O recado das ruas e o novo ciclo de lutas sociais

Manifestação do dia 21/09/25 em Belo Horizonte (MG) – Foto: PCB de Minas Gerais

Edmilson Costa

O Brasil mudou no domingo passado, 21 de setembro. Ao contrário do que muitos imaginavam, as gigantescas manifestações contra a PEC da bandidagem e a anistia para Bolsonaro emergiram com força e entusiasmo em todas as capitais e nas maiores cidades do país, reunindo centenas de milhares de manifestantes. Os atos revelaram que, mesmo numa conjuntura complexa e difícil como a que vivemos atualmente, marcada por retrocessos sociais e chantagens dos Estados Unidos, é possível reunir multidões em mobilizações capazes de alterar a correlação de forças e enfrentar com base social e organização popular a extrema-direita, a direita clássica, as ameaças do imperialismo estadunidense e colocar na ordem do dia a pauta dos trabalhadores e das trabalhadoras. As manifestações também serviram para resgatar as ruas como espaços próprios do povo trabalhador, das forças progressistas e revolucionárias e não do neofascismo, como vinha acontecendo nos últimos anos. Além disso, levantaram a moral de vastos setores populares que estavam apáticos diante da conciliação de classes e demonstraram haver disposição de luta e energia social para inaugurar um novo ciclo de movimentos sociais, com vistas a construir um projeto alternativo para o Brasil.

Um dos aspectos mais extraordinários do êxito das manifestações foi o fato de que os/as organizadores/as tiveram apenas quatro dias para realizar o evento, mas esse tempo curto foi compensado pela entrada em cena dos movimentos populares, partidos políticos e redes sociais, cuja militância se empenhou de maneira decisiva na convocação dos atos, que rapidamente ganharam o apoio de artistas e intelectuais em todas as regiões, reforçando sua legitimidade. Também contribuíram para a explosão das ruas as chantagens do imperialismo dos EUA e as bandalheiras do bolsonarismo no Congresso, um bando constituído pelo lumpesinato político mais grotesco da história brasileira. Esse setor, viciado na corrupção e nas medidas contra a classe trabalhadora durante o governo Bolsonaro, sentiu-se suficientemente impune para aprovar a PEC da bandidagem, que desejava blindar os parlamentares frente ao ajuste de contas com a justiça, bem como pautar a urgência do projeto que pretende anistiar Bolsonaro e sua gangue de criminosos, os quais tentaram implantar uma ditadura no Brasil através de um golpe de Estado. Essas medidas indecorosas, que representaram um verdadeiro escárnio contra o povo brasileiro, foram a gota d’água que despertou a indignação de milhares e milhares de pessoas e levou as multidões às ruas, para surpresa de muitos.

Mas é importante ressaltar que as manifestações não surgiram do nada: foram também resultado de um longo período de acúmulo de insatisfação contra o ajuste fiscal e as políticas neoliberais do governo, as aberrações aprovadas nesse Congresso reacionário para blindar os corruptos e criminosos, além da escalada de chantagens do governo Trump, processos que levaram a população ao limite. O descontentamento popular já era visível em alguns sinais de resposta coletiva: a) quando o Congresso rejeitou a cobrança do IOF para os mais ricos, ocorreu uma explosão de repulsa nas redes com a palavra de ordem “Congresso inimigo do povo”; b) quando Trump iniciou a escalada de sanções ao Brasil ocorreram também manifestações expressivas em vários Estados. Portanto, a aprovação da PEC da bandidagem e a votação de urgência da anistia para Bolsonaro e sua gangue vieram apenas completar o quadro de aberrações desse lumpesinato parlamentar e levar a população ao limite. Ou seja, a explosão popular já estava madura e tais acontecimentos foram apenas o gatilho para impulsionar as massas a decidir manifestar sua raiva nas ruas.

A partir de agora o governo Lula não tem mais desculpas para deixar de convocar a população à luta e enfrentar de maneira firme a oligarquia financeira, as políticas neoliberais e as forças conservadoras. O pretexto de que não era possível a convocação da população porque não existia correlação de forças nem ambiente para mobilizações e por isso eram necessários os acordos com os setores conservadores, se esvaziou completamente. Agora esse argumento não existe mais. A realidade das ruas mostrou o contrário: o povo quer mudança, o povo quer que as promessas de campanhas sejam cumpridas, o povo quer outra política econômica, sem os ajustes fiscais, as políticas regressivas nem as concessões aos setores reacionários. Não é mais possível continuar governando emparedado pelo Centrão e aplicando medidas baseadas no arcabouço fiscal, garantindo lucros exorbitantes para os rentistas. Se o governo não seguir outra política econômica a partir de agora ficará evidente que o discurso de compromisso com o povo não é mais que uma retórica vazia para esconder a covardia política e continuar governando essencialmente para o capital, enquanto oferece à população apenas as migalhas da compensação social, instrumento que serve de vitrine para implementar a política para social-liberal.

Um dos aspectos mais significativos das manifestações de 21 de setembro está relacionado à disputa pelo valor simbólico em relação às bandeiras e ao patriotismo. Por muito tempo a extrema-direita sequestrou os símbolos nacionais e buscou transformá-los em monopólio do neofascismo. A resposta dos organizadores das atividades de domingo foi exemplar: em meio à multidão reunida na avenida Paulista, em São Paulo, por exemplo, a militância estendeu uma gigantesca bandeira brasileira, marcando um forte gesto político para reafirmar que o verde e amarelo pertence ao povo trabalhador e à população brasileira e não ao neofascismo. Esta ação política contrasta de forma especial com as manifestações bolsonaristas de sete de setembro, quando seus organizadores, sem qualquer constrangimento, hastearam uma gigantesca bandeira dos Estados Unidos, marcando de maneira óbvia sua subserviência aos interesses do imperialismo estadunidense. Com isso ficou comprovado que a retórica patrioteira bolsonarista não passa de uma cortina de fumaça para esconder seu caráter antinacional e antipopular. Em contrapartida, a bandeira brasileira no meio da multidão continuará marcando simbolicamente a consciência popular e reafirmando que as cores nacionais são símbolos de luta e não de submissão.

Outro dos aspectos que deve ser levado em conta é o fato de que grande parte dos/as manifestantes que estiveram nas ruas em todo o país foram mobilizados/as em função de sua indignação moral contra a corrupção e a bandalheira realizada pelo Congresso, temas que historicamente mobilizam grandes setores da população, como pudemos ver nos levantes de 2013. Mas o que distingue o ato de domingo é que agora a bandeira da luta contra a corrupção, antes sequestrada pela extrema-direita, também foi recuperada pelas forças progressistas, com a vantagem de que o alvo principal passa a ser a direita e a extrema-direita, que se imaginavam proprietárias dessa pauta. Além disso, nas atividades de domingo, não se observaram os slogans “sem bandeiras”, “sem partidos”, que eram formas de as forças conservadoras descaracterizarem e buscarem afastar a esquerda das manifestações. As bandeiras vermelhas, as camisetas dos/as militantes e os cartazes levantados por populares contra a corrupção e contra a anistia aos bolsonaristas tomaram conta das ruas, demonstrando que a população está sabendo quem são os seus inimigos. Se nos levantes de 2013 os conservadores se apropriaram da insatisfação popular, as manifestações do último domingo abriram o caminho para a emergência de um novo ciclo de lutas sociais, com a possibilidade do protagonismo dos trabalhadores e das trabalhadoras.

Significado político das manifestações

Antes de tudo é preciso destacar que as manifestações de 21 de setembro mudaram o ambiente de apatia e perplexidade que vinha vigorando há alguns anos no Brasil, em consequência da política de apassivamento e conformismo das organizações ligadas à conciliação de classes, que nos levaram a sucessivas derrotas. Provou que existia uma energia represada, uma revolta latente, contida pelos anos de frustrações e que agora poderão ser canalizadas para a construção de um projeto popular para o país. Tudo indica que estamos diante de uma virada política na luta de classes, que poderá se intensificar diante das ações desse Congresso inimigo do povo, das condições de vida da população e das ameaças do imperialismo dos EUA, processo que poderá evoluir para lutas de caráter anti-imperialista e anticapitalista, porque a conjuntura vai continuar se deteriorando. Afinal, quando o povo perde a paciência, quando decide se colocar em movimento, sempre encontra caminhos para as mobilizações, mesmo diante das vacilações de suas lideranças, tanto as que estão no governo quanto nos movimentos sociais. Foi isso que ocorreu nas manifestações de domingo: as massas foram às ruas porque estavam de saco cheio e necessitavam demonstrar publicamente sua repulsa a esse Congresso reacionário, às péssimas condições de vida, à ofensiva do imperialismo estadunidense e às promessas de campanha não cumpridas.

O dia 21 de setembro também ficará registrado como um divisor de águas, um dique que rompeu com o imobilismo e recolocou a população como protagonista na cena política. Comprovou que os símbolos podem ser resgatados, que o enfrentamento à crise é possível, que é necessário atender aos interesses populares e que a luta de classes e as mobilizações populares nas ruas são os instrumentos mais poderosos para reorientar a correlação de forças. O PCB vinha alertando há bastante tempo para essa questão: mesmo sendo uma força modesta numericamente diante do tamanho da população brasileira, nossa organização possui uma clareza programática e enorme capacidade de formulação política, o que lhe permitiu identificar desde cedo a saída para a crise brasileira, que agora está sendo confirmada pela vida. É hora de dar um passo à frente: construir a Frente de Mobilização Popular, um instrumento político que tenha capacidade tanto para reunir o movimento sindical, os movimentos populares e as organizações da juventude, quanto para enfrentar a crise com base popular, especialmente para colocar na ordem do dia a pauta dos trabalhadores e das trabalhadoras. Um organismo capaz de transformar a indignação popular contra a corrupção em mobilizações dirigidas pelos interesses dos/as trabalhadores/as com bandeiras táticas que falem diretamente ao povo, como a redução da jornada de trabalho para 30 horas sem redução dos salários, contra a escala 6 x 1, pela taxação das grandes fortunas e o fim do arcabouço fiscal, além de medidas de caráter estratégico que apontem na direção dos interesses populares.

Além disso, as manifestações criaram uma nova dinâmica na luta de classes no Brasil, mas seu desenvolvimento não ocorrerá automaticamente: se não quiserem perder a legitimidade, agora os partidos políticos, movimentos sociais e de juventude, além do governo, têm a obrigação de se adaptar a esse novo espírito de combatividade popular porque a disputa tende a ser cada vez mais polarizada. É necessário um grande esforço de trabalho de base, de agitação e propaganda de todas as forças progressistas e de esquerda no sentido de consolidar e intensificar essa combatividade, de forma a que as manifestações de outubro não se transformem apenas em eventos episódicos e sejam esfriadas pelas organizações conciliadoras, que temem a luta de massas e, o que é pior, temem principalmente perder seus cargos e privilégios no aparato sindical e popular. O governo também deve colocar as barbas de molho porque, quando as massas emergem com independência na cena política, a conjuntura também muda, os espaços para negociações de bastidores, concessões aos inimigos da classe trabalhadora e a retórica apartada da realidade se tornam cada vez mais estreitos. O recado das ruas foi evidente: terminou o baile de máscaras e o momento de passividade; não é mais aceitável seguir com as políticas ortodoxas, os ajustes fiscais contra os trabalhadores e as trabalhadoras, as promessas não cumpridas, porque a luta popular entrou em um novo patamar.

Para que essa conjuntura se consolide é também imprescindível o trabalho político: as organizações sociais e políticas devem colocar os pés no barro porque a história demonstra que as mobilizações populares, particularmente aquelas com certas características de espontaneidade como essa de domingo, precisam ser articuladas com as organizações sociais e políticas para se tornarem duradouras, ganharem clareza orgânica e sentido político. Não há atalhos nem ilusões institucionais capazes de substituir a presença organizada dos setores populares. O Brasil está cansado desse longo ciclo de conciliação cheio de derrotas. Não podemos perder a oportunidade histórica, nem repetir os mesmos erros do passado. Se as manifestações de domingo revelaram o potencial das massas, a Frente de Mobilização Popular poderá ser o instrumento capaz de dar uma direção classista às mobilizações, organizar um programa unitário, articular os setores dispersos que ainda não foram incorporadas à luta, especialmente nos bairros populares, para abrir caminhos rumo à construção do poder popular.

Finalmente, o clima nas manifestações lembrou muito a campanha das Diretas já e as manifestações dos caras pintadas. Mas, antes de tudo, foi um grito coletivo de basta, uma recusa em aceitar a naturalização do crime e da corrupção como método de fazer política. A pressão popular das ruas foi tão forte que, no dia seguinte o presidente da Câmara, meio apavorado, reconheceu a necessidade de acabar com as pautas tóxicas da Câmara e barrou a manobra malandra de transformar Eduardo Bolsonaro em líder da minoria, o que abriria espaço para ele não ser cassado; muitos parlamentares gravaram vídeos se desculpando por ter votado nas medidas escandalosas da bandidagem parlamentar; partidos soltaram notas prometendo não aprovar essas medidas no Senado e, finalmente, a própria Comissão de Constituição e Justiça do Senado enterrou o projeto da impunidade. Esse recuo dos parlamentares mostra mais uma vez que somente a mobilização popular nas ruas é capaz de impor limites aos poderosos, alterar a correlação de forças e encaminhar o país para um novo rumo político e social, na perspectiva do poder popular e do socialismo.

 

*Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB