Trump: entre “herói da paz” e os tambores da guerra

Charge: Mauro Iasi

Carlos Arthur Newlands Junior “Boné” – membro do Comitê Central do PCB

Introdução: a virada em Gaza – do resort internacional ao governo palestino tecnocrático

Muita gente, especialmente na grande mídia, ficou extremamente surpreso com o “cavalo de pau” político que o imperialista estadunidense Donald Trump deu em relação à guerra de Israel contra a Palestina, ao apresentar um plano de paz que, na prática, viabilizou o fim da guerra. Lembremo-nos que, há menos de um mês, Trump apoiava publicamente um projeto racista e genocida de transformar Gaza num resort turístico com administração americana e deslocamento forçado de toda a população palestina do território.

Os analistas políticos da grande mídia liberal frequentemente adjetivam Trump de “imprevisível” e “errático”, tentando colar no mandatário estadunidense a pecha de “louco”. Nada mais falso: Trump não é louco, muito menos burro. Como já explicitou corretamente o camarada Secretário-Geral do PCB Edmilson Costa, Trump é essencialmente um negociante que sabe fazer contas e um representante da face mais agressiva do imperialismo estadunidense.

Como assinala a Nota Política de conjuntura do Comitê Central do PCB de agosto deste ano de 2025, “O governo Trump, expressão de um setor majoritário das classes dominantes de seu país, foi alçado ao poder com a missão de enfrentar três tarefas estratégicas: reestruturar a ordem econômica internacional diante da emergência da China, dos BRICs e militarmente da Rússia; reverter o declínio do poderio econômico imperialista estadunidense e reindustrializar o país, buscando recuperar sua antiga supremacia econômica conquistada no pós Segunda Guerra Mundial, materializada no papel do dólar norte-americano no sistema monetário internacional. Para alcançar esses objetivos, Trump vem impondo uma política truculenta, que combina ameaças, chantagens e intimidações. Age como um negociante que busca desorientar o adversário para impor acordos a partir de posições de força. Sua tática, aparentemente irracional, esconde um método: explorar o caos e a instabilidade para reposicionar o imperialismo estadunidense.”

Mas por que a mudança brusca e total da política de Trump para o Oriente Médio? Algumas hipóteses podem ajudar a explicar este “fenômeno”.

Em primeiro lugar, o custo da guerra. Trump, como “negociante que sabe fazer contas”, percebeu que, tanto na Palestina quanto na Ucrânia, o custo financeiro de manutenção da guerra está altíssimo e tem sido bancado essencialmente pelos Estados Unidos. E Trump já deixou muito evidente que não quer mais que os Estados Unidos banquem os custos militares mundo afora: por exemplo, já impôs aos seus “aliados” títeres da Europa Ocidental o aumento dos gastos militares daqueles países com a OTAN.

O custo da guerra para Israel tem sido exorbitante – e Israel depende totalmente dos Estados Unidos, tanto no aspecto político quanto econômico. Além disso, a onda internacional de solidariedade e os diversos boicotes econômicos promovidos por inúmeros países e movimentos sociais (estes, por exemplo, ao impedir/atrasar o embarque de suprimentos militares para Israel) têm causado um impacto na economia israelense muito maior do que a mídia ocidental noticia.

O segundo aspecto fundamental é exatamente o repúdio ao genocídio promovido por Israel na Faixa de Gaza e o crescente apoio internacional à causa palestina. Nestes dois anos de morticínio palestino, Israel foi progressivamente se tornando um pária internacional. Gigantescas manifestações de rua mundo afora repudiaram o genocídio sionista e expressaram a solidariedade dos povos aos palestinos. O reconhecimento do Estado Palestino por países do Ocidente que até há bem pouco tempo eram absolutamente alinhados com as posições internacionais estadunidenses (França, Espanha, Canadá, Austrália e Reino Unido p.ex.) acendeu a luz amarela na Casa Branca. Além disso, o apoio incondicional estadunidense à ofensiva sionista em Gaza estava custando aos EUA o afastamento de aliados históricos no Oriente Médio, como a Arábia Saudita, Turquia e em especial o Catar.

O ataque israelense ao Catar, que tentou assassinar os negociadores do Hamas mas só atingiu infraestruturas civis e de segurança do próprio Catar, enfureceu os governantes dos países árabes e desagradou muito a Donald Trump. Segundo analistas, Trump naquele momento percebeu que o futuro estratégico para os Estados Unidos estava muito mais ligado aos países do Golfo Pérsico do que a Israel. Não à toa, a costura do plano de paz foi feita primeiro com Catar, Egito e Turquia, e só depois apresentada a Benjamin Netanyahu e por último ao Hamas.

Chamou muito a atenção o fato de que a reunião do gabinete do Governo Netanyahu , que deliberou sobre a proposta de paz, contou com a presença física de dois emissários de Trump: 1) Jared Kushner, genro de Trump e judeu ortodoxo com grandes ligações com Israel; 2) Steven Witkoff, empresário do ramo imobiliário, muito ligado a Trump e nomeado enviado especial dos Estados Unidos para o Oriente Médio e enviado especial para Missões de Paz. Ali ficou nítido que Israel “tem que obedecer ao chefe”; com Trump, acabou a época do “rabo que abana o cachorro”.

Não vamos aqui debater os detalhes do plano de paz bancado por Trump, até porque ainda há muitos detalhes não precisamente definidos. Mas é muito importante compreender que o acordo foi saudado como vitória do povo palestino por várias organizações: o Partido Comunista de Israel e sua frente parlamentar Hadash e as organizações da Resistência armada palestina (a Jihad Islâmica, a FPLP e o Hamas) . O Partido Comunista Palestino caracteriza o cessar-fogo em Gaza como um passo humanitário bem-vindo, mas aponta que ainda existem perigos estruturais.

Para além disso, é uma enorme derrota política para o governo de Netanyahu, especialmente para a sua ala de extrema-direita fundamentalista:

1 – não conseguiram destruir o Hamas e a Resistência, nem política nem militarmente. Há informações de que nestes dois anos teriam sido mortos cerca de 17 mil combatentes palestinos, mas que 23 mil novos integrantes se juntaram à Resistência armada;

2 – para a extrema-direita fundamentalista judaica, o acordo inviabiliza por completo a “judaização” de Gaza, um primeiro grande passo para o projeto da “Grande Israel” (também apoiado pelo neopentecostalismo ao redor do mundo), que significa um Estado judeu em toda a Palestina histórica e mais áreas da Síria, Jordânia e Egito. Não à toa, os dois ministros da extrema-direita fundamentalista judaica ortodoxa do gabinete Netanyahu votaram contra o acordo e ameaçam derrubar o governo no Knesset (o parlamento israelense).

A população de Israel também está tendo clareza do papel nefasto do governo Netanyahu. Durante estes dois anos, cresceram as manifestações de rua de repúdio à continuidade da guerra em Gaza e exigindo negociações de paz para a libertação dos reféns israelenses em poder da Resistência palestina armada; no dia em que o acordo foi oficialmente anunciado num enorme comício na Praça dos Reféns, o nome de Donald Trump foi entusiasticamente aplaudido e seus emissários foram ovacionados, mas o nome de Benjamin Netanyahu foi estrepitosamente vaiado.

Na América Latina, soam os tambores da guerra

Por outro lado, o imperialismo ianque aguça suas garras para a região que sempre considerou seu “quintal”: a América Latina. Além de intensificar o bloqueio a Cuba desde o primeiro minuto de seu governo e recolocar La Isla na lista de países que “apoiam o terrorismo internacional”, o governo Trump aplicou sobretaxas comerciais extorsivas ao Brasil e sancionou a quase totalidade dos Ministros do STF com a nefanda Lei Magnitisky, mais uma decorrência do princípio imperialista da “extraterritorialidade” que os Estados Unidos impõem ao mundo. Trump tem ainda ameaçado reanexar o Canal do Panamá e proibiu qualquer cidadão de Cuba, Haiti e Venezuela de obter autorizações de entrada. Os hondurenhos e nicaraguenses perderam a autorização especial para viver nos EUA, que estava vigente havia 25 anos.

Mais grave ainda é a postura agressiva estadunidense em relação à Venezuela. Com o pretexto esfarrapado de que Nicolás Maduro seria um “líder do narcotráfico”, o governo Trump vem acirrando as ameaças militares contra a Venezuela: além de enviar para o Mar do Caribe oito embarcações de guerra (três destróieres, um cruzador de mísseis, dois navios de transporte de tropas, um navio de transporte anfíbio e um submarino nuclear com torpedos e mísseis), os EUA bombardearam duas embarcações venezuelanas no Mar do Caribe, alegando que se tratavam de “terroristas transportando drogas”. A ação foi tão violenta que o deputado democrata Jim Himes classificou no domingo os ataques militares dos EUA a navios venezuelanos no Caribe como “assassinatos ilegais” e “preocupantes”.

É neste contexto que devemos entender a nomeação da golpista de extrema-direita venezuelana Maria Corina Machado para o Nobel da Paz. Conceder o prêmio da paz a quem não cessou de apelar a invasões militares, golpes de Estado, guarimbas e guerras seria apenas mais uma aberração da atual “desordem” internacional e uma desmoralização ainda maior do prêmio, mas é muito além disso: é claramente uma senha internacional para legitimar uma eventual ação militar estadunidense no território venezuelano, agora com o velho e surrado pretexto de “restabelecer a democracia”.

E tudo isso acontece na Venezuela apesar das inúmeras tentativas do governo Maduro de aproximar-se dos EUA. Matéria recente do New York Times, replicada pela imprensa mundial, revela que a Venezuela ofereceu aos EUA amplas concessões econômicas – incluindo um possível acordo para permitir que empresas americanas assumam uma participação significativa em seu setor petrolífero – em negociações secretas que duraram meses.

A proposta incluía a abertura de todos os projetos de petróleo e ouro, existentes e futuros, para empresas americanas, a concessão de contratos preferenciais a empresas americanas, o redirecionamento das exportações de petróleo da Venezuela da China para os EUA e a redução de acordos de energia e mineração com empresas chinesas, iranianas e russas. Washington, no entanto, teria rejeitado o acordo, com o futuro político do presidente Nicolás Maduro sendo o principal ponto de discórdia.

Como já dizia o camarada Comandante Che Guevara, “no Império não se pode confiar nem um tiquito assim”.

Em relação ao Brasil, a supracitada Nota Política do Comitê Central do PCB alerta que “a conjuntura internacional, marcada pela ofensiva imperialista estadunidense encontra, em nosso país, um terreno fértil para provocações e riscos que não podem ser subestimados, muito além da traição entreguista do núcleo do bolsonarismo prestes a ver seu líder condenado e preso. Estamos diante de uma escalada agressiva do governo Trump, através de ultimatos, provocações e exigências feitas exatamente para o Brasil não aceitar e, dessa forma, justificar a escalada de sanções, podendo inclusive evoluir para bloqueios econômicos e desestabilização política interna.”

Conclusão

Com a nomeação de Maria Corina Machado para o Nobel da Paz, o aumento da agressividade do imperialismo estadunidense contra Venezuela, Cuba e Nicarágua e o tarifaço contra o Brasil, e por outro lado a proposta de paz de Trump para a guerra sionista contra a Palestina e o desprezo público de Trump por Zelensky, fica claro que os EUA sob Trump optam por dominar os “seus quintais” América Latina e Europa Ocidental, priorizar o embate com a China e dar um tratamento mais pragmático ao Oriente Médio e à Europa do Leste.

Para concluir, mais uma vez citamos a Nota Política do Comitê Central do PCB:

“Diante dessa conjuntura, o PCB alerta que não só o Brasil, mas os povos do mundo devem reforçar a luta anti-imperialista, ampliar a solidariedade internacional e preparar-se para resistir às aventuras bélicas do imperialismo dos EUA (complemento meu: especialmente aqui na América Latina). O destino da humanidade não pode ser submetido à irracionalidade de uma classe dominante em declínio, disposta a sacrificar a própria espécie humana para preservar seus privilégios. Para construir a resistência anti-imperialista no Brasil, o PCB propõe a formação de uma Frente de Mobilização Popular, capaz de unificar sindicatos, movimentos populares, organizações estudantis e forças progressistas em torno da defesa da soberania nacional e popular e do enfrentamento decidido ao imperialismo dos EUA. Somente com o povo organizado poderemos resistir à escalada agressiva de Trump e transformar esta crise em trincheira para a retomada da luta popular em favor dos direitos e interesses do povo trabalhador brasileiro.”