O enterro dos decrépitos da ditadura
Manifestação de 21/09/25 em Copacabana, Rio de Janeiro – foto: PCB RJ
Gustavo Marun – membro do Comitê Regional do PCB RJ
Como escreveu o saudoso mestre Luís Fernando Veríssimo, que lamentavelmente nos deixou outro dia, tudo fez sentido naquele dia. Toda aquela distopia vivida nos últimos anos, com Aécio derrotado assumindo o papel de cão hidrófobo, toda sujeira da Lava-Jato, o golpe de 2016, o vampiro Temer, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro, com suas tragédias e mais tragédias… Talvez tenha sido tudo parte de um script. Fosse um roteiro de ficção, seria de mal gosto e mal escrito, mas assim se desenrolou a nossa triste história recente. E como num filme de certa forma previsível, a vilania começou a se esgarçar… Ainda na pandemia, quando fomos na raça e na coragem para as ruas, mascarados e distanciados, exigir vacina no braço e comida no prato. Derrotamos magistralmente, em seguida, apesar de apenas eleitoralmente, a figura de proa do fascismo dos trópicos. Mas tais múmias sabem se revirar e se revigorar, e com seus feitiços e hipnoses muito bem patrocinados, arrastaram um séquito de zumbis para a tentativa de golpe em 08/01/2023, felizmente fracassada.
O STF entra então em ação para fazer nada mais do que o mínimo esperado. Condenar criminosos (e dos grandes, dado que julgados no foro Supremo). O que é incrivelmente um grande feito, vide o histórico recorrente de “passadas de pano” de nossas elites para nossas elites…
Sem brilho e sem lustre, Bozo recebe sua tornozeleira e em sequência sua justa e primeira dentre as diversas penas que hão de vir, na esteira de outros processos. O cronômetro corre agora contra ele até que vá para cadeia. A despeito da grita e ameaça de Trump, das burlescas tramoias e defesas explicitamente intervencionistas e antinacionais de um dos herdeiros de Bolsonaro, mais um membro da laia que, se dizendo patriota, nos trai e ergue uma gigante bandeira do país agressor em mais uma manifestação dos que se retroalimentam de preconceitos e ódios, agora acuados.
Em resposta à condenação, as ratazanas alvoroçadas que infestaram o Congresso buscam contra-atacar, sordidamente conseguindo maioria para a PEC da bandidagem e urgência da, acreditem, anistia.
A situação que beira o surrealismo exigia uma resposta. E é aí que a maré começa a virar.
Um chamado de emergência para as ruas se espalha como fogo no palheiro. Não é apenas mais um ato. Dessa vez, quem resolve engrossar a convocação não é qualquer um. Assumem a responsabilidade de se somar ao chamado ninguém menos que Chico, Caetano e Gil!
Não havia outro local naquele domingo para onde deveríamos ir a não ser Copacabana. Desconfiei da grandiosidade quando, em conversa com meu porteiro, ele confirmou que estaria lá. Na estação, o metrô chegou lotado e vindo da Zona Norte. Ou seja, não eram os cariocas mais abastados seguindo aquele rumo. Nosso grupo, espremido, ainda estava intrigado se aquela massa compacta não seria uma mistura heterogênea contendo praieiros tardios numa tarde ensolarada. Mas já no primeiro trajeto entre estações, uma voz feminina firme puxou um “sem anistia”, na cadência já conhecida. E para nossa surpresa e alegria, a multidão imediatamente respondeu em uníssono, ruidosamente entoando aquele mantra que há de exorcizar o Brasil!
Seguindo a corrente de gente em coro, desaguamos no mar de povo.
E dali se via, no palco, os mais jovens octogenários e outros bem vividos do Brasil.
Caetano ciceroneando e maestrando com sua habitual finesse. Djavan, inconfundível, recolocando-se no lugar certo. Gil, um griô inconteste e soberano. Chico Buarque e sua genial e discreta autoridade, jogando em casa. Ivan Lins, com suas melodias e letras que parecem ter sempre existido. Paulinho da Viola e Geraldo Azevedo e suas doçuras musicais. Frejat para eletrificar o evento. Lenine fazendo muito leninista cantar e remexer. Maria Gadu, caçula arisca, talentosa e generosa e tantos outros artistas brasileiros!
Aliás, sentíamos falta dos artistas populares se enfileirarem junto ao povo. Como dizia um dos grandes, “todo artista tem de ir aonde o povo está”.
Aquelas grandes figuras juntas me geraram a imagem mental, num pequeno lapso de influência do Império, admito, de um Monte Rushmore à brasileira, que bem merecia ser esculpido para eternizar aquele momento. E, como dito, tudo fazia sentido.
Até o gol do Vasco, ultimamente tão maltratado, se igualando ao arqui-rival. E a Portela e seu samba saindo da boca do Paulinho para voltar a parar na boca do povo. Cada peça ali tinha uma explicação e indicava a firme mudança dos ventos.
Alguns se apressaram ao tentar enquadrar o movimento como antipartidário. Não, definitivamente, não estamos mais em 2013. Nem mesmo apartidário ele era. Aliás, essa categoria é um fetiche, inexiste, e quando há essa ilusão, geralmente quem está dando as cartas é o partido da ordem, o qual, para se disfarçar, nos entranha e induz nosso pensamento a erro. Suprapartidário talvez seja uma boa definição. Pois, se havia uma multidão consciente porém não partidária, estavam lá, sim, os diversos partidos, nos seus variados matizes, presentes, seja com simpatizantes, seja com militantes. Partidos da Esquerda, por suposto.
Dentre estes, eles mesmos, como mais um sinal dos tempos: os/as comunistas do centenário PCB, em coluna volumosa, barulhenta e vibrante. E com os grisalhos em minoria! São tempos em que tudo aquilo que os/as marxistas afirmam se apresenta de forma translúcida para quem não quer fechar os olhos. O imperialismo, a decadência do regime do capital, a necessidade e urgência do fim da exploração do homem pelo homem… Tudo tão claro e incontestável! Como muitos relutaram tanto a aceitar por todo esse tempo?
Ali tremularam sim várias bandeiras, que simbolizam ideologias do campo popular. Mas das nações, fora as do Brasil, apenas uma se sobressaía, mais do que justificada: a da Palestina. O oposto da reafirmação da submissão, hoje ela simboliza a luta pelos princípios mais humanos, anticoloniais e antigenocídio, com os quais temos obrigação de nos irmanar. O lado certo da luta é o lado dos que têm o sangue derramado pela opressão e covardia.
O dia deixou a lição, portanto, que na nossa verde e amarela bandeira, ainda cabe um vibrante vermelho!
Está certo que foi um grande movimento de adesão, e que daí se precisa de um enorme esforço para torná-lo engajamento (e não me refiro aqui ao virtual somente), ou seja, algo mais constante e com potencial de maior energia motora. E, quiçá, sua natureza se eleve para a organização e disciplina necessários, no futuro. O que exige um maior grau de desprendimento e convicção. Sem ilusões. Sabemos que existem distâncias, tempos e muito trabalho entre esses degraus. Mas, sem pisar no primeiro, não se chega aos demais.
O tremor, e por que não, pânico, gerado nos poderosos, que estavam muito à vontade, demonstrou mais uma vez que, na história, o jogo principal não se dá onde apontam as câmeras e os holofotes, mas, ao contrário, onde o público está. Não nos gabinetes, mas nas ruas!
A multidão levantou a bola e espera de Lula uma cortada. E que não sejam somente belos discursos, ainda que corretos e animadores. Queremos e precisamos de atitude. Ou seja, no caso, a aplicação da reciprocidade!
E foi assim que o dia 21/09 se tornou o dia nacional do enterro da ditadura. Que convém entrar no calendário. Pois esse morto ressuscita e precisa ser re-enterrado, recorrentemente.
Mas tudo fez sentido, meu caro Veríssimo. Sei que, ao ouvir falar desse dia, atrasou os passos, deixou outros passarem a fila, para dar uma bisbilhotada em regozijo!
Então, sigamos assim: Sem anistia para eles. Sem apatia para nós!