Avoluma-se a crise – intensifica-se o belicismo
Foto: mppm-palestina.org
Jorge Cadima
ODIARIO.INFO
Apesar de vivermos na era nuclear e de as armas existentes poderem acabar com a vida humana no planeta, o discurso da militarização e da guerra generaliza-se e banaliza-se nas declarações dos dirigentes imperialistas. O dinheiro, que ‘não existe’ para as despesas sociais e salários, ‘existe’ repentinamente – e à farta – para a militarização e a guerra. Tal como ‘existe’ sempre para pagar os desmandos da banca e da grande finança. A marca de classe é gritante. Reflete-se na miséria que alastra lado a lado com a opulência obscena de uma pequena minoria. A dominação imperialista está cada vez mais marcada pelo caos, a decadência, a violência e a barbárie – onde sobressai o interminável horror do genocídio contra o povo mártir da Palestina, levado a cabo há quase dois anos pelo sionismo a serviço do imperialismo dos EUA.
Ao contrário do que afirma uma propaganda martelante, que retrata um mundo de ficção cada vez mais desligado da realidade, a crise não é produto de obscuros agentes do mal. A crise resulta da decadência das velhas potências imperialistas (EUA, Inglaterra, França e Alemanha em primeiro lugar) e da sua recusa em abdicar de uma hegemonia que já não corresponde à realidade econômica. Esse declínio é fruto das próprias leis de desenvolvimento capitalista e das opções de extrema financeirização e parasitismo rentista no último meio século (sob o nome de ‘neoliberalismo’ ou ‘globalização’). A crise manifesta-se hoje em todas as frentes: econômica, social, política, financeira, militar e cultural. O declínio é simbolizado por Trump, Biden, Ursula von der Leyen, Macron, Merz, Starmer, Rutte. Mas eles são apenas a consequência, não a causa.
Incapazes de barrar o ascenso pacífico de novas potências (em primeiro lugar a China), e vendo lhes escapar os tradicionais mecanismos de controle global, os setores mais reacionários das potências imperialistas apostam na via da violência e da guerra para impedir que a sua hegemonia se esvaia. Para isso promovem as forças políticas autoritárias e fascistas que acompanham sempre a viragem para o militarismo e a guerra. Já foi assim no século XX. O grande capital financeiro que manda no sistema imperialista, e que tem nos EUA, Inglaterra e UE os seus mecanismos estatais de dominação mundial, é incapaz de aceitar um mundo assentado em relações de igualdade. Apenas conhece a linguagem da dominação e da vassalagem. Prefere arrastar a humanidade para o desastre a aceitar a realidade do seu ocaso histórico.
A decadência da superpotência imperialista
A decadência dos Estados Unidos da América é já uma evidência indesmentível. A grande potência capitalista, outrora responsável por mais de metade da produção industrial mundial, está hoje reduzida a uma pálida sombra de si mesma. Há muitas décadas que embarcou num rumo de financeirização extrema. A sua base industrial e produtiva foi sendo substituída por atividades cada vez mais parasitárias e rentistas. À falta de investimentos, as suas infraestruturas foram se degradando. A produção foi transferida para outros países (deslocalização), onde salários mais baixos e mecanismos cambiais manipulados garantem super lucros. Em sua substituição, foi crescendo um gigantesco polvo de atividades financeiras cada vez mais especulativas e desligadas daquilo a que os próprios economistas do sistema chamam a economia real, tentando assim contrariar os efeitos da baixa tendencial da taxa de lucro (1). Este polvo tem assegurado ao longo de décadas a transferência de enormes riquezas criadas em todo o mundo para os EUA, financiando os seus cada vez maiores déficits comerciais e de pagamentos, resultantes da desindustrialização. Em 2024 o déficit na balança comercial de bens e serviços dos EUA ultrapassou 918 bilhões de dólares. Os números oficiais para os cinco primeiros meses deste ano apontam para um aumento de 50% (2).
Esta enorme placa giratória tem se baseado em três fatores interligados: o controle pelos EUA do sistema financeiro internacional (incluindo as instituições teoricamente multilaterais como o FMI e o Banco Mundial); o papel do dólar como moeda de reserva internacional; e o gigantesco aparato militar e de subversão (CIA e congêneres), que tem assegurado a supremacia hegemônica dos EUA e sobre a qual assentam os dois primeiros fatores.
Mas este mecanismo entrou em crise, apesar disso ter sido momentaneamente camuflado e mitigado nos anos 1990s, com o desaparecimento da URSS e a vaga contrarrevolucionária que o acompanhou no plano mundial. Ao mesmo tempo que essa viragem reforçou o poderio mundial dos EUA, alimentou os piores aspectos do sistema imperialista: agressividade, belicismo, parasitismo, rentismo, hiperfinanceirização, açambarcamento da riqueza, empobrecimento de vastas massas (mesmo nos centros imperialistas), um endividamento estatal descontrolado e insustentável. Num aparente paradoxo, o sistema imperialista centrado nos EUA, no momento do seu maior poderio internacional – em que era capaz de impor com poucos entraves a sua ‘lei’ a países, povos e trabalhadores, colocados na defensiva pela vaga contrarrevolucionária dos anos 80 e 90 – entrou numa fase de intenso declínio, quer no plano interno, quer no plano internacional. É esse declínio que está no cerne da crise atual.
Os episódios de crise, que até ao início do milênio atingiam sobretudo os países da chamada periferia (América Latina, os ‘tigres asiáticos’, uma Rússia sangrada pelas ‘terapias de choque’ da restauração do capitalismo), explodiram em cheio no centro imperialista em 2007-8 e na crise do Euro, revelando as fragilidades e vulnerabilidades da engrenagem criada pelo grande capital financeiro. Tornou-se evidente que os tão badalados ‘mercados’ não só não são ‘eficientes’, como dependem inteiramente da ‘mão salvadora’ do Estado para evitar o seu afundamento. São meros mecanismos de apropriação da riqueza – criada pelo trabalho da humanidade – nas mãos duma parasitária e destrutiva minoria que embolsa lucros e rendas, deixando os prejuízos para serem suportados pelos trabalhadores e os povos.
O diagnóstico da decadência dos EUA é partilhado por toda a classe dominante da superpotência imperialista (3): um país corroído pela desindustrialização, crescentemente dependente do exterior, mesmo em áreas de ponta e até em aspectos críticos no plano militar; insustentavelmente endividado; e com largas camadas da população cada vez mais empobrecidas e profundamente descontentes. Mas a dificuldade em dar a volta à situação tem dividido de forma profunda a classe dirigente dos EUA. Os seus contrastes internos atingiram uma intensidade sem precedentes desde há muitas décadas.
O trumpismo
O fenômeno do trumpismo reflete o descontentamento generalizado no seio do povo estadunidense. Eficaz na venda de promessas, Trump soube congregar o profundo mal-estar social e a revolta com as permanentes guerras que – além de destruírem países e regiões inteiras do planeta – contribuem para o endividamento e empobrecimento do povo nos EUA. Foi vendida a ilusão de ‘tornar de novo grande a América’ (MAGA). O seu estilo de simultaneamente afirmar uma coisa e o seu contrário ajudou a camuflar a verdadeira essência do seu projeto. Mas seis meses de presidência permitem já constatar duas coisas. A primeira, é que a natureza profundamente reacionária e de classe da sua política está se afirmando de forma óbvia. As promessas sociais são traídas. E em vez do prometido fim das guerras dos EUA no mundo, elas intensificam-se (como ficou patente nos ataques ao Irã e Iêmen e no apoio incondicional a Israel). A segunda, é que o estilo de permanente confrontação e ataques, quer contra adversários, quer contra vassalos, torna altamente provável que a Presidência Trump, longe de resolver a crise da hegemonia planetária dos EUA, acabe por agravá-la.
A tão falada ‘política tarifária’ do trumpismo assenta num objetivo que não é irracional. Levantar barreiras alfandegárias encarece as importações e poderia fomentar a produção interna e trazer receitas para o Estado. Trump proclama abertamente esses objetivos. Na mira do regresso da produção ao solo dos Estados Unidos estão, não apenas grandes empresas estadunidenses com fábricas sediadas noutros países, mas também empresas estrangeiras que queiram vender no mercado dos EUA. As taxas aduaneiras são acompanhadas de ações de força, muitas já vindas do tempo de Biden, como é o caso das restrições às exportações de chips avançados para a China ou o ataque aos gasodutos NordStream. Este último visou também tornar os custos de produção na Europa inviáveis, incentivando a deslocalização e a subordinação aos EUA, objetivo que está sendo conseguido com o colaboracionismo do governo alemão e da UE. Os EUA nutrem-se também dos seus ‘aliados’ vassalos.
Multiplicam-se anúncios de grandes investimentos nos EUA, quer de empresas estadunidenses (como a Apple), quer de empresas estrangeiras (TSMC, Samsung, Mercedes-Benz). Mas a realidade está se revelando difícil. Por um lado, o estilo errático e confrontacional de Trump gera enormes incertezas que dificultam planos de investimentos e criam ressentimentos. Por outro lado, a devastação do tecido industrial e a baixa de qualidade do sistema educativo nos EUA atingiu tais proporções que muitas das novas empresas tecnológicas estão tendo dificuldades, quer em se tornar comercialmente viáveis, quer em encontrar mão de obra especializada. A maior fabricante mundial de chips, a empresa taiwanesa TSMC, está desde 2020 investindo nos EUA. Os investimentos efetuados e planejados sobem a 165 bilhões de dólares, tendo já recebido subsídios do governo dos EUA de mais de 6,6 bilhões de dólares (4). Mas cerca de metade da sua mão de obra teve de ser trazida de Taiwan (5). E em 2024 totalizou prejuízos de 441 milhões de dólares (6). A sul-coreana Samsung adiou o início da laboração da sua nova fábrica no Texas – um investimento de 37 bilhões de dólares para o qual recebeu 4,7 bilhões em subsídios do governo dos EUA – devido à falta de clientes (isto é, de empresas produtoras de equipamentos que necessitassem dos seus chips) (7). O patrão da Nvidia queixa-se publicamente do fracasso da política de restrições às exportações de chips avançados para a China, que resultou numa perda de cotas de mercado no gigante asiático, que vai se tornando autossuficiente na produção desses chips avançados (bbc.com, 21.5.25). As retaliações da China (restringindo a exportação de terras raras e outros materiais) estão afetando a própria indústria militar dos EUA.
Um tecido industrial não se cria por decreto, sem uma intervenção estatal planificada que, por razões diversas, o poder nos EUA parece incapaz de assegurar. E permanecem de pé as causas de fundo que levaram à financeirização da economia. É difícil convencer o grande capital financeiro a investir na economia produtiva quando os seus lucros rentistas são maiores numa economia de especulação.
O que parece conhecer uma expansão sem limites é a grande finança. Num número especial dedicado aos EUA, a revista The Economist (31.5.25) afirma que «a finança americana transformou-se na última década», com um crescimento explosivo de instituições financeiras (designadas hedge funds, private-equity firms e trading firms), na qual se destacam a Apollo, BlackRock, Blackstone, Citadel, Jane Street, KKR e Millenium. Estão crescendo graças às mesmas atividades especulativas que levaram ao crash de 2007. O Economist confessa que são firmas «assustadoramente opacas», que fogem às (escassas) limitações impostas à banca após 2008. Adverte já que na próxima crise financeira (que «haverá sempre»), iremos «despertar para o fato de estarmos lidando com um sistema financeiro que não conhecemos». E antecipa tranquilamente: «Novos esquemas de empréstimos de emergência serão necessários. Salvar os bancos da última vez foi politicamente tóxico. Salvar investidores bilionários será uma tarefa incomparavelmente mais difícil. E no entanto, se se deixarem falir as maiores destas gigantescas firmas, isso poderá conduzir a uma crise de crédito global». Traduzido por miúdos: os multimilionários andam outra vez lucrando enormemente, mas quando estourarem os seus novos para-bancos os povos serão, como de costume, chamados a pagar a fatura. É o capitalismo parasitário em todo o seu esplendor.
O mesmo critério de classe presidiu à Grande Bela Lei (Big Beautiful Bill, BBB) aprovada pelo parlamento dos EUA e assinada por Trump no dia 4 de julho. Longe de impedir o endividamento, como prometido por Trump, o seu BBB vai «acrescentar 3,4 biliões de dólares aos deficits orçamentais nos próximos dez anos e deixar milhões sem seguros de saúde» (cbsnews.com, 4.7.25). Os mais ricos vão ver prolongados os cortes aos seus impostos. E o Congresso atribuiu 150 bilhões de dólares adicionais à despesa militar que, junto com o já orçamentado para este ano, faz o orçamento militar dos EUA aproximar-se de 1 bilião de dólares (thehill.com, 3.7.25). Mas serão cortadas as verbas dos programas especiais de assistência na saúde (Medicaid) em 793 bilhões de dólares. E será cortado em 286 bilhões o programa SNAP, de apoios alimentares aos mais necessitados, que beneficia 41,7 milhões de pessoas, ou seja, 12,3% da população dos EUA (wvmetronews.com, 3.7.25).
A dívida pública dos EUA, que já excede 37 bilhões de dólares (123% do PIB), vai continuar a crescer descontroladamente. Mesmo com o reforço da despesa militar, os juros da dívida continuam a exceder o gigantesco orçamento militar da superpotência do capitalismo. Embora tenham consciência da insustentabilidade do sistema, o grande capital financeiro e os mais ricos revelam-se incapazes de refrear a sua insaciável gula. Mas a dívida é impagável. Como a anular sem comprometer o poderio mundial dos EUA é seguramente uma preocupação maior dos centros dirigentes da grande finança.
A guerra como ‘solução’
É neste contexto que ganham expressão os setores do grande capital financeiro que apostam numa solução de força para ultrapassar a crise e preservar a sua dominação. Trump ameaçou retirar os EUA do pântano ucraniano. Mas as declarações do Ministro da Defesa Hegseth na sua primeira viagem à Europa (fevereiro 2025) deixaram logo evidente que o objetivo era efetuar uma «divisão de tarefas»: pôr a Europa a ocupar-se do conflito com a Rússia, para permitir aos EUA concentrar-se na preparação da guerra à China. Daí as exigências que os membros da OTAN subissem as suas despesas militares para 5% do PIB. O espectáculo de subserviência e bajulação que rodeou a Cúpula da OTAN de junho 2025 foi degradante. As exigências de Trump foram acolhidas, ao som do lamber de botas. Uma subserviência repetida em julho, com a claudicação da UE face às exigências econômicas de Trump. Prometem bilhões sem fim, desde que os EUA não se desinteressem pelo pântano ucraniano. Dirigentes da Alemanha, França e Inglaterra clamam abertamente por uma guerra contra a Rússia.
Também neste campo se manifestam clivagens no seio do campo imperialista. Enquanto alguns autores apontam como alvo prioritário a Rússia, outros visam a China e ainda outros o Irã. O resultado é o aumento do conflito nas três frentes. O genocídio em Gaza – agora também pela via da fome como arma de guerra – prossegue impune. O que não se vislumbra são setores das classes dominantes imperialistas que defendam soluções pacíficas. Têm consciência do seu afundamento e receiam que a paz aprofunde esse declínio. Encaram como um perigo mortal qualquer mecanismo de cooperação multilateral que não esteja sob o seu domínio. É o caso dos BRICS, cuja principal característica é a heterogeneidade – no plano econômico, social, político e cultural. Não é um acaso que os países definidos como inimigos pelas doutrinas militares das potências imperialistas (China, Rússia, Irã) sejam motores dos BRICS. Não é um acaso que a fúria de Trump se dirija contra o Brasil, Índia e África do Sul. Não é um acaso que o terrorismo (provavelmente com a mão dos serviços secretos ingleses e israelenses) tenha estado na origem da recente guerra entre Índia e Paquistão. Trump assume publicamente a guerra aos BRICS.
A corrida aos armamentos e à guerra está inevitavelmente associada ao endividamento massivo dos Estados. Mas a dívida é a fonte dos lucros do grande capital financeiro. O rumo de desindustrialização para o qual a Alemanha está hoje sendo conduzida (salvo na indústria militar) reproduz o caminho seguido há meio século por EUA e Inglaterra. As consequências serão semelhantes. Mas o desastre social será um maná para o grande capital financeiro transnacional que o Primeiro Ministro alemão Merz representa.
Barrar o caminho à guerra
O sistema revela-se incapaz de se reformar. Tal como o Titanic, não consegue mudar de rumo embora o iceberg esteja à vista. O belicismo vem sempre acompanhado do autoritarismo e de forças extremistas e fascistas, que são promovidas pelo poder econômico e político. Têm por objetivo esmagar a resistência dos trabalhadores, das trabalhadoras e dos povos. Não se podem excluir grandes provocações que sirvam de pretexto a escaladas de guerra.
A barreira que pode impedir uma catástrofe reside na luta da classe trabalhadora e povos. Reside na criação de uma ampla frente anti-imperialista que – congregando todos quantos recusem a vassalagem ao grande capital financeiro – possa derrotar o partido da guerra e impedir o caminho do desastre.
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Notas
(1) A lei da baixa tendencial da taxa de lucro é uma das leis fundamentais do capitalismo, descoberta por Marx.
(2) www.bea.gov/news/2025/us-international-trade-goods-and-services-may-2025
(3) Veja-se a intervenção de Jake Sullivan, Conselheiro de Segurança Nacional de Biden, na Brookings Institution, em 27.4.23.
(4) 9to5mac.com/2024/0408/3rd-arizona-chip-plant
(5) www.nytimes.com/2024/08/08/business/tsmc-phoenix-arizona-semiconductor.html
(6) finance.yahoo.com, 24.4.25
(7) www.techspot.com/news/108564-samsung-delays-37b-texas-chip-plant-no-customers.html