O acordo Mercosul/UE e a economia brasileira
Edmilson Costa*
Acordo Mercosul-UE aprofunda a reprimarização da economia brasileira
Os países do Mercosul e a União Europeia anunciaram no dia 6 de dezembro passado a conclusão das negociações do acordo de parcerias entre os dois blocos, encerrando assim um processo que já durava mais de duas décadas. Agora, os termos do acordo passarão por revisão jurídica, serão traduzidos nos respectivos idiomas dos países componentes dos dois blocos e, posteriormente, deverão ser aprovados pelos parlamentos dos diversos países. Segundo as autoridades governamentais brasileiras, o acordo, quando estiver em vigor, englobará um mercado de 718 milhões de pessoas com um Produto Interno Bruto de U$ 22 trilhões, ressaltando-se que a União Europeia é o segundo maior parceiro econômico do Brasil com uma corrente de comércio de U$ 92 bilhões, o que representa 16% do comércio exterior do país. O governo espera ainda que o acordo dinamize o fluxo de investimentos para o Brasil, uma vez que a União Europeia possui quase a metade do estoque de investimentos diretos aqui, e que os países do Mercosul ganhem maior inserção no mercado global.[1]
Em termos políticos, o acordo estabelece mecanismos de cooperação econômica em praticamente todas as áreas do comércio internacional, além de representar associação entre duas regiões que afirmam compartilhar valores como a democracia liberal e a promoção dos direitos humanos. Os dois blocos reconhecem os desafios ambientais do planeta e a necessidade de um desenvolvimento sustentável, com responsabilidades comuns, o que significa conciliar o comércio com as práticas ambientais efetivas, visando a construção de um processo de descarbonização, bem como o favorecimento de produtos sustentáveis para o comércio exterior. Ainda segundo as autoridades brasileiras, o Brasil conseguiu incluir no acordo compromissos que garantem a participação da sociedade civil, como sindicatos, organizações não governamentais, representantes de diversos segmentos sociais, além do setor privado nos processos de discussão e monitoramentos do acordo.
Esse tratado abrange centenas de páginas e vários anexos envolvendo praticamente todas as regras para a comercialização dos produtos e serviços dos dois blocos, bem como liberalização comercial, segurança jurídica dos investimentos, movimento de capitais, soluções de controvérsias e arbitragem, defesa da concorrência, compras governamentais, regras para subsídios, propriedade intelectual, práticas regulatórias, mecanismos de consulta, barreiras técnicas, fitossanitárias e alfandegárias, entre outros.[2] Neste artigo vamos debater apenas os aspectos centrais e políticos em relação ao que foi negociado entre os dois blocos, buscando identificar os problemas e os perigos que um acordo desse porte pode representar no longo prazo para a economia brasileira, além dos impactos que deverá ter em qualquer plano de desenvolvimento do país. Mesmo que o governo, em sua propaganda cor de rosa, anuncie que o acordo vai proporcionar novas oportunidades econômicas para toda a sociedade da região, a realidade é bem diferente da propaganda. Vejamos os principais aspectos do acordo e analisemos seus impactos na economia brasileira.
Tratado aprofunda o declínio industrial brasileiro
O tratado comercial foi estruturado sob a ótica da velha política neocolonial fantasiada de livre comércio e, tal qual os acordos tipicamente imperialistas, reflete a lógica das trocas assimétricas que beneficiam fundamentalmente as economias centrais e reforçam o velho dilema das trocas desiguais das economias periféricas, que é a inserção internacional baseada na exportação de produtos primários e na importação de produtos industrializados estrangeiros, o que vai ampliar as fragilidades estruturais da economia brasileira e limitar as possibilidades de um desenvolvimento autônomo do país. O acordo reforça ainda a vulnerabilidade da indústria nacional, já bastante afetada pelos 35 anos de devastação neoliberal, em função da abertura da economia, da quebra de vários setores industriais, dos custos elevados da produção e dos juros estratosféricos, além do fato de que, a partir de agora, terá que concorrer com os produtos da indústria da União Europeia, que possuem elevado grau de produtividade, tecnologia avançada, operam com juros baixos e grandes subsídios governamentais. Conforme podemos ver no gráfico 1, elaborado por Morceiro, a desindustrialização, que já estava avançada, vai se ampliar com esse acordo.[3]
O processo de declínio industrial deverá ocorrer porque o acordo, no capítulo “comércio de bens”, segundo o Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, contempla compromissos de liberalização tarifária em setores industriais e agrícolas. Por exemplo, nesse item o Mercosul se compromete a promover uma ampla liberalização tarifária de produtos da região submetidos à desgravação imediata ou ainda linear em prazos que variam de 4, 8, 10 e 15 anos, envolvendo cerca de 91% dos bens e 85% do valor das importações brasileiras provenientes da União Europeia. Em contrapartida, a oferta da União Europeia abrange a liberalização tarifária de uma cesta de produtos submetidos à desgravação imediata ou linear ao longo de prazos que também variam de 4, 8, 10 e 15 anos, envolvendo aproximadamente 95% dos bens e 92% do valor das importações europeias de produtos brasileiros.4 Como o Brasil exporta basicamente produtos primários e importa produtos industrializados, essa liberalização deverá ter um profundo impacto negativo na indústria brasileira.
Em outras palavras, para o Brasil, a abertura da economia às importações de bens industrializados europeus, aliada à restrição à transferência de tecnologia e a proteção aos direitos de propriedade intelectual das empresas europeias, com certeza vai sufocar setores estratégicos da indústria nacional e agravar o processo de reprimarização da economia, que vem avançando a passos largos com o apoio governamental à expansão do agronegócio. Entre os principais setores que serão prejudicados com o acordo pode-se citar a indústria automotiva, que mesmo com algumas ressalvas do acordo, não deverá suportar a concorrência europeia. Outro setor que também será prejudicado será a indústria de produtos químicos e farmacêuticos, setores em que as indústrias do velho continente são mais competitivas. Também será afetada a indústria de máquinas e equipamentos, possivelmente o setor com menor capacidade de concorrência com os produtos europeus. Ou seja, os acordos poderão acelerar a desindustrialização, redução da soberania, agravamento das desigualdades, elementos que poderão superar potenciais ganhos comerciais nos produtos primários.
Como se sabe, o setor industrial comanda a economia de um país porque funciona como uma locomotiva que espalha sua dinâmica virtuosa para todos os outros setores econômicos, tanto em termos de inovação quanto de produtividade e geração de empregos de qualidade. Portanto, não tem nenhum sentido se imaginar que uma economia como a brasileira seja comandada pelo agronegócio, que é um setor que não pode incorporar a inovação no mesmo ritmo que a indústria nem proporciona emprego na mesma proporção, não tem a mesma produtividade e está sujeito permanentemente às flutuações climáticas e à volatilidade dos preços internacionais de commodities. Toda a propaganda atual dos meios de comunicação buscando colocar o agronegócio na vanguarda da economia não passa de um grande equívoco que poderá levar o Brasil a regredir a um passado de grande atraso econômico. Ou como dizem Delgado e Leite: “No tratamento midiático e ideológico do sistema agrário hegemônico todo esse processo é vendido como uma espécie de sucesso incontroverso de uma entidade mágica – o agronegócio”.[5]
Vejamos os números divulgados pelo próprio governo, que confirmam que o País realmente exporta basicamente matérias primas e importa produtos industrializados: o Brasil exportou U$ 46,3 bilhões para a União Europeia em 2023, quase todos produtos agropecuários, minerais, além de outros com pouco valor agregado, com os seguintes percentuais em relação ao total das exportações: “alimentos para animais, 11,6%; minérios metálicos e sucata, 9,8%; café, chá, cacau e especiarias, 7,8%; sementes e frutos oleaginosos, 6,4%; ferro e aço, 4,6%; vegetais e frutas, 4,5%; celulose e resíduos de papel, 3,4%; carne e preparações de carne, 2,5%; e tabaco e suas manufaturas, 2,2%”.[6] No entanto, o que importamos da Europa são todos produtos industriais, no valor de U$ 45,4 bilhões: produtos farmacêuticos e medicina, 14,7%; máquinas em geral e equipamentos industriais, 9,9%; veículos rodoviários, 8,2%; petróleo e produtos petrolíferos, 6,8%; máquinas e equipamentos de geração de energia, 6,1%; produtos químicos orgânicos, 6,1%; máquinas e aparelhos especializados para determinadas indústrias, 5,3%; máquinas e aparelhos elétricos, 4,7%; materiais e produtos químicos, 3,6%; ferro e aço, 3,4%”.[7]
Por esses números se pode ver claramente o velho problema da deterioração dos termos de troca de Raul Prebisch ou das trocas desiguais de Samir Amin, entre outros, onde os países exportadores de matérias primas e minerais e importadores de bens industrializados estão sempre em desvantagem, em função da inovação e da elevada produtividade dos produtos manufaturados versus produtos agropecuários, o que tende a perpetuar a subordinação das economias em desenvolvimento em relação aos países centrais. O Acordo Mercosul-União Europeia reforça esse problema e tende a transformar o Brasil em exportador de commodities, que têm baixo valor agregado, e importador de bens manufaturados, onde as empresas europeias operam com alta produtividade, intensa inovação e fortes subsídios governamentais. Ao expor o setor industrial brasileiro à concorrência com produtos europeus mais avançados tecnologicamente e bastante protegidos, irá aprofundar a crise da indústria brasileira e ampliar a reprimarização da economia.
Reprimarização em marcha
Geralmente, as pessoas imaginam que um país não pode retroceder da condição de nação industrial para agrário-exportadora, mas esse é um raciocínio incorreto. A Argentina, por exemplo, já foi uma nação com expressivo coeficiente industrial na primeira metade do século passado. No entanto, retroagiu à condição de país agrário-exportador com crises permanentes desde a segunda metade da década de 50 até hoje. Portanto, se não houver uma política governamental que detenha o declínio industrial e coloque o Brasil em patamares avançados dos novos ramos industriais, como tecnologia das informações, robótica, semicondutores, inteligência artificial, entre outros, poderíamos retroagir à condição em que estávamos antes da revolução de 1930, com o agravante de que hoje mais de 80% da população mora nas cidades, especialmente nas grandes metrópoles, ao contrário do período anterior à década de 30, quando a maioria vivia no campo. Isso significa dizer que o Brasil viverá no próximo período uma conjuntura em que os problemas sociais se tornarão mais intensos e dramáticos. Este é o desafio que temos de enfrentar se não quisermos regredir ao atraso econômico do passado.
A reprimarização da economia de um país ocorre quando o setor industrial entra em declínio na composição do PIB e os setores agrários-exportadores e minerais passam a liderar dinâmica da economia, processo que se expressa mais intensamente na balança comercial, onde os produtos agropecuários e minerais comandam a pauta de exportação. Esse fenômeno vem sendo observado no Brasil pelo menos desde meados da década de 90 e se consolidou a partir de 2009, conforme trabalho realizado por Lopes, que estudou a balança comercial brasileira desde 1808. “(A industrialização) iniciada em 1930 de maneira incipiente e, com maior intensidade a partir de 1950, levou de 30 a 50 anos para se consolidar como principal provedora de bens exportados pelo País. Tal situação durou exatamente 31 anos, com o setor de commodities primárias retornando à posição de destaque”.[8]
A reprimarização da economia provoca uma série de problemas porque reduz a dinâmica do desenvolvimento econômico, o nível de emprego, aprofunda as desigualdades sociais e torna o país mais pobre, enquanto apenas uma minoria reacionária do campo se enriquece. Se observarmos os países centrais, todos eles possuem indústrias pujantes, elevado nível de desenvolvimento tecnológico e participação também elevada no comércio internacional. No Brasil está acontecendo exatamente o contrário. Conforme podemos ver no gráfico 2, entre os anos 2000 e 2022 houve uma queda da participação da indústria no produto nacional, de 15,3% para 12,9%, enquanto o setor agropecuário e de mineração quase dobrou – passou de 6,9% no ano 2000 para 12,9% em 2022.[9]
Em outros termos, o fortalecimento do setor primário ocorreu paralelamente ao declínio da indústria de transformação, que perdeu participação no PIB e deixou de gerar empregos qualificados. A balança comercial tornou-se cada vez mais dependente dos produtos agropecuários e minerais e, com isso, tornou-se também mais dependente da demanda internacional por commodities, reforçando assim o papel subordinado do Brasil na divisão internacional do trabalho e deixando o país vulnerável à volatilidade dos ciclos do mercado internacional. Trata-se de uma desindustrialização precoce, que está ocorrendo numa conjuntura de renda per capita mais baixa que a dos países desenvolvidos, além de baixo crescimento, o que significa dizer que a industrialização brasileira não se desenvolveu o suficiente para criar uma dinâmica na qual o setor de serviços possa absorver tanto os trabalhadores que ficarão desempregados quanto aqueles que irão ingressar no mercado de trabalho.
Impactos sociais e ambientais
Na verdade, toda a sociedade brasileira perde com a reprimarização da economia porque terá um menor encadeamento produtivo, uma vez que o setor agropecuário não gera os mesmos efeitos multiplicadores na economia que a indústria, e os trabalhadores, o meio ambiente e os pequenos agricultores serão os mais prejudicados. O setor primário não gera a mesma dinâmica no emprego como o setor industrial, tanto em termos de qualificação quanto de salários, o que deverá tornar o mercado de trabalho ainda mais problemático em termos de qualificação, salário e informalidade. Se atualmente temos cerca de 40 milhões de trabalhadores na informalidade, sem os direitos legais da CLT, esse número deverá aumentar substancialmente se a lógica da reprimarização continuar se desenvolvendo na economia.
A agricultura familiar também será prejudicada, uma vez que os pequenos agricultores possuem recursos limitados e enfrentam custos elevados, enquanto os agricultores europeus recebem vastos subsídios que reduzem seus custos de produção, processo que permite que seus produtos sejam colocados ao mercado nacional com preços mais baixos, especialmente os produtos que concorrem com os pequenos agricultores como queijo, laticínios e vinhos o que, com certeza, vai reduzir a competitividade da agricultura familiar brasileira e levar muitos pequenos agricultores à falência. Não se pode esquecer o perigo que isso representa: a falência de importantes segmentos da agricultura familiar vai implicar diretamente na produção de alimentos, pois a agricultura familiar tem um papel importante na oferta dos produtos básicos.
Outro elemento importante a ser observado é o seguinte: a pressão pela exportação de commodities estimula o agronegócio a expandir a fronteira agrícola, aumentando assim a concentração fundiária. Além disso, essa conjuntura pode levar à ampliação do desmatamento das florestas, das queimadas, das emissões do efeito estufa e das práticas nocivas ao meio ambiente, como envenenamento do solo, dos rios e de nascentes de água, afetando ainda mais biomas da Amazônia e o Cerrado, que já vêm sendo atacados pelo latifúndio e o agronegócio. Também se pode esperar dessa conjuntura o aumento dos conflitos sociais com as comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, cujas terras são cobiçadas pelo agronegócio e o setor da mineração. “Outros impactos negativos sobre o meio ambiente são esperados devido ao modo de produção do agronegócio – monocultura e uso intensivo de agrotóxicos, entre outros”.[10]
Mesmo os grandes produtores agropecuários também poderão ter problemas. Apesar do acordo prever maior acesso aos mercados europeus, a União Europeia tem avançado nas políticas de redução da dependência das commodities importadas, tanto em função da Política Agrícola Comum, bastante generosa em termos de subsídios, quanto da transição para a sustentabilidade e energias renováveis, temas bastante complexos que podem ser usados como critério para dificultar as exportações brasileiras. Também não se pode esquecer as barreiras não tarifárias, que envolvem padrões sanitários, fitossanitários e ambientais rigorosos que podem ser utilizados como entraves para a comercialização de produtos brasileiros na Europa.
Para finalizar, embora o acordo Mercosul-União Europeia possa trazer alguma vantagem para o agronegócio, especialmente para os grandes produtores de commodities, posiciona subalternamente o Brasil na divisão internacional do trabalho como um grande fazendão fornecedor de commodities agrícolas e minerais, reforçando o papel de economia periférica secundária, aprofundando as fragilidades estruturas da economia brasileira e contribuindo ainda mais para a precarização do mercado de trabalho. Além do mais, poderá ampliar a concentração fundiária, os ataques ao meio ambiente, a expulsão de vastos setores da agricultura familiar do mercado e da terra e ampliar os conflitos com as comunidades indígenas e quilombolas. A ironia está no fato de que a reprimarização da economia está sendo conduzida por um partido que se diz dos trabalhadores e que nasceu no núcleo mais dinâmico da industrialização no Brasil, a região do ABC paulista, e que agora está sendo o portador dos interesses das velhas elites agrárias que, em termos concretos, estão buscando regredir o Brasil à condição de país agrário-exportador, como era antes da década de 30 do século passado.
*Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB
[1] Agencia Gov. O histórico acordo das negociações e próximos passos do acordo Mercosul-EU. Acesso em 28/12/2024.
[2] Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Acordos de parceria Mercosul-União europeia. Disponível em: https://www.gov.br/mdic/pt-br. Acesso em 29 de dezembro de 2024.
[3] Morceiro, P. Se a indústria vai mal, o Brasil não cresce. Disponível em: https://valoradicionado.wordpress.com/tag/participacao-da-industria-de-transformacao-no-pib. Acesso em 2 de janeiro de 2025.
[4] Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, op. cit.
[5] Delgado, G. C.; Leite, S. P. O agro é tudo? Pacto do agronegócio e reprimarização da economia. Disponível em Le Monde Diplomatique – Brasil. Janeiro, 2025.
[6] Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Acordo de parceria Mercosul-União Europeia, op. cit.
[7] Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Acordo de parceria Mercosul-União Europeia, op. cit.
[8] Lopes, V. T. A reprimarização das exportações brasileiras em perspectiva histórica de longa duração. Revista Carta Internacional, vol. 15, Belo Horizonte, 2020.
[9] BBC: A indústria brasileira virou pó: como o agro e a mineração já superam a manufatura no Brasil. Os dados do gráfico constam da entrevista de Morceiro à BBC.
[10] Castilho, M.; Ferreira, K.; e Braga, J. Reflexões acerca dos impactos do acordo Mercosul-União europeia. Instituto de Economia – UFRJ, 2024.