Novo consignado: armadilha para as famílias

Imagem: Agência Brasil

Mais endividamento de trabalhadores e trabalhadoras

Edmilson Costa*

O governo anunciou recentemente, mediante Medida Provisória No. 1.292/25, assinada pelo presidente Lula e os ministros Fernando Haddad e Luiz Marinho, o novo crédito consignado para os trabalhadores com carteira assinada, urbanos, rurais e domésticos, mais os microempreendedores individuais, envolvendo um total de 47 milhões de trabalhadores, com o objetivo de facilitar o acesso ao crédito a esse grande contingente com algum tipo de vínculo formal. Essa modalidade de crédito já era oferecida anteriormente para os aposentados e servidores públicos. Segundo as autoridades do Ministério do Trabalho e Emprego, a medida vai proporcionar ganhos expressivos para esses trabalhadores, que passarão a ter acesso a um crédito com juros mais baixos e menores custos administrativo, enquanto o ministro Haddad afirmou que com o novo consignado os celetistas poderão ter empréstimo a uma taxa de juros “mais civilizada”.

Nos próximos quatro meses, o novo consignado vai priorizar operações para quitar empréstimos não consignados, uma vez que a medida permite trocar dívida com juros maiores pelo novo sistema. Mais de 80 bancos e instituições financeiras poderão participar do programa e ter acesso ao perfil dos trabalhadores, através do eSocial, um sistema do governo federal que permite que os empregadores enviem informações trabalhistas, previdenciárias e fiscais sobre seus trabalhadores de forma unificada. De acordo com a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), há uma expectativa de contratação de um volume de crédito de R$ 120 bilhões neste ano, processo que será facilitado pelas garantias que estão sendo oferecidas às instituições financeiras.

Essa modalidade de crédito consignado do setor privado poderá ser feita através de plataformas digitais, o que, segundo a medida provisória, contribui para a desburocratização das operações e garante maior agilidade, transparência e proteção aos beneficiários.1 Após o trabalhador autorizar a utilização dos dados pelos bancos, receberá as propostas em até 24 horas e poderá fazer a contratação do empréstimo pelo canal eletrônico das instituições financeiras. Nos primeiros meses, a contratação do empréstimo somente poderá ser feita por meio da carteira de trabalho digital, mas a partir de 25 de abril os empréstimos poderão ser feitos de forma direta nos aplicativos dos bancos. Ressalte-se que, ao fazer as propostas de crédito, os bancos terão acesso a um conjunto de informações do trabalhador, tais como nome, CPF, tempo de empresa, margem do salário disponível para a consignação, além de verbas rescisórias em caso de demissão.

A medida provisória fixa o comprometimento dos empréstimos em até 35% do salário do trabalhador, incluindo comissões, abonos e outros benefícios, além do fato de que o trabalhador pode utilizar até 10% do saldo do FGTS como garantia do contrato ou ainda 100% da multa rescisória em caso de demissão sem justa causa, que corresponde a 40% do valor do saldo. O desconto das parcelas de pagamento do empréstimo será efetuado diretamente na folha de pagamento do trabalhador. Se o valor for insuficiente no caso de demissão, o pagamento será retomado quando o celetista conseguir outro emprego, com as devidas correções. Entre as características preocupantes dessa nova modalidade de empréstimos está o fato de que, enquanto os empréstimos para os aposentados e servidores públicos possuem um teto para a taxa de juros, nessa nova modalidade o governo optou por não limitar as taxas, o que deixa o sistema financeiro livre para fixá-la.

Consignado e endividamento das famílias

Feitos esses esclarecimentos institucionais e burocráticos, vamos ao que interessa. Para compreendermos o significado do crédito consignado é importante verificarmos que a popularidade desta modalidade de financiamento é resultado do enorme endividamento das famílias brasileiras. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 76,1% das famílias brasileiras, em janeiro de 2025, estavam endividadas nas diversas modalidades de crédito, como cheque especial, carnê de loja, cartão de crédito, empréstimo pessoal, crédito consignado, prestação de carro ou financiamento de casa. Desse total, 29,1% estavam com dívidas em atraso e 12,7% já não teriam nenhuma condição de quitar o débito (Tabela 1). Além disso, a mesma pesquisa da CNC indica que 20,8% dos consumidores têm mais da metade dos rendimentos comprometidos com dívidas.2

Tabela 1. Endividamento das famílias jan. 2024-jan. 2025 (%)

Total endividados Dívidas em atraso Sem condição de pagar
Jan. 2024

78,1

28,3

12,0

Dez. 2024

76,7

29,3

13,0

Jan. 2025

76,1

29,1

12,7

Fonte: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

A mesma pesquisa, ao analisar os dados desagregados por renda, pôde constatar que as famílias que ganham até três salários mínimos são as mais endividadas, atingindo 79,5% entre os endividados. Aquelas que ganham de três a cinco salários mínimos têm também um endividamento bastante alto, o que acontece também com o segmento que percebe entre cinco e dez salários mínimos. Já as famílias que ganham mais de 10 salários mínimos são as menos endividadas, segundo a pesquisa CNC. Em outras palavras, pelo que podemos constar na Tabela 2, quanto menor a renda das famílias, maior seu envolvimento com as dívidas. Em contrapartida, quanto maior o rendimento, menor a sua participação no conjunto dos endividados. De qualquer forma, o que se pode verificar do conjunto de dados analisados é que há um enorme endividamento das famílias brasileiras em todos os segmentos de renda, o que explica o grande interesse pelo crédito consignado. Outro estudo, realizado pela Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) complementa a situação de endividamento das famílias, especificamente com dívidas bancárias. Segundo essa pesquisa, as dívidas especificamente bancárias atingem R$ 82,2 bilhões.3

Tabela 2. Famílias endividadas por faixa de renda – Jan. 2024/Jan. 2025 (%)

Até 3 SM

3-5 SM

5-10 SM

+ de 10 SM
Jan. 2024

79,2

80,2

76,4

71,6

Dez. 2024

80,5

78,2

72,4

66,1

Jan. 2025

79,5

78,5

72,5

65,3

Fonte: Confederação Nacional do Comércio de Bens, serviços e turismo

Por que relacionar a questão do endividamento das famílias com o crédito consignado? Porque o endividamento não é apenas um fenômeno conjuntural, mas uma consequência de décadas de empregos precários, compressão salarial, informalidade e deterioração das condições de trabalho. Ao contrário do que procuram insinuar os apologistas neoliberais, o endividamento das famílias não ocorre por excesso de consumo ou falta de educação financeira, mas pelas difíceis condições de vida dos trabalhadores, das trabalhadoras e aposentados/as. Mesmo com a recuperação do mercado de trabalho em termos quantitativos, a qualidade do emprego e das remunerações deixam muito a desejar, resultando em empregos precários e baixa remuneração, como MEIs, trabalhadores por aplicativos, subemprego. Nessa conjuntura o crédito consignado passou a funcionar como uma espécie de complemento ilusório da renda, que vai no futuro aprisionar as famílias.

Segundo pesquisa realizada por Nelson Marconi sobre evolução do emprego e da renda entre 2012 e 2024 para a FGV, enquanto a economia não for alavancada pelos setores dinâmicos, o emprego continuará concentrado em atividades de baixa remuneração. “O grande responsável pela evolução do número de ocupados foi o grupo de trabalhadores por conta própria, que respondem por 43% da variação observada no período. E entre eles o setor que mais cresceu foi o de transportes, confirmando a propalada uberização do mercado de trabalho.4 Marconi constata ainda que essa precarização da força de trabalho brasileira também foi registrada entre atividades científicas e técnicas. “Portanto, o processo de pejotização se estendeu a vários setores de serviços com características distintas”.5

O ponto de partida de qualquer análise desse processo de endividamento deve ser a estagnação da renda, que leva à financeirização da vida cotidiana. E o Estado, que deveria garantir a proteção social mediante políticas públicas universais, na prática coloca a população com dificuldade de renda nos braços do mercado financeiro, ao anunciar o crédito como solução individual para problemas que são coletivos. Em termos práticos, o sistema financeiro passa a ter um lucro praticamente sem risco em consequência da vulnerabilidade da população mais pobre. Trata-se daquilo que os economistas denominam de modelo de negócio baseado na inadimplência, onde os bancos precificam os riscos de eventuais inadimplências, que no caso do consignado são praticamente nulos, mediante seguros ou refinanciamentos.

Ainda no que se refere ao endividamento das famílias, há alguns fatores subjetivos, uma vez que a publicidade diária incentiva o consumo generalizado, criando um conjunto de necessidades que atingem todos os setores da população. Dessa forma, o consumo se transforma numa forma de identidade e sobrevivência mesmo para quem não tem renda para comprar os produtos que diariamente são anunciados nos meios de comunicação. Ora, com o crédito facilitado e a ausência de políticas públicas favoráveis aos trabalhadores, além dos baixos salários, as famílias são levadas a buscar soluções individuais para suas necessidades imediatas. Nessas circunstâncias, o endividamento familiar torna-se um espelho das desigualdades da sociedade brasileira.

Consignado, uma bomba de efeito retardado

Ao contrário do que o governo e os bancos afirmam, o crédito consignado, mesmo com taxas menores que as outras modalidades de crédito, não significa inclusão financeira, democratização do crédito ou coisa que o valha. Trata-se de uma armadilha que, além de capturar a renda do trabalho pelo sistema financeiro, representa uma bomba de feito retardado que vai, no médio e longo prazos, reduzir o consumo das famílias porque crédito é dívida e tem que ser paga, especialmente porque as parcelas do financiamento são descontadas automaticamente na folha de pagamento dos trabalhadores, servidores, aposentados e pensionistas, comprometendo mais de um terço dos seus rendimentos mensais. Dessa forma, uma parcela significativa dos salários e aposentadorias, ao ser descontada, vai comprometer o consumo e a qualidade de vida da população.

Como na medida provisória do crédito consignado para os empregados formais cada trabalhador pode financiar até 35% de sua renda e como existe o desconto em folha de pagamento e a garantia de que se o trabalhador for demitido os bancos poderão abocanhar grande parcela das verbas rescisórias, esse é um modelo de financiamento muito atrativo para o sistema financeiro, pois terão uma lucratividade sem risco. Por isso os bancos ficam ligando insistentemente para as pessoas contratarem esse tipo de crédito. Com essa medida o Estado age como intermediário e garantidor da rentabilidade do sistema financeiro, ao manter o lucro dos bancos e transferir para os trabalhadores a responsabilidade por sua segurança futura em caso de demissão ou eventuais doenças. Além disso, distorce completamente a função original do FGTS, que foi criado como uma reserva para o trabalhador em caso de desligamento do trabalho, e agora pode ser apropriado pelos bancos.

Do ponto de vista macroeconômico, o crédito consignado é uma grande armadilha para a demanda agregada da economia. Num primeiro momento, vai estimular o consumo, criando uma ilusão de prosperidade momentânea, mas no médio e longo prazos o comprometimento da renda dos trabalhadores, aposentados e pensionistas com o pagamento das parcelas da dívida vai reduzir o consumo das famílias, impactando na sua qualidade vida, no crescimento da economia e no emprego. Ou seja, consumo hoje, crise amanhã. Em vez de desenvolver políticas que garantam melhores empregos e aumento real dos salários, o governo opta por uma solução simplista e enganadora, uma dívida em forma de crédito, e com isso busca mascarar os problemas sócio-econômicos mais profundos da sociedade. Em outros termos, o consumo financiado pelo endividamento é insustentável e uma medida irracional, porque o crescimento econômico é resultado do investimento e do aumento da renda das famílias e não de seu endividamento.

Mais uma vez é preciso ressaltar: o crédito não aumenta a renda das pessoas, apenas antecipa o consumo futuro e aprisiona a população endividada num ciclo vicioso de eterna dependência financeira. Muitas vezes, em função das dificuldades financeiras, o trabalhador paga a dívida com novos empréstimos consignados, refinanciamentos ou portabilidades, tornando-se assim uma presa fácil de um sistema financeiro voraz, que lucra com a miséria e a escassez de renda dos trabalhadores e das trabalhadoras. Além disso, transforma o direito da classe trabalhadora a uma remuneração decente que lhe permita viver com dignidade em um processo no qual se naturaliza a ideia de que o trabalhador deve se endividar para obter sua sobrevivência. Nessa perspectiva, o Estado brasileiro maquia a desigualdade ao tratar a questão da má distribuição de renda como um problema a ser resolvido pelo crédito bancário e não por direitos, garantias e distribuição de renda.

Portanto, tentar resolver os problemas sociais da população com o crédito consignado, que atualmente envolve os/as trabalhadores/as formais, servidores/as públicos, aposentados/as e pensionistas, além de outros beneficiários sociais, é uma forma enganosa e perversa de lidar com os problemas sociais, especialmente por parte de um governo de um partido que se proclama dos trabalhadores. Como mais de dois terços da população brasileira está com crédito negativado, esse novo contingente do mercado formal que ingressará no crédito consignado vai engrossar ainda mais a fila dos endividados.

*Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e Secretário Geral do PCB

1 Medida provisória no. 1.292/25. De 12 de março de 2025.

2 CNC. Pesquisa de endividamento e inadimplência do Consumidor. Janeiro, 2025.

3 Febraban: Endividamento e inadimplência das famílias – contexto e evolução recente, 2022.

4 Marconi, N. Desvendando a evolução do emprego. Disponível em: https://peridodicos.fgv.br. Acesso em 31 de março de 2025.

5 Marconi, op. cit.