Reconhecer um Estado e impedir que ele exista?

CréditosLeszek Szymanski / EPA

Por José Goulão

ABRIL ABRIL

E, de repente, a esmagadora maioria dos países do chamado Ocidente Coletivo decidiram reconhecer o Estado da Palestina. Entre eles alguns dos mais fiéis aliados do regime sionista e cúmplices das suas atrocidades, como são a França, o Reino Unido, a Austrália, o Canadá e até, apesar do seu ínfimo peso específico, o governo da República Portuguesa. Sabemos que a coerência não é o forte da clique de Montenegro: o reconhecimento é declarado poucas semanas depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, ter ido dar a bênção aos crimes do regime de Israel, precisamente numa das fases mais intensas da devastação humana e física da Faixa de Gaza.

Qualquer leitor se interrogará, com toda a naturalidade, sobre o que levará agora tantos e tão relevantes países depositários da «nossa civilização» a adotarem uma atitude que poderiam, e deveriam, ter assumido há anos. Terá sido a exposição flagrante e dramática do genocídio do povo palestino, velho de décadas, que flagela a Faixa de Gaza e que a hipocrisia das palavras sonantes e das mais belas intenções já não consegue esconder? Talvez um pouco, embora não devamos dar demasiado valor a este rebate porque vergonha é coisa que não abunda nos governos ocidentais.

Outra razão, esta com um significado político e estratégico bem mais importante, é a certeza de todos os declarantes de que a sua decisão, além de ser proferida com abundância de meias palavras, não tem qualquer efeito prático sobre o real reconhecimento dos direitos dos palestinos e sobre a conduta assassina do Estado de Israel. Nos mesmos dias em que se sucederam as declarações de reconhecimento, o primeiro-ministro sionista, Benjamin Netanyahu, garantiu, com toda a convicção, que jamais existirá um Estado Palestino. Um desafio às atitudes dos países ocidentais e que estes receberam com o mais devoto silêncio.

E agora?
A situação mais relevante, e também a que levanta o maior número de dúvidas sobre a genuinidade das intenções dos governos ocidentais em relação ao resgate dos direitos do povo palestino, assenta numa simples pergunta: e agora?

Sim, o que estas declarações de reconhecimento do Estado da Palestina poderão alterar na situação atual, controlada pelos impulsos fascistas do governo de Israel e da administração dos Estados Unidos, desta feita sob a batuta de Trump – como poderia estar, com os mesmos efeitos, sob as ordens dos auriculares de Biden?

À primeira vista, não alterarão nada. A arbitrariedade colonial e expansionista prossegue a todo o vapor em Jerusalém Leste e de Norte a Sul da Cisjordânia, enquanto a terraplanagem humana e física de Gaza continua sem quaisquer barreiras, a não ser os focos de guerrilha do Hamas.

Os governos ocidentais reconheceram um Estado abstrato e sem quaisquer poderes efetivos sobre o que deveria ser o seu território, a desaparecer todos os dias perante os avanços genocidas das hordas de colonos importadas de todo o planeta. Os governos ocidentais fazem alguma coisa de concreto para obrigar Israel a parar com a colonização? Deixam de enviar armas para Israel? Contemplam a hipótese de decretar sanções capazes de asfixiar um Estado gerido por uma gangue criminosa e que não tem condições para viver por si próprio?

Não consta que algum dos reconhecedores ocidentais esteja disposto a dar estes passos, essenciais para que eventuais alterações qualitativas da relação de forças em toda a Palestina venham a proporcionar negociações capazes de definir os caminhos para instaurar e aplicar o Direito Internacional na região. Isso implicaria que, pelo menos nesse caso, os dirigentes ocidentais pusessem entre parênteses o seu acatamento burocrático da «ordem internacional baseada em regras» definida em Washington. A verdade é que nenhum governo parece disposto a correr esse risco, o que, na prática e nestas condições, revela que reconhecer ou não reconhecer o Estado da Palestina vai dar no mesmo, isto é, mais do mesmo.

Reconhecer sim, mas…
Os governos ocidentais tiveram o cuidado (que abre a porta para darem o dito por não dito) de não reconhecer incondicionalmente o Estado da Palestina, continuando, deste modo, a manter no gelo a aplicação estrita dos princípios estabelecidos pelo Direito Internacional. Portadores de uma autoridade e de um poder outorgados por cinco séculos de violência colonial, e que lhes permitiram inventar uma entidade como o Estado de Israel, os governos ocidentais juntaram à decisão uma série de condicionalismos. Levados à letra, estes traduzem um reconhecimento sem reconhecer porque limitam, de fato, as capacidades de decisão do povo palestino sobre os assuntos que lhe dizem respeito e sobre os quais só a ele compete deliberar.

No âmbito de uma manobra que transfigura grande parte do que há de positivo no reconhecimento, os governos ocidentais tentam dar uma nova vida à moribunda Autoridade Palestina de Mahmoud Abbas, circunscrita a Ramallah, responsabilizando-a por poderes que ela não conseguirá desempenhar. Exigem também a sua rendição absoluta perante Israel – exigência escusada na situação que se arrasta ao longo de todo este século; e atribuem a responsabilidade única pelo terrorismo na Palestina ao Hamas, enquanto ignoram o terror israelense – disfarçado de «segurança» e «direito à existência». Como sempre, dois pesos e duas medidas que, à partida, viciam as próprias declarações de reconhecimento.

A condição que, porém, demonstra como são hipócritas e, para já, inúteis as declarações de reconhecimento, relaciona-se com a exigência de desarmamento não apenas do Hamas mas de todas as estruturas da Resistência Palestina. Tais exigências deixam todo o povo palestino ainda mais desamparado e à mercê do livre arbítrio criminoso do regime sionista, que pode, deste modo, prosseguir o seu objetivo genocida, livre de quaisquer estorvos, além de continuar isento de prestar contas perante as instâncias internacionais. Nas consequências práticas das medidas impostas pelos governos ocidentais em troca do reconhecimento do Estado da Palestina, encontraria o Estado sionista o melhor de todos os mundos e a concretização plena de todos os seus objetivos.

A sombra do colaboracionismo

Os mais recentes desenvolvimentos do processo de reconhecimento ajudam a dissipar algumas incertezas sobre interesses que se cruzam por detrás da decisão, e que não são favoráveis ao povo palestino.

Percebeu-se desde o início que o reconhecimento da independência da Palestina por governos de países ocidentais não era, repete-se, incondicional. A generalidade dos discursos alusivos foram claros numa sobrevalorização da Autoridade Palestina, na prática inativa e, mais grave do que isso, condicionada por inteiro às exigências de Israel. A gestão «partilhada» de grande parte da Cisjordânia entre o governo de Ramallah e as forças de ocupação sionista representa, de fato, que o primeiro foi colocado ao serviço dos interesses das segundas. Uma circunstância confirmada, com frequência, pela atuação das forças policiais palestinas em ações repressivas contra a própria população palestina.

Uma situação deste tipo agrada aos governos ocidentais porque significa uma maleabilidade colaboracionista das autoridades de «autonomia» que contraria os legítimos interesses do povo palestiniano, de fato nunca reconhecidos pelos Estados ocidentais.

Ao mesmo tempo, o Ocidente atribui a representatividade única dos palestinos à decrépita Autoridade Palestina e ao seu dirigente Mahmoud Abbas, na realidade eternizado no poder, apesar de completamente manietado por Israel e pelos Estados Unidos. Recorda-se, por ser factual, que o seu acesso à presidência se consumou através de um golpe brando organizado em 1994 pelos Estados Unidos, Israel e potências ocidentais em consequência do qual o dirigente histórico da Resistência, Yasser Arafat, foi afastado das principais posições de poder (para as quais fora eleito) e assassinado poucos meses depois.

Recorda-se ainda que Mahmoud Abbas, muito recentemente qualificado de «pragmático» por um órgão pró-israelense como o semanário Expresso, foi recebido na Casa Branca, lugar de onde Arafat fora banido, logo a seguir a tomar posse como presidente da chamada «Autonomia», ainda nesse ano de 1994.

Estas circunstâncias ajudam a ler melhor os condicionalismos ocidentais que acompanharam o reconhecimento da independência. E conduzem à conclusão, elementar, de que não haverá entidade representativa e atualizada da vontade do povo palestiniano sem a realização de eleições gerais democráticas livres, abertas e sob controle de instâncias internacionais tuteladas pela ONU. Um processo que não poderá ter a intervenção, por definição viciada e interesseira, de Israel e dos Estados Unidos da América.

Outra exigência comum aos governos ocidentais é o da «renúncia» da Resistência (assimilada errada e malevolamente ao «Hamas») ao terrorismo, isto é, à luta armada, poupando sempre, repete-se, o terrorismo israelita. Essa «renúncia» terá de ser acompanhada pelo desarmamento da Resistência, o que significa a entrega total do povo palestino ao poder discricionário e genocida de Israel. Nesta perspectiva, o reconhecimento da Palestina transforma-se num presente envenenado.

O discurso de Abbas na Assembleia-Geral da ONU, proferido via internet porque, desta feita, a Administração Trump recusou ilegalmente o visto ao presidente palestino para se deslocar a Nova Iorque, confirmou a existência de um perigoso colaboracionismo com os interesses coloniais israelenses e ocidentais.

Mahmoud Abbas, enquanto presidente palestino, prometeu que «o Hamas nunca será governo». Ora, como poderá o mais destacado dirigente palestino, cujo partido foi derrotado nas últimas eleições gerais realizadas nos territórios ocupados, prometer que a força política mais votada (segundo a última aferição, realizada há mais de 15 anos) não poderá governar o Estado? Manipulando os resultados eleitorais? Adotando um regime de partido único ou de ditadura pessoal? Impedindo que um partido com significativo apoio popular, o Hamas ou qualquer outro, seja parte legítima e necessária à existência de um governo de maioria?

Lembremos que Abbas e os seus aliados ocidentais e árabes impediram o Hamas de governar depois de obter a maioria absoluta em eleições livres; e que, apesar da multiplicação de negociações e pretensos projetos de acordo, sabotaram sempre a concretização de «governos de unidade nacional» que permitissem colocar Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Leste sob o mesmo «governo autônomo». «Um dos nossos objetivos estratégicos é manter a separação entre Gaza e a Cisjordânia», confessou Netanyahu ao grupo parlamentar do seu partido Likud. Nenhuma destas vias implícitas no teor das declarações de reconhecimento corresponde aos «valores democráticos» proclamados pelo mundo ocidental, ao que parece disposto a impor, através da sua mais recente decisão, uma «solução» autoritária e não-democrática centralizada em Abbas.

No seu discurso, o presidente palestino afirmou que não pretende que a Palestina seja «um Estado armado». O que significará esta ideia, incompatível com a existência de um Estado pleno como o estabelecido no Direito Internacional? A defesa e segurança da Palestina seriam entregues a Israel? O povo da Palestina deixaria de ter quem o defendesse, fosse a Resistência armada ou o aparelho de Estado?

Nos seus tempos, pouco antes de ser assassinado pelo sionismo, em 1995, o primeiro-ministro israelense, Isaac Rabin, admitiu que o estatuto máximo que admitiria a uma entidade palestina, no final do «processo de paz», seria o de «menos que um Estado». Mahmoud Abbas e os dirigentes ocidentais que o manipulam recuperaram esta ideia? A Palestina «menos que um Estado» será o Estado da Palestina futuramente entendido como tal? Não haverá melhor via, então já considerada como «solução final» do problema, para a continuação do genocídio e a criação do Grande Israel – em toda a Palestina, como primeiro passo.

A questão de fundo, porém, continua a ser: o que virá depois do reconhecimento da independência, uma vez que Israel ocupa quase todo o território onde esse Estado seria criado? O que farão os países ocidentais para darem corpo à sua decisão? Recorda-se que o Direito Internacional determina a criação de um Estado Palestino «independente e viável». Em termos prosaicos, um Estado como os outros. Ora, não é isso que está a ser congeminado, com a colaboração da incapaz Autoridade Palestina. A vertiginosa política israelense de criação de colonatos vai «comendo», dia-a-dia, o território indispensável à criação de um Estado viável.

Numa perspectiva lúcida, o chefe de Estado de Portugal admitiu que qualquer dia não haverá território para instaurar um Estado. Uma realidade que há muitos anos comecei a denunciar, porque se mete pelos olhos dentro e da qual Israel não faz qualquer segredo. Apesar de reconhecer essas circunstâncias, o mundo ocidental nada faz de concreto para travar a colonização e viabilizar o Estado que disse reconhecer.

Mais uma vez, o objetivo principal do Ocidente foi o de criar manobras de propaganda e dilatórias e, com elas, tentar neutralizar a solidariedade cada vez mais forte, ativa e genuína dos povos ocidentais com o povo da Palestina. Esta não pode esmorecer, tem mesmo de se reforçar, porque se nos fiarmos nas promessas e decisões dos nossos governos, a maior vítima continuará a ser o povo palestino. E não podemos permitir que isso aconteça.