O valor da vida e o genocídio

Foto: Hosny Salah / Pixabay

Por Mauro Luis Iasi

Blog da Boitempo

“A dor não é a forma suprema da perfeição.
Meramente provisória, é um protesto.
Está presa aos meios iníquos, doentios e injustos.
Quando a iniquidade, a doença e a injustiça forem
erradicadas, não haverá mais lugar para ela”.
— Oscar Wilde , A alma do homem sob o socialismo

No ataque de 7 de outubro o Hamas matou 1.139 pessoas e deixou 3.400 feridos. Em dois anos de guerra o Estado de Israel matou mais de 67.869 mil pessoas e deixou algo em torno de 165 mil feridos. Além do custo humano, a agressão do Estado sionista consumiu US$ 55,6 bilhões, cerca de 10% do PIB israelense.

O valor é uma coisa estranha, esta objetividade impalpável, esta gelatina fantasmagórica, nas palavras de Marx (O Capital) ao tratar da mercadoria. O caráter impalpável ou fantasmagórico viria do fato que o valor não se revela por si mesmo, mas somente na relação entre duas mercadorias no ato da troca, no qual uma se apresenta como valor relativo e outra equivalente. Nada muda quando nos utilizamos de um equivalente monetário como equivalente geral.

Como sabemos, a substância do valor é o trabalho socialmente necessário que, na troca, se iguala entre valores de uso diferentes. Mas, e o valor da vida? Para alguns filósofos do direito, a vida seria o bem mais valioso. Para um comerciante de escravos no Brasil Colônia, uma vida valeria algo em torno de 110$000 réis (se fosse mulher, 85$000 réis). Para as relações de assalariamento no Brasil de hoje, R$1.518,00 por mês, mas você pode encontrar por menos.

Para nós, no entanto, a vida não tem, ou não deveria ter valor. Pelo simples fato de que nenhum ser humano — nem sua força de trabalho — deveria ser uma mercadoria. Mas, como vimos, os seres humanos são transformados em mercadoria na relação de troca expressando um valor.

Tomando por analogia o reino da economia política, chegamos à macabra matemática do valor da vida no contexto do genocídio. Concluímos tragicamente que na economia do genocídio um israelense vale 57,12 palestinos. Se preferirem, considerando o custo medido em equivalente monetário, algo em torno de US$ 854 mil por palestino morto. O genocídio é democrático, não importa que entre os cadáveres palestinos que jazem sobre os escombros de Gaza 81% sejam crianças, para que se estabeleça a justa equivalência entre a vida de um israelense e a de um palestino.

Mas qual seria a substância de tal macabra equivalência? Por qual razão um palestino carrega tão pouco valor na relação de troca com outra vida? Aqui cessa a analogia, não pode radicar tal substância no trabalho ou nos meios de potenciá-lo. Verdade que o ataque de 7 de outubro se deu com balões e dirigiveis precários, enquanto o Estado sionista conta com a mais alta tecnologia bélica para destruição em massa. No entanto, isso só diz respeito à eficácia do genocídio e não àquilo que queremos compreender.

A resposta está em outro lugar. Freud, diante do espanto da eclosão da Primeira Guerra Mundial, vaticina que estávamos preparados “para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa” (FREUD, 2009, p. 5); no entanto, os povos civilizados — os homens brancos a quem caberia supostamente o comando da civilização — deveriam, segundo o pai da psicanálise, encontrar outro meio para resolver conflitos que não a guerra.

Bom, ao que parece a cor da pele, o patamar de evolução e de cultura incidem sobre a diferença que se expressa na equivalência da morte. O povo judeu vivenciaria este fato no segundo conflito mundial, quando ao lado de ciganos, comunistas, homossexuais, crianças com síndrome de down e outros foram considerados seres indignos de vida. Um ariano valia, segundo o nazismo, muito mais que um judeu.

Para que se possa praticar o genocídio é necessário romper o elo que iguala as pessoas como seres humanos. Dizem que aqueles que praticavam as matanças em Ruanda consideravam suas vítimas como baratas, e seus assassinatos como mera jornada de trabalho. O próprio Freud, diante do horror de uma guerra entre povos brancos e civilizados, nos diz que a aparente insensibilidade frente à enorme matança na guerra teria se dado pelo rompimento dos milhares de laços entre os seres humanos, de forma que sua perda não se prestará a provocar um luto ou uma melancolia (FREUD, 2013, p.34).

Os palestinos precisam perder sua dignidade de pessoas, têm que ser apresentados como terroristas para que possam ser eliminados em massa, exterminados como animais, como afirmou o ministro da Defesa de Israel, Yov Gallant. Ao ser liberada após o sequestro das forças israelenses, Greta Thunberg, que poderia destacar as torturas e maus tratos sofridos, preferiu destacar o horror diante da apatia do mundo diante do massacre na Faixa de Gaza.

A apatia diante do massacre, a banalidade do mal, nas palavras de Hannah Arendt, ou ainda a insensibilização vendo o noticiário enquanto jantamos, como queiram, desumanizam as vítimas na mesma medida que nos desumanizamos.

Enquanto se festejava o cessar fogo e se incensava Donald Trump como candidato ao prêmio Nobel da Paz, a economia política do genocídio ainda não cessou. O ministro das Finanças de Israel, o direitista Bezael Smotrich, está preocupado em recuperar o investimento no genocídio através de um empreendimento imobiliário em conjunto com o pacifista presidente do EUA (que forneceu as armas e recursos para a destruição de Gaza). De forma cínica e brutal, afirmou que o trabalho de destruição já estava feito, agora trata-se da fase da construção, o que implicara em bairros de luxo e condomínios para policiais sionistas, talvez uma estátua dourada e de mau gosto. Há também as reservas de gás e petróleo sob os escombros de Gaza e dos cadáveres em decomposição.

O complexo industrial-militar computará seus lucros. O mundo gastou em 2024 a quantia de 2,7 trilhões de dólares em guerras localizadas e outras já estão no forno prestes a eclodir. Os palestinos que desde 1948 não têm um Estado, agora não terão mais terra, mar, braços, pernas, filhos, avós e oliveiras centenárias.

Enquanto Estados ruminam acordos, a ONU morre lentamente de letargia provando que os laços com a humanidade vão se rompendo e enterrando seja o luto ou a melancolia, uma bandeira percorre o mundo, sem território ou fronteiras, apenas alimentada por estes laços que ainda nos unem como humanidade e preenchem nossos corações de dor, de raiva, de poesia e de cantos.

Os palestinos não terão um Estado. Mas, quando o mundo não tiver mais Estados, ainda haverá Palestina, talvez como um dor imensa, talvez como um broto de oliveira crescendo entre escombros diante do mar.

Referências

FREUD, S. A nossa atitude diante da morte. Escritos sobre a guerra e a morte. Covilhã: Universidade de Beira Interior, 2009.

FREUD, S. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

MARX, K. O capital. V. I. São Paulo: Boitempo, 2013.

WILDE, O. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: LP&M, 2003.

***
Mauro Iasi professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e membro do Comitê Central do PCB.

https://blogdaboitempo.com.br/2025/10/17/o-valor-da-vida-e-o-genocidio/