Os mártires da Palestina e suas câmeras em mãos

Por Fran Rebelatto – Fotógrafa, cineasta e jornalista, Professora de Cinema na Unila e Membro do Comitê Central do PCB

“Se suas fotos não são boas, você não está perto o bastante”
(Robert Capa)

Quando iniciei meus estudos em fotografia, em meados dos anos 2000, aprendi a lidar com a diferença entre as objetivas também conhecidas como lentes fotográficas. As mais angulares são aquelas que te dão ângulo de visão mais amplo, no entanto, te exigem maior aproximação do que está sendo fotografado e podem provocar distorções. As ‘normais’ são aquelas que reproduzem ou se aproximam do ângulo da visão humana, mais conhecidas como 50mm, já as teleobjetivas correspondem às que aproximam o que está mais distante, recortando essa imagem, podendo provocar maior desfoque do fundo. Nada disso é sobre técnica e estética, sempre é sobre posição política. Mas também é sobre técnica e estética.

Por um lado compreendia, desde este momento inicial, a provocação de um dos mais importantes fotógrafos de guerra do século XX, o fotógrafo húngaro Robert Capa, a partir da sua famosa frase “se suas fotos não são boas, você não está perto o bastante”, ou seja, para o fotógrafo, era necessário estar próximo ou envolvido o suficiente no tema e na realidade em que está fotografando, quiçá consciente o suficiente do que não é dito tão somente na imagem registrada. Por outro lado, lembro-me que projetava a lente teleobjetiva como a ideal para fotografar regiões de conflito e de guerras, pois é esta lente grande e pesada que não só reproduzia o formato de uma arma, se não que também te permitia uma distância segura para disparar o clique.

Sim, eu queria ser ‘correspondente de guerra’. Não pelo fetiche da realidade dos territórios devastados e pela dor revelada nas imagens, mas por que sabia que enquanto houvesse capitalismo, imperialismo e regimes autoritários e racistas como o sionismo, a guerra seguiria existindo e estar ali – enquanto fotojornalista-, também era tomar uma posição diante das contradições do mundo. Não me tornei uma fotógrafa de guerra, por mais que tenha me valido – e sigo -, da fotografia para registrar diferentes realidades de trabalhadores (as) e seus mais diversos povos da América Latina. Me refugiei na arte do cinema, menos no jornalismo, mas a câmera segue me acompanhando: como escudo, como testemunha, como uma arma.

Mas esse texto não é sobre minha história, sobre a história das lentes, é sobre a Palestina.

Quantos mártires com câmeras em mãos serão necessários mais?

Em menos de quinze dias na Palestina, se tornaram mártires o ativista Odeh Hadalin, que participou do documentário Sem Chão (No Other Land ), vencedor do Oscar, assassinado friamente por um colono israelente. Ele registrou com uma câmera em mãos seu próprio assassinato. Ele estava ‘perto o bastante’. Logo, se transformaram em mártires a equipe do grupo Al Jazeera, dentre eles, o jovem e reconhecido jornalista Anas al Sharif, de 28 anos, que permaneceu nesses quase dois anos ‘perto o bastante’ da realidade do seu povo. Esses cruéis assassinatos, em meio à fome como arma de guerra, à matança deliberada de civis em busca de comida, os bombardeiros diários e uma cifra incontável de mártires (dentre eles crianças e mulheres) por um momento me fizeram pensar: Quem vai sobreviver? Quando nem uma câmera mais é capaz de proteger a dignidade da existência de um palestino?

Desabei com o assassinato de Anas al Sharif, confesso. Desde outubro de 2023 o seguia cotidianamente nas redes sociais, não somente o seu perfil, mas de vários outros jornalistas e fotógrafos de Gaza, estudantes universitários, artistas, dentre outros. Tenho certeza que eles não escolheram ser fotógrafos (as) ou jornalistas de guerra. Essa decisão lhes foi imposta há mais de sete décadas pelo avanço do projeto sionista de aniquilação de um povo, de sua história, de suas oliveiras, dos rostos de suas gentes, dos sonhos de suas crianças e de suas paisagens. Imagens sempre bonitas para os bons filmes árabes.

Desde que comecei a acompanhá-los o medo é permanente de não ter mais notícias e ter conhecimento de que se tornaram mártires. O assassinato de Anas me bateu naquele lugar dos sonhos da juventude quando me debrucei – em muitos momentos na faculdade a conhecer aqueles (as) que tinham sido os (as) fotógrafos de guerra ou algumas das fotos mais emblemáticas da história dos conflitos do século XX. Sigo os trazendo para as aulas agora como docente de fotografia no Curso de Cinema e Audiovisual da Unila. Comecei por Robert Capa e sua companheira Gerda Taro, ambos mortos durante guerras.

Capa foi o fotógrafo que desembarcou com os soldados aliados no Dia D durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, cobriu a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Sino-japonesa, a Guerra Árabe-israelense, de 1948, e a Primeira Guerra da Indochina. Em 1954, durante a Primeira Guerra da Indochina, Capa pisou em uma mina terrestre e faleceu na hora. Gera Tardo, por sua vez, foi a primeira fotógrafa do sexo feminino a morrer em combate. Com ascendência judia, ela fugiu da Alemanha para Paris na ascensão do nazismo onde conheceu Capa. Ela participou da cobertura da Guerra Civil Espanhola e, em 1937, morreu em uma acidente durante uma fuga em uma área que seria bombardeada.

Li também sobre Dmitri Baltermants, fotógrafo soviético nascido na Polônia, tendo sido o fotógrafo oficial do Kremlin. Algumas das suas fotos mais importantes foi acompanhar o Exército Vermelho, inclusive a batalha de Stalingrado. No meu roll de fotógrafos de guerra, tambén estava Gilles Caron, fotógrafo francês que tem entre seus trabalhos mais conhecidos as fotos tiradas na Guerra dos Seis Dias, em 1967, na Guerra do Vietnã e nos protestos e confrontos civis de maio de 1968, na França. Caron desapareceu enquanto fazia a cobertura no Camboja em 1970, e foi dado como morto em 1978.

Da mesma forma, estudei as fotos emblemáticas de guerras, podendo citar, a “Menina do Napalm” de Nick Ut durante a Guerra do Vietnã, ‘O Soldado Caído’ de Robert Capa na Guerra Civil Espanhola. Me interessava, no entanto, também o olhar de fotógrafas e fotógrafos que registraram as condições de trabalho e de vida das várias populações do mundo, como o fotógrafo de origem indígena Martín Chambi que nasceu em Puno, uma das regiões mais pobres do Peru e registrou os trabalhadores (as) daquele país, em especial, os das minas e suas condições de trabalho. Sebastião Salgado que nos ajudou a desvelar as contradições do mundo do trabalho em várias regiões do mundo. Me aproximei das fotografias de Lewis Hine sobre o trabalho infantil de migrantes nos EUA, ainda, a fotógrafa estadunidente Dorothea Lange que registrou o impacto da Grande Depressão na vida dos (as) camponeses daquele país. Ainda, a italiana Tina Modotti que no México fotografou, em especial, as mulheres campesinas. A lista é grande e me deterei a esses poucos e necessários exemplos.

Mas não posso esquecer de Yaser Murtaja, fotógrafo e cinematógrafo palestino assassinado pelo exército israelense enquanto cobria uma manifestação na Faixa de Gaza, em 2018. Murtaja também atuava para a Al Jazeera e sua produção consistia em documentar as situações de ataque aos direitos humanos que ocorriam naquela região. Ele foi baleado por um sniper israelense enquanto cobria um protesto. Ele não foi o único, e, infelizmente, não nos parece que será o último.

Já são 186 jornalistas e fotógrafos assassinados pelo estado sionista e racista de Israel desde 07 de outubro de 2023, mais do que os 69 de toda a 2ª Guerra Mundial, mais do que os muitos em várias outra guerras do Século XX e do Século XXI. O fato é que as lentes, nem mesmo as teleobjetivas – aquela que poderia apresentar uma distância segura -, estão sendo suficientes para salvaguardar o direito de existir e dar voz aos povos oprimidos do mundo.

Anas al Sharif estava ‘perto o bastante’ e por isso, sua voz, fotos e intervenções não eram só ‘boas’, eram necessárias para que o mundo seguisse vendo o maior genocídio da nossa história recente, televisionado, fotografado e denunciado cotidianamente pelos (as) muitos (as) jornalistas palestinos (as) que querem apenas deixar em seu testamento:

“Confio a vocês a Palestina – a joia da coroa do mundo muçulmano, o coração de cada pessoa livre neste mundo. Confio a vocês seu povo, suas crianças injustiçadas e inocentes que nunca tiveram tempo para sonhar ou viver em segurança e paz. Seus corpos puros foram esmagados por milhares de toneladas de bombas e mísseis israelenses, dilacerados e espalhados pelos muros. Peço a vocês que não deixem que as correntes os silenciem, nem que as fronteiras os impeçam. Sejam pontes para a libertação da terra e de seu povo, até que o sol da dignidade e da liberdade nasça sobre nossa pátria roubada”

Anas al Sharif confiou a nós, à humanidade seu humanismo mais radical, o que faremos com seu testamento, com sua confiança, com suas imagens? Qual é a lente que vamos usar para seguir intervindo nesta realidade na qual não conseguimos visualizar um horizonte sem guerras? O quão perto bastante estaremos da opção de uma mudança radical deste estado de coisas?

Nada disso é somente sobre técnica, estética, como digo aos meus alunos, é sempre sobre posição política no mundo. Por Anas, por Odeh, por tantos mártires, suas imagens e sonhos: uma vida de luta!!

Foz do Iguaçu, 12 de agosto de 2025.