Europa: vassalagem e submissão aos EUA

CréditosKoen Van Weel / EPA

 

A doce cartinha de Rutte ao «querido Donald»

Por José Goulão

ABRIL ABRIL

Em boa hora o rei da OTAN escolheu o cidadão holandês Mark Rutte como secretário-geral da Aliança, para substituir o sombrio norueguês Stoltenberg.

A Europa, a América e o «mundo livre» só ficaram a ganhar com a troca. Rutte trouxe cor e floreados ao cargo, numa Otan que já estava saturada do discurso burocrático, insípido, inspirado na linguagem de caserna do falcão e trabalhista norueguês.

Rutte não é nada disso. Ele veio demonstrar, uma vez empossado como funcionário número 1 da aliança, que o cargo pode ser desempenhado de maneira muito diferente e sentida. Rutte explica a arte de prestar vassalagem com alegria, emoção e gratidão. Ensina-nos a rastejar com estilo e elegância. Isto é, demonstra que pode fazer-se o que sempre se fez na sua posição, quando se dirige ao bom padrinho das Américas, com sensibilidade e até com ternura, sem temores, nem dores de barriga. Ir de joelhos a Washington é duro, mas não há recompensa e glória sem sangue e sacrifício.

Algo que ninguém «se atreveria a fazer»
A história poderia passar despercebida, devido à modéstia do ex-primeiro-ministro holandês, para quem a pátria é a OTAN e deus é americano. No entanto, o verdadeiro chefe da aliança, o megaempresário da construção civil e presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, não aceitou que tão grande manifestação de afeto para com a sua pessoa, que o carteiro lhe entregou, ficasse no recato das excelsas submissões.

Como é habitual, Donald Trump recorreu às redes sociais para que o maior número de pessoas, não só da América e da Europa, mas de todo o mundo, ficassem conhecendo a devoção de Mark Rutte. A privacidade da correspondência é coisa caída em desuso, como nos ensinaram os Estados Unidos, e o seu presidente não hesitou em divulgar a cartinha que tinha acabado de receber do secretário-geral da OTAN. E que este fez o favor de escrever em nome dos países da organização. Estejam os leitores descansados, porque todos ficamos representados em tão oportuno preito de vassalagem.

Não se pode dizer que Trump tenha ficado impressionado com Rutte da mesma maneira que se sentiu tocado quando foi apresentado a al-Julani, o terrorista que sequestrou a presidência da Síria: «jovem, atraente e viril», apreciou, na ocasião.

À primeira vista percebe-se que Rutte não é muito dotado destes atributos. Mas sobram-lhe ternura, emoção e dedicação para tentar enternecer o coração do chefe.

Numa época em que as comunicações pessoais se baseiam na escrita telegráfica, desinteressante e depurada dos emails, e nas mensagens cifradas dos SMS, Rutte optou pelo tradicional, retro e romântico método da cartinha. Os seus talentos epistolares, hoje em dia apenas ao alcance dos predestinados, os que cultivam o digital, mas não esqueceram o analógico, chegam a ser comoventes.

«Senhor Presidente, querido Donald», começa a missiva. «Felicitações e agradecimentos pela tua ação decisiva no Irã, algo verdadeiramente extraordinário e algo que ninguém podia, jamais, atrever-se a fazer».

E mais escreveu: «Donald conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para América, a Europa e o mundo».

Dizem os cidadãos mais desconfiados, aqueles que desdenham, por vício, da opinião única, definidora do lado dos bons e da razão, que o feito «extraordinário» do presidente dos EUA, ao estabelecer um cessar-fogo com o Irã, se deveu, de maneira prosaica, ao fato de ter percebido, muito depressa, que iria entrar numa guerra nada curta e conveniente, com resultados bastante incertos.

Além disso, não precisou recolher muitas informações para deduzir, em três tempos, que o seu amigo e aliado, o carrasco Benjamin Netanyahu, incapaz de se ver livre do Hamas e do Hezbollah, estava outra vez em maus lençóis. Meteu-se com o tubarão, julgando que era sardinha. Nem o Irã se rendia, nem o regime caía. Pelo contrário, os golpes vibrados no território e na arrogância de Israel, nada tinham de superficiais.

Os mais prestigiados analistas militares de Israel foram, aliás, muito rápidos a lançar apelos lancinantes ao governo e às forças armadas para se apressarem a alcançar um cessar-fogo. Cedo perceberam que mais esta aventura militar em que o sionismo se meteu, transformada em guerra de atrito, poderia não acabar bem. O célebre «escudo de ferro» antiaéreo, afinal é de latão. Além disso, as bases do Irã parecem mais fortes do que se supunha. E Trump ficou aterrado com as primeiras respostas do mercado de hidrocarbonetos aos rumores sobre o encerramento do Estreito de Ormuz. Que se acabe a guerra, mandou o imperador, embora saibamos que o assunto não ficará por aqui. Como é indispensável se dizer, falta sustentabilidade à suspensão do conflito.

«A Europa irá pagar-te EM GRANDE»
Os combates pararam, Trump recolhe os louros, Netanyahu canta vitória e Mark Rutte, em nosso nome, não lhes pode estar mais grato. «Conseguiu o que NENHUM presidente fez em décadas», escreveu na missiva. Um pormenor de bom aluno: Rutte não se esqueceu de realçar palavras completas em maiúsculas, como costuma escrever o chefe nas suas mensagens – um sinal da esmerada educação que o distingue.

A gratidão do secretário-geral não tem fim, e ele faz questão de manifestá-la com promessas assumidas em nome de todos nós. «A Europa irá pagar-te em GRANDE, como deve, essa será a tua vitória».

Ai vai pagar, vai, porque os nossos governantes amam os negócios da guerra e dispõem, como querem, das contas bancárias dos contribuintes. Vai pagar EM MUITO GRANDE, até. Cada um de nós irá desembolsar a respectiva fração de pelo menos 15 bilhões de euros do cheque que Montenegro, sem precisar de nos consultar, já começou a passar. Investir na morte é lucro garantido, dir-se-á.

«São trocos», apressou-se a dizer aquela que poderá ser considerada, entre nós, a decana, ou mesmo a bastonária da ordem do comentariado. E aproveitou para atacar o mesquinho chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, por ainda ter a dignidade de pôr o seu país a salvo dos tais 5% do PIB, destinados a pagar «a vitória de Trump». E que este, desprendido como é, utilizará para nos abastecer com fantásticas máquinas de morte, compradas a preços de novas nos saldos dos refugos da indústria imperial de armamento. Tudo isso é indispensável para a nossa «defesa», para a nossa «segurança», diz a OTAN. Lembrem-se das advertências do perspicaz Almirante vindo do fundo dos mares: temos de nos precaver, porque os bárbaros russos estão chegando e, se não capricharmos, quando cá estiverem já será tarde. Se assim é, 5% deve ser pouco. Mais valia perder o amor a 10%, ou 15%, liquidar de vez a educação pública, o Serviço Nacional de Saúde e outras coisas desnecessárias quando sobre nós paira, como sempre, a «ameaça russa», agora reforçada com o «perigo amarelo».

Sánchez atreve-se a não contribuir com os sagrados 5%, «mas vai pagar o dobro», assegura o imperador Trump, o fiscal do funcionamento da democracia liberal. Para Sanchez e os espanhóis aprenderem que têm de sofrer pesadas consequências por teimarem no capricho de cultivar velharias, como a dignidade e a coluna vertebral.

A Espanha «é terrível», «é irritante», acusou Trump. Não se desafia assim a «ordem baseada em regras». Sánchez foi até mais longe na heresia, e atreveu-se a dizer que os gastos feitos pela Espanha para a OTAN já são suficientes. O país está seguro e, ao mesmo tempo, pretende preservar o Estado social. «ESTADO SOCIAL?» Quem se permite falar nisso, nestes tempos da democracia neoliberal? Maus exemplos como o do chefe do governo espanhol não podem ficar impunes. Trump, o seu serviçal Rutte, os governos da OTAN e a direita apátrida espanhola – que não descansa enquanto não derrubar o executivo –, não o permitirão.

Os Estados Unidos de Trump não chegam a gastar 4% para a OTAN, mas isso há de se compreender. O papel de polícia do mundo exige despesas muito mais elevadas em tarefas que o país executa sozinho, ao desempenhar a sua missão filantrópica global «defensiva», para o bem de todos nós.

Com delicada sensibilidade, Mark Rutte esforça-se para que Trump não desampare a Europa e a OTAN, o que deve se ler nas entrelinhas da sua epístola. Ele compreende que, para «fazer a América grande de novo», o presidente terá de assumir opções susceptíveis de obrigar o Velho Continente a ficar mais por sua conta, o que há muito desaprendeu.

O «comprometimento» custa 5%
Rutte sabe também que, para o atual presidente dos Estados Unidos, a utilidade da Europa é a mesma que um rolo de papel higiénico. Compete-lhe limpar os dejetos que os Estados Unidos deixaram na Ucrânia desde 2014, e já não é pouco.

Ciente da orfandade que ameaça este lado de cá do Atlântico, Rutte engendrou uma barganha e, para isso, alimenta a esperança de que a velha vassalagem das colônias europeias ainda seja capaz de polir o ego do imperador, talvez amansar a fera.

O próprio secretário-geral da OTAN desvendou um pouco a sua ideia, antes da cúpula da organização, em Haia. «Trump está comprometido com a OTAN», disse ele, quando todos sabemos que, pelo menos até agora, o que o presidente dos Estados Unidos tem dito e feito é em sentido contrário.

O trunfo na manga de Rutte é o de garantir, em troca desse «comprometimento», os 5% do PIB de todos os Estados membros, para financiar o orçamento da aliança e aliviar, assim, a carga dos EUA. De maneira a que tudo regresse aos bons velhos tempos da absoluta tutela colonial. Isto é: os países da OTAN pagarão cerca de três vezes mais caro pelas tropas, os mísseis, as bombas e o (decadente) know-how militar dos Estados Unidos. Ser uma colônia está se tornando uma comodidade cada vez mais dispendiosa.

Acreditamos que, ainda a bordo do «Air Force One» de regresso a Washington, Donald Trump teve novas ideias e tomou decisões contrárias aos seus «compromissos» assumidos em Haia. É assim que gere o império: hoje sim, amanhã não, depois de amanhã talvez. E todos marchamos, bem comportados, enjoados, por um arriscado caminho sinuoso e que vai sendo desbravado à beira de um abismo, que pode ser existencial.

Rutte pode escrever-lhe cartinhas delicodoces para lhe polir a vaidade. Costa pode oferecer-lhe, com vênias tão deslumbradas como basbaques, a camisola de Cristiano Ronaldo. Trump precisa de adulação como de ar para respirar, gosta de graxa, mas despreza os puxa-sacos. O seu «comprometimento» com a OTAN será o mesmo de antes da cúpula de Haia, mas assegurou que os súditos serão generosos no momento de liquidar o dízimo imperial. Essa foi a sua vitória.

O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que na União Europeia, na OTAN, nos nossos países, somos governados por indivíduos mesquinhos, traiçoeiros e sem caráter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.

A sabujice de Rutte não é uma característica pessoal. Afeta todos os comparsas da Europa e da OTAN, com a já citada exceção. Os outros talvez não tenham, porém, os seus dotes epistolares para exercitar em cartas a que o chefe dará o destino habitual das coisas inúteis e desprezíveis.

Salve a democracia liberal.