negro brasileiro. Nascido em Salvador, formou-se em Direito, mas desde muito jovem se envolveu com o jornalismo, a literatura e os estudos do folclore. Filho de uma professora e de um funcionário público, cresceu em ambiente intelectual e politizado, o que o levou, ainda nos anos 1930, a aproximar-se dos círculos comunistas baianos. Sua militância no Partido Comunista (PCB) e seu interesse pela cultura afro-brasileira o transformaram em uma das figuras centrais do que se convencionou chamar de “frente cultural comunista”. A originalidade de Carneiro reside em ter unido etnografia e política, transformando o estudo das expressões negras em um projeto de combate ao racismo e de valorização do trabalho cultural do povo.
A formação de Edson Carneiro ocorreu num momento em que a cultura negra era tratada pelos estudiosos dominantes como resíduo do passado escravista ou como curiosidade exótica. A chamada “Bahia folclórica”, divulgada por autores como Gilberto Freyre, era descrita como símbolo da mestiçagem harmoniosa, dentro da ideologia da democracia racial. Entretanto, sua convivência com lideranças de candomblé, sambadores e mestres populares transformou profundamente sua visão. Influenciado pelo marxismo, Carneiro passou a compreender a cultura popular não como simples sobrevivência do passado, mas como forma de resistência social produzida pelas classes subalternas.
Em 1936, publicou Religiões Negras, obra pioneira que denunciava a perseguição policial às casas de culto afro-brasileiras e interpretava o candomblé como espaço de organização coletiva e preservação da memória africana. Essa leitura rompia com o discurso folclorista e abria caminho para uma antropologia política da cultura negra. Mais tarde, em Candomblés da Bahia (1948), ampliou sua análise, descrevendo a estrutura hierárquica dos terreiros e suas relações de solidariedade, economia e gênero. Para Carneiro, a religião afro-brasileira era um modo de trabalho social e simbólico, expressão da resistência à escravidão e à marginalização racial.
Sua aproximação com o PCB intensificou-se na década de 1940, quando se engajou na produção de textos para jornais e revistas comunistas. Colaborou em O Momento, periódico de orientação marxista em Salvador, e na revista Fundamentos, publicação do partido que reunia escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Aparício Torelly. Nesse ambiente, Carneiro defendeu a valorização da cultura popular como base da arte revolucionária brasileira, argumentando que a emancipação política deveria nascer das formas culturais produzidas pelo povo. Tal concepção contrariava setores ortodoxos do partido, que viam o folclore e a religiosidade afro como manifestações “pré-modernas” e, portanto, incapazes de contribuir para a revolução. Carneiro, ao contrário, via na cultura do povo uma via concreta de transformação social e de construção da consciência de classe.
Sua visão materialista da cultura estava diretamente relacionada à crítica ao racismo. Carneiro argumentava que o preconceito racial servia como instrumento de dominação econômica, impedindo que o trabalhador negro fosse reconhecido como sujeito produtivo e político. O racismo, portanto, não era mero desvio moral, mas parte integrante da estrutura de exploração. Essa concepção o aproxima das formulações que, décadas depois, Clóvis Moura desenvolveria sob a noção de “luta de classes racializada”. Em suas pesquisas etnográficas, Carneiro observava que a cultura negra era também trabalho material e imaterial, coletivo, comunitário e que o desqualificar dessa cultura significava negar o trabalho do negro como base da sociedade brasileira.
No campo da militância, Edson Carneiro participou da criação da Associação Brasileira de Folclore e organizou exposições e conferências que valorizavam as tradições afro-brasileiras. Sua atuação o colocou em contato com intelectuais como Jorge Amado e Carybé. Em colaboração com o grupo de artistas comunistas baianos, articulou redes que uniam pesquisa, arte e política. Como membro do PCB, defendeu que a arte popular fosse considerada instrumento de conscientização e não mero entretenimento. Essa posição se reflete em sua defesa da figura do “povo produtor de cultura”, em oposição à elite intelectual que se pretendia intérprete do país.
Durante o Estado Novo, foi perseguido e teve livros censurados. Ainda assim, continuou escrevendo sob pseudônimos e realizando pesquisas de campo. Sua resistência silenciosa representava a forma possível de militância num regime de censura e vigilância. Nos anos 1950 e 1960, com o breve retorno da legalidade comunista, Carneiro manteve laços com o PCB, mas sua produção tornou-se mais autônoma, integrando o circuito acadêmico e institucional. Mesmo afastado da militância direta, suas obras continuaram a expressar o ideal de que o reconhecimento da cultura negra é condição para a emancipação nacional.
A contribuição teórica de Edson Carneiro consiste em articular marxismo e etnografia sem reduzir a cultura à superestrutura. Para ele, o folclore é campo de luta ideológica e o povo é o verdadeiro sujeito da história. Essa formulação antecipa discussões sobre hegemonia e resistência, que mais tarde seriam desenvolvidas por Antonio Gramsci. Carneiro foi, portanto, um dos primeiros a aplicar a lógica da hegemonia cultural ao contexto brasileiro, mostrando que o combate ao racismo se trava também na disputa pelos significados da cultura. Seu legado estende-se para além da militância comunista. As gerações seguintes do pensamento negro, entre elas Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Solano Trindade, herdaram de Carneiro a compreensão de que a arte e a cultura são dimensões indissociáveis da luta política. Suas obras influenciaram tanto o campo acadêmico, inaugurando uma linha de estudos sobre religiões afro-brasileiras, quanto os movimentos sociais, que passaram a ver o candomblé, o samba e o maracatu como formas de resistência e identidade coletiva.
Morto em 1972, Edson Carneiro deixou um legado de engajamento intelectual e de militância antirracista. Sua trajetória mostra que a revolução, para ser efetiva, deve incluir o reconhecimento da cultura popular como trabalho, da religião afro como forma de organização social e do povo negro como sujeito histórico. Dentro e fora do PCB, ele foi um dos primeiros a afirmar que sem cultura negra não há emancipação nacional, pois o Brasil moderno só poderia se reconstruir reconhecendo a centralidade africana de sua formação social.
Solano Trindade: poesia, teatro e organização popular
A trajetória de Solano Trindade (1908–1974) constitui um dos capítulos mais expressivos da articulação entre arte, política e identidade negra no Brasil do século XX. Nascido em Recife, em uma família humilde do bairro de São José, cresceu em meio a tradições afro-brasileiras, maracatus, sambas e festas populares. Autodidata, começou a escrever poesia ainda jovem e, desde os anos 1930, participou de movimentos de valorização da cultura popular nordestina. Sua atuação transcendeu a literatura: foi ator, teatrólogo, pintor e militante comunista. Em 1940, aproximou-se formalmente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), atraído pela perspectiva de transformação social e pela defesa da cultura como instrumento de emancipação do povo. Em Solano, a militância política e a criação artística constituem uma única prática, uma práxis estética e revolucionária.
A poesia foi o primeiro espaço em que Solano Trindade fez de sua voz um ato político. Em Poemas Negros (1936), já se delineia um projeto literário voltado à denúncia do racismo e à celebração das origens africanas do povo brasileiro. Sua escrita, marcada pela oralidade e pelos ritmos da cultura popular, rompe com o cânone literário e institui um lirismo coletivo, que fala em nome dos oprimidos e não de um sujeito individual. O poema “Tem gente com fome”, publicado em 1944, tornou-se símbolo dessa proposta: nele, o trem, metáfora da modernização excludente, atravessa o país sem ver os corpos famintos que compõem a paisagem social. A força estética do texto está no entrelaçamento entre forma popular, denúncia social e solidariedade de classe. Ao transformar a fome e a cor em matéria poética, Solano fez da poesia uma forma de consciência.
Para o poeta, a arte não podia se separar da vida. Sua obra é inseparável de sua militância cultural, voltada à criação de espaços de organização popular. Em 1944, fundou no Rio de Janeiro o Teatro Popular Brasileiro (TPB), junto com Margarida Trindade e outros artistas. O TPB tinha como objetivo unir arte e povo, levando o teatro às ruas, praças e sindicatos. Suas montagens incorporavam elementos da cultura afro-brasileira, o samba de roda, o maracatu, o coco e a capoeira, afirmando a centralidade estética e política das tradições negras. O teatro, nessa concepção, não era espetáculo, mas atividade pedagógica e coletiva, uma forma de educar politicamente as massas e de devolver-lhes sua própria imagem como protagonistas da história.
O Teatro Popular Brasileiro expressava na prática o ideal de que a revolução brasileira deveria ser também cultural. Inspirado nas diretrizes do PCB para o trabalho de massas, o grupo de Solano Trindade entendia a arte como meio de conscientização e como instrumento de resistência. Solano Trindade, compartilhava o propósito de uma arte a serviço do povo defendido pelo PCB, mas se colocava como um crítico contundente à estética do realismo socialista defendido por setores mais ortodoxos do coletivo partidário. A estética negra e popular de Solano era frequentemente vista como “romântica” ou “folclórica” por aqueles que privilegiavam uma representação mais didática da luta de classes. Essa tensão ilustra o debate no interior do PCB, no esforço de compreender a cultura afro-brasileira como linguagem política. Para Solano, a revolução não poderia prescindir das formas simbólicas do povo negro.
Nos anos 1950 e 1960, Solano Trindade organizou congressos de arte popular, grupos de bairro e movimentos culturais comunitários, sobretudo nas periferias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em Embu das Artes, ajudou a formar cooperativas de artistas e artesãos, transformando a arte em economia solidária e resistência cotidiana. Nessas experiências, antecipou as práticas que décadas depois inspirariam políticas culturais de base comunitária, como os Pontos de Cultura. Sua ação estava orientada por uma convicção profunda: o povo deve ser o criador e gestor de sua própria cultura.
A obra e a vida de Solano Trindade mostram que a luta contra o racismo e a exploração de classe passa também pela afirmação estética. Sua poesia faz do negro o centro da narrativa nacional e recusa a invisibilidade imposta pela história oficial. No teatro, sua prática pedagógica e colaborativa inverte a lógica hierárquica entre artista e público: o povo deixa de ser espectador para tornar-se ator de sua própria emancipação. A dimensão pedagógica do TPB antecipa, em certa medida, a pedagogia crítica de Paulo Freire, ao conceber a arte como instrumento de libertação coletiva.
Em diálogo com autores como Clóvis Moura e Abdias do Nascimento, Solano construiu uma estética marxista popular que compreendia o racismo como estrutura material da exploração. Sua poesia e seu teatro desmontam o mito da democracia racial, revelando que a cultura brasileira é fruto de um processo de resistência negra. Ao mesmo tempo, sua obra expressa uma esperança radical: a de que o povo possa refazer o país a partir de seus próprios símbolos, ritmos e memórias. O legado de Solano Trindade ultrapassa o campo artístico. Ele é hoje reconhecido como precursor da arte negra política no Brasil. Seu nome figura entre os inspiradores do Teatro Experimental do Negro e do Movimento Negro Unificado, que retomaram sua proposta de unir arte e ação direta. As gerações posteriores encontraram em sua obra um modelo de engajamento estético e político, no qual a poesia não é ornamento, mas ferramenta de transformação.
No conjunto dos intelectuais negros vinculados ao PCB, Solano representa o elo entre a arte e a revolução. Se Minervino de Oliveira inscreveu o negro na arena política e Edson Carneiro o inseriu no campo da cultura intelectual, Solano Trindade fez do corpo e da palavra negra a própria cena da luta. Sua trajetória confirma que o socialismo brasileiro não pode ser compreendido sem a dimensão simbólica e sensível do povo negro. Através da poesia e do teatro, Solano Trindade transformou a arte em ação coletiva e deixou como herança a certeza de que a revolução, para ser plena, deve ser também poética.
Claudino José da Silva: parlamento e antirracismo na tribuna
A figura de Claudino José da Silva ocupa um lugar singular na história política brasileira e na trajetória dos intelectuais e militantes negros ligados ao comunismo. Operário da construção civil e sindicalista carioca, Claudino foi um dos raríssimos parlamentares negros da primeira metade do século XX, eleito deputado constituinte em 1946 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sua presença no parlamento representou não apenas a ascensão política de um trabalhador de origem popular, mas também a entrada simbólica da questão racial em uma arena que, até então, permanecia hermeticamente branca e elitista. Em um contexto de redemocratização e de efervescência do movimento operário, Claudino transformou a tribuna parlamentar em espaço de denúncia do racismo e de defesa dos direitos da classe trabalhadora.
O contexto histórico que possibilitou sua eleição foi o breve período de legalidade do PCB entre 1945 e 1947, quando o partido, recém-anistiado após o Estado Novo, alcançou cerca de 10% dos votos nacionais e elegeu 14 deputados federais. A Assembleia Nacional Constituinte de 1946 simbolizou o reencontro do país com a política após anos de ditadura varguista e inaugurou uma nova carta constitucional. Nesse cenário, a bancada comunista se destacou por propor reformas estruturais, ampliação dos direitos trabalhistas, educação pública, liberdade sindical e soberania nacional e Claudino José da Silva se tornou a expressão mais nítida do vínculo entre o operariado negro e o projeto socialista brasileiro.
Nos registros dos Anais da Constituinte de 1946, Claudino aparece como um dos parlamentares mais ativos da bancada do PCB. Sua oratória simples, mas incisiva, trazia para o plenário a linguagem das ruas e das fábricas. Defendia a regulamentação das condições de trabalho, o salário mínimo digno e a inclusão dos trabalhadores negros nas políticas de qualificação profissional. Em discursos notáveis, denunciou o racismo nas relações de trabalho, a desigualdade salarial entre brancos e negros e a marginalização sistemática do povo afro-brasileiro. Afirmava que “não há democracia real onde o negro continua sendo o último a ser admitido e o primeiro a ser despedido”, frase que sintetiza sua visão de que a igualdade formal inscrita na Constituição seria inútil sem justiça social.
A atuação de Claudino José da Silva foi pioneira porque deslocou o debate racial do campo moral e cultural para o campo político-institucional. Ao levar o tema do racismo à tribuna, inscreveu-o na agenda da política nacional décadas antes da emergência dos movimentos negros contemporâneos. Sua presença na Constituinte desmontava o mito da democracia racial e evidenciava que o racismo era um problema estrutural da República, inseparável da questão de classe. A postura combativa de Claudino o colocava em sintonia com a visão do PCB de que a emancipação dos trabalhadores deveria ocorrer por meio da luta organizada, em sua ação política parlamentar era notório sua ênfase na discriminação racial como elemento constituinte do capitalismo no Brasil.
A cassação do registro do PCB em 1947, sob o governo Eurico Gaspar Dutra, interrompeu bruscamente essa experiência. Claudino e seus companheiros de bancada foram destituídos de seus mandatos por decreto do Tribunal Superior Eleitoral, num ato que simbolizou o fechamento do espaço democrático recém-aberto. A partir de então, o ex-deputado retornou à militância sindical, mas passou a ser alvo constante da repressão política. Documentos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) registram sua vigilância e perseguição. A invisibilidade de sua trajetória nas décadas seguintes não se deve apenas à repressão estatal, mas também ao apagamento histórico promovido pelas narrativas dominantes da política nacional.
Pesquisas recentes têm buscado reconstruir o percurso de Claudino José da Silva e resgatar o significado de sua experiência parlamentar. Autores como Petrônio Domingues e Flávio Gomes mostram que sua eleição não foi um fato isolado, mas parte de um processo mais amplo de ascensão política de trabalhadores negros que, nas décadas de 1940 e 1950, encontraram no PCB uma via de expressão e de organização. Ainda que o partido não tenha desenvolvido uma teoria sistemática sobre o racismo, a atuação de Claudino demonstrou que o espaço comunista podia servir como instrumento organizativo da classe racializada.
A importância histórica de Claudino José da Silva reside em ter transformado o parlamento em tribuna de denúncia social, num momento em que o discurso antirracista era quase inexistente nas instituições republicanas. Sua prática política antecipou pautas que só seriam formalmente reconhecidas quarenta anos depois, com a Constituição de 1988: igualdade racial, combate à discriminação e políticas de acesso à educação e ao trabalho. Ao afirmar que o negro não podia esperar a revolução para ser livre, Claudino incorporou à esquerda brasileira um princípio fundamental do marxismo negro: o de que não há emancipação de classe sem emancipação racial.
Seu legado é o de um operário intelectualizado, que levou à tribuna a voz dos trabalhadores silenciados e abriu espaço para uma crítica comunista da democracia racial. Embora sua figura tenha sido apagada da memória política nacional, a redescoberta de sua trajetória restabelece uma linha de continuidade entre o comunismo, o movimento operário e o pensamento negro. Claudino José da Silva demonstrou, com sua presença e sua palavra, que o combate ao capitalismo no Brasil só pode ser completo quando incorpora a luta contra o racismo, a forma mais persistente de exploração e exclusão que estrutura a sociedade brasileira desde a escravidão.
Clóvis Moura: dialética do capitalismo racial
A trajetória de Clóvis Steiger de Assis Moura (1925–2003) marca um ponto de inflexão no pensamento social brasileiro. Sociólogo, historiador, jornalista e militante comunista, Moura foi um dos intelectuais que mais radicalmente reinterpretaram a formação do Brasil à luz do materialismo histórico, incorporando a dimensão racial como eixo estruturante da luta de classes. Nascido em Amarante, Piauí, e criado no interior paulista, sua formação política e intelectual deu-se fora das universidades, nos sindicatos, na imprensa e na militância comunista. Ao longo das décadas de 1940 e 1950, participou da imprensa de esquerda, escrevendo para O Momento e Imprensa Popular e integrou o Partido Comunista Brasileiro (PCB), atuando na chamada “frente cultural”. Essa vivência direta nas lutas operárias, somada ao contato com as desigualdades raciais do cotidiano, moldou uma perspectiva crítica singular, que desafiou o dogmatismo do marxismo ortodoxo e lançou as bases de uma interpretação revolucionária do racismo.
O contexto político do pós-guerra foi decisivo para a consolidação de sua visão. Durante os anos 1950, o PCB viveu o auge de sua influência de massas. A linha soviética do partido ainda compreendia a questão racial como derivada da luta de classes, subordinando-a à análise econômica. Nesse ambiente, Moura se destacou por propor uma leitura que recolocava o negro como protagonista. Crítico da sociologia “integradora” que via a abolição como caminho natural para a democracia racial, Moura elaborou uma teoria em que o racismo não era um resíduo feudal, e sim mecanismo constitutivo do capitalismo brasileiro. A publicação de Rebeliões da Senzala (1959) representa o marco inaugural dessa virada: a escravidão passa a ser interpretada como modo de produção racializado e como base da acumulação primitiva que sustentou o capitalismo nacional.
Para Moura, em debate com intelectuais comunistas como Alberto Passos Guimarães, Caio Prado Junior e Jacob Gorender, o Brasil não viveu uma transição do feudalismo ao capitalismo, mas a continuidade de uma estrutura de exploração que reorganizou o trabalho escravizado sob novas formas. A escravidão, longe de ser um anacronismo, foi o motor da economia colonial e deixou como herança a racialização do trabalho. Com a Abolição de 1888, a libertação formal do negro não significou a ruptura com essa estrutura: a expropriação do trabalho negro e a marginalização racial tornaram-se pilares do capitalismo dependente. O racismo, portanto, não é apenas uma ideologia, mas um sistema material de dominação, que garante a superexploração da força de trabalho. Em sua análise, a modernização brasileira se ergue sobre o mesmo fundamento da senzala. Essa formulação antecipa a ideia de capitalismo racial, desenvolvida posteriormente por Cedric Robinson, e demonstra a dimensão internacional de seu pensamento.
Outro eixo fundamental de sua obra é a redefinição do papel do negro na história. Em contraposição à historiografia tradicional, que via a população escravizada como massa passiva, Moura a concebe como sujeito revolucionário. Em Rebeliões da Senzala, demonstra que as fugas, os quilombos e as insurreições não foram reações esporádicas, mas expressões de consciência política e de resistência de classe. O quilombo é interpretado como forma de negação prática da ordem colonial e ensaio de uma sociabilidade alternativa, baseada na solidariedade e na igualdade. Essa leitura confere à luta negra um caráter central no processo histórico brasileiro: o negro não é o “objeto” da história, mas seu motor oculto. Moura amplia, assim, o conceito de proletariado, incluindo os descendentes de escravizados e os trabalhadores marginalizados como integrantes da classe trabalhadora ampliada.
A formulação de Clóvis Moura implicou uma profunda crítica teórica ao economicismo expondo o que chamou de “ausência dialética da raça no marxismo brasileiro”. Para ele, a ortodoxia reproduzia o universalismo abstrato europeu, ignorando as condições coloniais e raciais da América Latina. O racismo, afirmava, não era uma mera consequência do capitalismo, mas um dos seus fundamentos históricos: “a cor negra foi a primeira forma de mais-valia social”. Essa concepção radicalizou o pensamento marxista brasileiro e abriu espaço para a construção de uma perspectiva, que unia materialismo histórico e análise racial.
Moura, em 1962, fez a opção em se inserir nas fileiras do PC do B, sendo preso durante a ditadura militar, entre 1964 e 1968. Escreveu textos que consolidaram sua visão sobre a história e a sociologia do negro. Em obras posteriores, como Sociologia do Negro Brasileiro (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994), aprofundou sua tese de que a modernidade brasileira é inseparável da herança escravista e de que a abolição inacabada continua a definir as relações de trabalho e de poder. Desenvolveu os conceitos de luta de classes racializada e de racialização da acumulação, explicando como as desigualdades raciais são continuamente reproduzidas pelas estruturas econômicas e políticas. Nessas análises, o racismo não é apenas ideologia de dominação, mas forma concreta de reprodução da dependência.
Seu pensamento exerce influência decisiva sobre o Movimento Negro Unificado (MNU) a partir de 1978 e sobre os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) que se consolidam nas universidades públicas nas décadas seguintes. Moura foi o primeiro a propor uma leitura histórica e dialética do racismo estrutural, antecipando discussões que seriam retomadas por autores como Kabengele Munanga, Sueli Carneiro e Silvio Almeida. Sua obra também estabelece pontes com a tradição pan-africanista e com o pensamento revolucionário caribenho de Frantz Fanon, sem abandonar a centralidade do contexto brasileiro.
O legado de Clóvis Moura ultrapassa a fronteira da sociologia e da história: ele reconfigura o próprio horizonte da esquerda brasileira. Ao demonstrar que o racismo é condição de possibilidade do capitalismo no país, substitui a ideia de uma revolução universalista por uma revolução concreta, anticapitalista e antirracista, capaz de romper simultaneamente com a exploração de classe e com a dominação racial. Sua “dialética do Brasil negro” não busca integrar o negro à sociedade existente, mas transformar radicalmente essa sociedade.
No conjunto dos intelectuais negros vinculados ao PCB, Moura representa o ápice teórico e o ponto de inflexão histórica. Se Minervino de Oliveira simbolizou a entrada do negro na arena política e Edson Carneiro a valorização da cultura popular, Clóvis Moura deu a esse movimento uma base filosófica e histórica de longo alcance. Sua obra permanece como uma das mais vigorosas tentativas de pensar o Brasil a partir da senzala e de compreender o capitalismo como ordem racializada. Ao propor que a revolução só será completa quando destruir as estruturas raciais da economia e do Estado, Moura inscreveu-se definitivamente na tradição dos pensadores que fizeram da teoria um gesto de libertação.
Síntese crítica e convergências
A presença de intelectuais e militantes negros no interior do Partido Comunista Brasileiro entre as décadas de 1930 e 1960 constitui uma das experiências mais significativas de deslocamento do pensamento marxista no Brasil. O percurso de Minervino de Oliveira, Édison Carneiro, Solano Trindade, Claudino José da Silva e Clóvis Moura revela uma constelação de trajetórias que, embora distintas em forma e intensidade, convergem na crítica ao universalismo na defesa de uma revolução brasileira que só pode ser plena se for também antirracista. Cada um, a seu modo, abriu trincheiras teóricas e práticas que expuseram a realidade da população negra.
O ponto de partida dessa trajetória é Minervino de Oliveira, operário e dirigente sindical, candidato à presidência da República em 1930. Sua candidatura rompeu o monopólio racial da representação política e marcou a entrada do trabalhador negro na arena pública nacional. Em um contexto de forte repressão e de hegemonia das elites brancas, Minervino projetou a imagem do negro como sujeito político autônomo, rompendo a lógica assistencialista e paternalista predominante. Embora não tenha elaborado um corpo teórico sistemático, sua atuação simbolizou a primeira tentativa de articular classe e raça no plano político-eleitoral, antecipando debates que só se consolidariam décadas depois.
O segundo momento é representado por Édison Carneiro, cuja produção etnográfica e jornalística conferiu densidade cultural à luta antirracista. Atuando nas frentes culturais do PCB e colaborando com periódicos progressistas, Carneiro recusou a visão folclorizante da cultura negra e a descreveu como campo de resistência social. Em obras como Religiões Negras (1936) e O Quilombo dos Palmares (1947), demonstrou que os cultos afro-brasileiros e as tradições populares não eram resquícios de um passado “atrasado”, mas formas de organização simbólica e política diante da dominação colonial e capitalista. Sua leitura aproxima a etnografia do materialismo histórico: o terreiro, o maracatu e o samba tornam-se expressões de luta de classes, codificadas na linguagem da cultura.
Com Solano Trindade, essa luta assume forma estética e comunitária. Poeta, ator e organizador popular, Solano fez da arte um instrumento de conscientização e resistência. Sua poesia e o Teatro Popular Brasileiro transformaram o espaço cultural em arena política, aproximando o marxismo das práticas coletivas do povo. Ao recusar o realismo socialista ortodoxo e valorizar as estéticas afro-brasileiras, Solano ampliou o sentido de revolução, não apenas limitada a ideia de tomada do poder, mas como reapropriação simbólica e espiritual da vida coletiva. Sua prática mostra que a luta antirracista não se limita à crítica das estruturas econômicas, mas implica a reconstrução da subjetividade e da linguagem.
O itinerário de Claudino José da Silva levou o debate racial para dentro da institucionalidade. Deputado constituinte em 1946, ele inaugurou o antirracismo parlamentar ao denunciar o preconceito racial no mercado de trabalho e exigir políticas públicas para a inclusão do trabalhador negro. Claudino representou a face mais visível da luta por igualdade dentro do Estado e demonstrou que a revolução socialista exigia também a transformação das estruturas legais. Sua experiência parlamentar é um elo entre o operariado de Minervino e a crítica teórica de Moura, evidenciando que a representação política é campo de disputa e não mera concessão do poder.
Por fim, Clóvis Moura consolidou, no plano teórico, o que os demais haviam esboçado na prática. Em Rebeliões da Senzala (1959), transformou o quilombo em categoria histórica e propôs a noção de luta de classes racializada. A partir dele, a escravidão passa a ser entendida como modo de produção racializado que estrutura o capitalismo brasileiro. Moura rompe com o economicismo e formula uma crítica radical ao universalismo europeu, afirmando que o racismo é parte constitutiva da acumulação capitalista e não simples derivação ideológica. Sua obra integra a rebeldia de Palmares, a militância sindical de Minervino e Claudino, e a cultura popular de Carneiro e Solano num mesmo horizonte: a revolução como destruição das estruturas raciais da exploração.
Apesar de suas diferenças, esses intelectuais compartilham três eixos comuns. Primeiro, a denúncia de que o capitalismo brasileiro depende da racialização do trabalho. De Minervino a Moura, a cor da pele é vista como critério de hierarquização e controle, essencial para a reprodução da economia dependente. Segundo, a compreensão do racismo como estrutura e não como preconceito individual: para Carneiro e Solano, ele organiza a vida cultural e simbólica; para Claudino, molda as instituições; para Moura, estrutura a produção e o Estado. Terceiro, a defesa de uma revolução antirracista, em que o socialismo não se resume à igualdade formal, mas implica a refundação histórica do país.
As divergências entre eles revelam a pluralidade das táticas de luta, unificadas em uma estratégia política definida pelos Congressos do PCB. Minervino e Claudino foram, pela tática partidária, alçados para a via política institucional, esforçando-se em ampliar, pela lei e pela representação, direitos inalienáveis; Carneiro e Solano tiveram suas militâncias direcionadas a via cultural e comunitária, atuando no campo simbólico; Moura, em sua militância, elaborou a síntese teórica que amarra essas experiências sob a forma de uma dialética do capitalismo racial. Essas diferentes frentes não se anulam, mas se complementam: o voto, a arte, a cultura e a teoria formam um mesmo movimento de insurgência.
O conjunto dessas trajetórias instaurou uma nova gramática política, a partir destes quadros políticos do PCB, o marxismo brasileiro ganha densidade histórica e se aproxima da experiência real dos oprimidos. O negro deixa de ser mero objeto de solidariedade para tornar-se sujeito revolucionário, produtor de teoria, cultura e política. Essa tradição constituiu as bases do marxismo negro no Brasil, influenciando o Movimento Negro Unificado, os estudos afro-brasileiros e as atuais reflexões sobre racismo estrutural. Ao fim, a convergência entre esses intelectuais reafirma uma tese comum: sem antirracismo, não há socialismo possível no Brasil. O capitalismo e o racismo formam um mesmo sistema de dominação, e a revolução que não enfrentar essa unidade será apenas parcial. Minervino, Carneiro, Solano, Claudino e Moura transformaram o comunismo em campo de disputa simbólica e política, provando que a emancipação de classe precisa ser, ao mesmo tempo, uma emancipação racial e cultural. Suas vozes, vindas das fábricas, dos terreiros, dos palcos, das tribunas e das senzalas reescritas pela história, compõem uma mesma melodia: a de um Brasil que só será livre quando a cor da pele deixar de ser o limite da humanidade.
Capitalismo, Racismo e Revolução: o legado dos intelectuais negros comunistas
O percurso analítico empreendido ao longo deste estudo confirma a hipótese de que os intelectuais negros vinculados ao Partido Comunista Brasileiro entre as décadas de 1930 e 1960 transformaram profundamente o horizonte teórico e político da esquerda brasileira. A partir de experiências distintas, a militância sindical e eleitoral de Minervino de Oliveira, a etnografia militante de Édison Carneiro, a práxis estética e comunitária de Solano Trindade, a atuação institucional de Claudino José da Silva e a formulação teórica de Clóvis Moura, observa-se a construção de uma linha de continuidade que reinterpreta o marxismo a partir da realidade racial brasileira. Em comum, todos partem da constatação de que o racismo não é um fenômeno cultural periférico, mas o eixo oculto da exploração capitalista e da dependência nacional.
Esses caminhos revelam que a questão racial, foi gradualmente convertida em campo de elaboração teórica e política. Conforme já demostrado Minervino de Oliveira inaugurou a presença negra na cena comunista, confirmando que o proletariado brasileiro tinha cor e que a revolução deveria incluir o trabalhador negro em sua liderança simbólica e material. Édison Carneiro, ao traduzir o candomblé, o samba e o quilombo em linguagens políticas, conferiu dignidade epistemológica à cultura popular e deslocou a etnografia para o terreno da luta de classes. Solano Trindade, por sua vez, transformou a arte em instrumento de libertação, convertendo o teatro e a poesia em pedagogias de resistência. Claudino José da Silva introduziu o tema racial na arena parlamentar, antecipando, sob forma institucional, o que mais tarde se configuraria como política de ação afirmativa. Clóvis Moura sistematizou essas experiências em uma teoria da luta de classes racializada, demonstrando que o capitalismo brasileiro se sustenta sobre a herança escravista e a permanência do trabalho racializado.
Identificamos que as contribuições desses autores convergem na redefinição de três pilares da tradição marxista brasileira. O primeiro é o da formação social, reinterpretada como estrutura de acumulação racial. Ao contrário da leitura economicista, que via a escravidão como obstáculo à modernização, Moura e seus antecessores mostram que ela foi o alicerce do capitalismo dependente. O segundo é o da classe trabalhadora, compreendida como corpo racialmente constituído, cuja exploração se legitima pela ideologia da inferioridade negra. O terceiro é o da revolução, entendida não apenas como transição econômica, mas como processo de descolonização social, cultural e simbólica. A libertação do trabalho, para esses intelectuais, exige também a libertação da cor, da memória e da cultura.
A síntese alcançada por esses intelectuais confirma que o marxismo negro não é uma ruptura externa ao marxismo, mas um deslocamento conceitual e político em seu momento dialético mais consequente. Ao introduzir a raça na análise de classe, eles devolvem ao materialismo histórico sua dimensão concreta, ancorada na experiência colonial e escravista do Brasil. Ao mesmo tempo, reconfiguram o projeto socialista como revolução cultural e simbólica, superando o reducionismo economicista. A partir deles, o comunismo brasileiro deixa de ser tradução de modelos europeus e torna-se expressão autóctone da luta de libertação nacional.
Conclui-se, assim, que o encontro entre capitalismo, racismo e revolução define a especificidade do pensamento negro comunista no Brasil. Esses intelectuais demonstraram que o socialismo só será efetivo quando incorporar a luta antirracista e que a emancipação da classe trabalhadora depende da destruição das hierarquias raciais que sustentam o Estado e o capital. O futuro da esquerda brasileira, portanto, repousa sobre o reconhecimento de que não há revolução social sem revolução racial. O gesto de Minervino, a pena de Carneiro, o palco de Solano, a tribuna de Claudino e a dialética de Moura formam uma genealogia insurgente que ainda interpela o presente: construir um Brasil em que a cor da pele não determine o lugar do homem na história.
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