A ditadura das finanças e as privatizações

Imagem: Capa do Jornal O Poder Popular 067 (Maurício Souza)

Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB

A ganância da oligarquia financeira brasileira não tem limites: apesar do saque ao fundo público desde o início da década de 90 do século passado, em função das elevadas taxas de juros e da dívida interna, esse segmento parasitário da economia brasileira não se contentou com os trilhões de reais transferidos do setor público para a área privada. Pelo contrário, seguindo as recomendações do Consenso de Washington, exigiu das autoridades brasileiras (e conseguiu) privatizar a grande maioria dos setores estratégicos brasileiros, inclusive os monopólios naturais ligados diretamente aos serviços básicos demandados pela população, como água, energia e telecomunicações. E dessa forma se expropriou o patrimônio público construído ao longo de décadas por várias gerações a preços subavaliados, em meio a negociatas e corrupção, num processo tão escandaloso que ficou conhecido como privataria tucana.

A justificativa teórica para a expropriação do setor público brasileiro foi profundamente enganosa, pois os agentes neoliberais afirmavam que o Estado brasileiro estava inchado, era mau gestor e ineficiente para administrar seus próprios ativos, o que tornava necessária a redução de seu papel na economia e a transferência das empresas públicas para o setor privado. Por sua vez, a iniciativa privada era apontada não só como mais eficiente, produtiva e inovadora, mas sua larga expertise na gestão econômica levaria ao aumento dos investimentos, da produtividade e do crescimento econômico, processo que abriria espaço para que o governo se concentrasse na área social. Mas esse discurso, aparentemente técnico, escondia na verdade um projeto político radical de desmonte do Estado, desnacionalização da economia, redução do poder de regulação do Estado e entrega do patrimônio público ao capital financeiro nacional e internacional, tudo isso com apoio da mídia, setores do judiciário, consultorias internacionais e o sistema financeiro.

Em termos práticos, o que aconteceu foi uma profunda reconfiguração estrutural do Estado brasileiro, sob a lógica do capital financeiro e diretrizes do neoliberalismo global, a destruição sistemática das bases públicas que sustentaram o processo de industrialização brasileira e o assalto às empresas públicas, cujo objetivo buscava submeter o Estado brasileiro à lógica do capital, colocando a esfera pública e os serviços essenciais sob o domínio do mercado. Sem as empresas públicas nos setores estratégicos, como energia, saneamento, telecomunicações, logística, petróleo e gás, o Estado perdeu os instrumentos fundamentais para fazer política econômica e intervir na economia, houve redução da arrecadação de dividendos e tributos, desnacionalização da economia, comprometendo de maneira efetiva a capacidade de realizar investimento público e agravando a dependência financeira em função da dívida interna.

Um dos elementos mais visíveis desse processo de privatização foram os escândalos de corrupção e negociatas, denunciados diariamente pelos meios de comunicação. Visando privatizar a qualquer custo e da maneira mais rápida possível, formaram-se consórcios empresariais alimentados com recursos públicos, especialmente do BNDES, para adquirir essas empresas, enquanto consultorias e assessorias seriam responsáveis pela avaliação econômica das empresas e pela indicação de um preço mínimo de suas ações. Tais empresas de consultoria, aparentemente técnicas e visando dar um ar de legalidade à transação, avaliaram o patrimônio público a preços muito abaixo de seu valor real, consumando uma negociata que gerou enormes vantagens para os compradores. Parcela expressiva das empresas estatais foi comprada com as chamadas moedas podres, que eram títulos desvalorizados no mercado, mas aceitos pelo valor de face na compra das empresas, enquanto outras foram adquiridas com financiamento do BNDES, num processo de corrupção institucionalizada.

Em outras palavras, as privatizações ocorridas no Brasil devem ser compreendidas como um saque planejado e legalizado do patrimônio nacional, um verdadeiro assalto realizado com verniz aparentemente jurídico para favorecer às classes dominantes, cujos responsáveis até hoje ainda não pagaram pelos seus crimes. Esse processo não apenas impôs uma metamorfose no regime de acumulação, como ampliou a subordinação do país aos interesses do capital nacional e internacional. Em vez de modernizar o país, que era a narrativa difundida pelos escribas neoliberais, as privatizações reforçaram a vulnerabilidade da economia brasileira à lógica do capital financeiro e do imperialismo. Ou seja, a ditadura das finanças não é apenas uma metáfora para denunciar os abusos dos bancos e do projeto de especulação financeira, mas uma forma concreta de dominação econômica e política que utiliza o Estado para garantir seus interesses.

As privatizações das empresas públicas desde 1990

O processo de privatização, sob a orientação do Consenso de Washington, começou efetivamente com o governo Collor no I Plano Nacional de Desestatização (I PND), cujo diagnóstico enfatizava que o Estado tinha avançado sobre várias áreas da economia que deveriam ser da iniciativa privada, tendo se tornado uma espécie de “paquiderme”, inchado, ineficiente e clientelista. Portanto, para os neoliberais, era necessário promover uma reforma do Estado brasileiro sob o argumento de colocar o Brasil numa nova rota de desenvolvimento, aberto ao exterior e em consonância com a globalização em curso, cuja nova conjuntura iria proporcionar condições para os investimentos do capital internacional no país. Com essas mudanças, o governo alegava que ocorreria um novo processo de industrialização, modernização tecnológica e crescimento econômico.

Collor, mediante a Medida Provisória 155/90 (depois convertida em Lei 8.031/90), implantou o I PND visando reestruturar o papel do Estado na economia com a transferência de empresas públicas para o setor privado, sob a justificativa de reduzir o endividamento do Estado, modernizar o parque industrial, realizar o ajuste fiscal, fortalecer o mercado de capitais e gerar uma nova dinâmica no desenvolvimento econômico. Nessa perspectiva, o BNDES se transformou no coordenador do projeto de privatizações, tanto na escolha das consultorias que iriam realizar a avaliação das empresas, definir o preço mínimo de venda e realizar acompanhamento de todo o processo de venda, como também foi o responsável pelo recebimento das ações das empresas que deveriam ser privatizadas.

Como as privatizações estavam emperradas em função de uma série de procedimentos legais e burocráticos, o governo resolveu aceitar qualquer tipo de título público, interno ou externo, para o pagamento das empresas, que posteriormente ficaram conhecidas como moedas podres. Muitos desses títulos, como Debêntures da Siderbrás, Títulos da Dívida Agrária, Dívidas Securitizadas, Obrigações do Fundo Nacional de Desestatização, entre outros, estavam com seus preços desvalorizados no mercado, mas poderiam ser aceitos pelo valor de face no processo de privatização. Com essa medida, Collor buscou uma forma questionável e desesperada para realizar a venda das empresas estatais a qualquer custo, promovendo um enorme processo de corrupção e causando grande prejuízo para o país.

Nessa perspectiva, o governo listou 68 empresas no I PND, dentro de uma estratégia de privatizar aquelas mais rentáveis e atrativas, tanto para sinalizar sua firme determinação em seguir com a iniciativa, quanto para atrair os investidores nacionais e internacionais, mas só conseguiu privatizar 15 empresas, em setores fundamentais da economia, como a Usiminas e a Companhia Siderúrgica de Tubarão, no setor siderúrgico; vendas de participações acionárias nos polos petroquímico de Triunfo e Camaçari; além de empresas na área de fertilizantes, como Goiás Fértil e Carboquímica Catarinense, entre outras. Ou seja, mesmo com todas as facilidades, Collor não obteve o sucesso desejado, em função do contexto econômico da época, da elevada inflação, do confisco da poupança, além das denúncias de corrupção, uma vez que obteve apenas U$ 4 bilhões para os cofres públicos e U$ 1,3 bilhão em transferência de dívida.

O governo Itamar e o compasso de espera

O vice-presidente Itamar Franco assumiu a presidência no final de 1992, após o impeachment de Collor, em meio a uma grave crise de legitimidade das instituições, recessão econômica, inflação e pressões do FMI e do Banco Mundial para aprofundar as reformas. Com um passado nacionalista e desenvolvimentista, o novo presidente defendia uma articulação das privatizações com a política industrial, revisão da composição da cesta de moedas, participação dos agentes privados e empregados no processo de privatização, financiamento de programas de desenvolvimento científico e tecnológico, maior transparência no programa, além de ter suspendido as privatizações por 90 dias para rever metas e procedimentos.

No entanto, mesmo não sendo um entusiasta do neoliberalismo, Itamar Franco, diante de um ambiente de pressões políticas e crise econômica, terminou sucumbindo aos setores neoliberais e deu continuidade ao programa nacional de desestatização. Esse processo se acelerou com a nomeação de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda, que preparou as bases para a implantação do Plano Real e a posterior radicalização do programa de privatização das empresas públicas, especialmente nos setores estratégicos da economia. Em outras palavras, o governo Itamar Franco foi uma espécie de ponte estratégica entre o governo Collor e o aprofundamento da agenda neoliberal do período FHC.

Durante o governo Itamar foram privatizadas 18 empresas, resultando numa arrecadação de U$ 4,6 bilhões aos cofres públicos e mais U$ 1,9 bilhões com transferência de dívida. Mas um dado simbólico das privatizações no período Itamar Franco foi a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional, que era considerada um símbolo do processo de industrialização brasileiro e foi alienada justamente no governo daquele que era considerado um nacionalista, inclusive quando foi governador de Minas Gerais impediu a privatização da Cemig. Também foram privatizadas outras empresas que simbolizavam o período de desenvolvimento industrial brasileiro: Cosipa, Embraer, empresas na área petroquímica. Além disso, em seu mandato foi permitida a elevação de até 100% da participação do capital estrangeiro nas privatizações. No entanto, até o final do governo a participação dos investidores estrangeiros foi modesta, com apenas 5% das aquisições, enquanto o restante ficou com entidades nacionais (Tabela 1). Ironicamente, a pequena participação do capital estrangeiro deu certa legitimidade ao processo de privatizações, o que seria modificado radicalmente no período FHC.

Tabela 1

Perfil dos compradores e resultado das empresas adquiridas

1990 – 1994 (U$ bilhões).

      Receita   %
Investidores estrangeiros 398   5
Empresas nacionais   3116   36
Instituições Financeiras 2200   25
Pessoas físicas   1701   20
Fundos de pensão   1193   14
Total     8608   100
           
Fonte: BNDEs, apud Landi, M.

FHC, privatizações e reorganização do capitalismo brasileiro

Os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso representaram não apenas a radicalização do programa de privatizações no Brasil, mas também uma mudança de qualidade no processo de acumulação das classes dominantes, marcado pela hegemonia do capital financeiro e o estreitamento das relações com o capital internacional, numa gestão plenamente alinhada com o receituário neoliberal. FHC reorganizou as bases institucionais, jurídicas e econômicas do capitalismo brasileiro, unificou a burguesia associada nesse projeto e disciplinou setores industriais prejudicados com a nova ordem, aprofundou a abertura econômica, entregou os setores estratégicos ao capital nacional e internacional e fragilizou o poder regulatório do Estado, tudo isso sob o argumento de que era necessário romper com o velho Estado nacional do período varguista e colocar o país nos novos parâmetros da globalização.

Como o Plano Real obteve uma grande popularidade e uma situação macroeconômica inicialmente favorável, essa conjuntura tornou mais fácil a aprovação no Congresso de um conjunto de medidas que em outra conjuntura seriam muito questionadas, além do fato de que as mudanças institucionais aumentaram o interesse do capital estrangeiro em relação à privatização das empresas públicas. A estabilização monetária, mesmo criada às custas das elevadas taxas de juros e do câmbio extremamente valorizado, criou uma percepção de prosperidade e aumentou a autoconfiança do governo, conjuntura que serviu para moldar a opinião pública e reduzir as críticas de eventuais opositores, o que contribuiu de maneira decisiva para a radicalização do processo de privatização.

Foi nesse contexto que o governo lançou, em 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, documento que forneceu as bases teóricas e práticas para a reestruturação da administração pública e do papel do Estado na economia. O Plano partia do princípio de que o Estado se desviou de suas funções básicas e passou a atuar de maneira expressiva no setor produtivo e que tornava-se necessário criar condições para a reconstrução da administração pública em “bases modernas e racionais”. Dessa forma, era fundamental um ajuste fiscal duradouro e reformas econômicas orientadas para o mercado, que garantissem a concorrência interna. Ou seja, o Estado deixaria de ser responsável direto pelo desenvolvimento econômico e pela produção de bens e serviços para se fortalecer como promotor e regulador desse desenvolvimento.

Nas palavras explícitas do próprio Plano Diretor: “Reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado. Daí a generalização dos processos de privatização de empresas estatais … Através da liberalização comercial, o Estado abandona a estratégia protecionista de substituição das importações. O programa de privatizações reflete a conscientização da gravidade da crise fiscal e da correlata limitação da capacidade do Estado de promover poupança forçada através das empresas estatais. Através desse programa transfere-se para o setor privado a tarefa de produção que, em princípio, este realiza de forma mais eficiente”, diz o documento.

Vale ressaltar ainda que, para realizar as privatizações, foi necessário um redesenho institucional e jurídico do Estado e da economia brasileira, realizado mediante emendas constitucionais e leis complementares que alteraram a estrutura institucional e os postulados aprovados pela Constituição de 1988, ou seja, no bojo da popularidade do Real, FHC flexibilizou e extinguiu monopólios estatais, além de remover barreiras à aquisição de empresas públicas pelo capital estrangeiro. Nessa perspectiva, um conjunto de emendas constitucionais quebrou o monopólio estatal do petróleo e gás natural, da energia elétrica, das telecomunicações, da mineração, da geração e distribuição de energia, entre outros. Além disso, outra emenda parlamentar revogou a definição jurídica de empresa nacional e as empresas estrangeiras passaram a ter os mesmos direitos que as empresas de capital brasileiro.

O ciclo de privatizações realizado entre 1995 e 2002 foi um dos maiores do mundo, dado que o Estado brasileiro até então era responsável por quase a metade do PIB, e deve ser entendido como um processo estruturado de pilhagem do patrimônio público, com a transferência dos setores estratégicos e da riqueza nacional acumulada através de décadas para o capital privado nacional e estrangeiro. Essas reformas institucionais, realizadas no período, pavimentaram o caminho para a consolidação do modelo neoliberal que perdura até hoje, cujo fundamento é constituído pelo chamado tripé macroeconômico neoliberal, a saber: ajuste fiscal, independência do Banco Central e metas de inflação e câmbio flutuante.

Esse processo de privatização foi realizado mediante escandaloso processo de corrupção e venda das empresas estatais a preços subavaliados, que não refletiam efetivamente seu patrimônio. O governo permitiu ainda que parte significativa das empresas privatizadas fosse paga com as chamadas moedas podres, o que resultou em vantagem tripla para os compradores: ganharam com a aquisição de títulos comprados com baixo valor no mercado, ganharam novamente com a compra das empresas subavaliadas e ganharam mais uma vez com os títulos aceitos com seu valor de face. Além disso, pode-se registrar o cúmulo da negociata: o BNDES, um banco público de fomento, passou a financiar parcela relevante das aquisições, através de créditos subsidiados justamente para os grupos privados que adquiriram empresas do próprio Estado.

Em termos concretos, durante os governos de FHC foram privatizadas mais de 100 empresas, totalizando um valor de U$ 78,9 bilhões de receitas, mais 14,9 bilhões em transferência de dívidas, sendo que o capital estrangeiro foi o responsável pela maior parte das aquisições das empresas privatizadas (Tabela 2). Para se ter uma ideia da extensão do programa de privatizações do governo FHC, basta dizer que o total de recursos arrecadados correspondeu a 88,8% de tudo que foi vendido no período anterior. Desse total, U$ 51 bilhões foram arrecadados pela venda das empresas públicas controladas pela União e U$ 27,9 bilhões como resultado das vendas de empresas controladas pelos estados. Ressalte-se ainda que foi no governo FHC que se construíram as bases institucionais para a privatização das empresas controladas pelas unidades da federação.

Tabela 2

Perfil dos compradores e resultado das empresas adquiridas no período FHC (U$ bilhões)
 
          Receita   (%)
Investidores estrangeiros     41,7   53
Empresas nacionais       20,8   26
Setor financeiro nacional     5,3   7
Pessoas físicas       6,3   8
Fundos de pensão       4,6   6
Total         78,9   100
Fonte: Terraço Econômico          

Em outras palavras, o programa de privatização realizado por FHC foi parte de um projeto de ampliação da inserção subordinada do Brasil na economia globalizada, no qual o Estado abdicou de suas funções estratégicas, de seu papel regulador, para se transformar num instrumento garantidor dos interesses do capital financeiro nacional e internacional, especialmente dos rentistas. A maior parte das receitas foi direcionada para pagar os serviços da dívida interna, que por sinal aumentou de maneira extraordinária nesse período, e as promessas de eficiência, melhoria dos serviços e redução das tarifas não se concretizaram, além de que praticamente todas empresas privatizadas realizaram enxugamento do quadro de pessoal, com milhares de demissões de trabalhadores e trabalhadoras.

Concessões nos governos Lula e Dilma

Os governos Lula e Dilma não deram continuidade ao programa de privatizações, mas desenvolveram de maneira extensiva as chamadas concessões ou parcerias público-privadas, cujos instrumentos desempenharam um papel significativo nas administrações petistas e que podem ser consideradas uma espécie de privatização temporária envergonhada porque, mesmo não alienando a propriedade pública para o capital, transfere para a iniciativa privada concessões de vários setores da economia por longos períodos. Os argumentos do governo eram de que as empresas que fossem contempladas com as concessões iriam mobilizar elevados investimentos em infraestrutura e serviços públicos, visando superar as limitações orçamentárias do Estado. No entanto, a realidade tem sido bem diferente, porque o que se pode constatar é que essas empresas não só não universalizaram os serviços essenciais como ainda aumentaram as tarifas muito acima da inflação.

Ao longo do período dos governos petistas ocorreu uma expansão generalizada das chamadas parcerias público-privadas nos setores de transporte (rodovias e ferrovias), saneamento, energia, saúde, presídios, terminais portuários, parques tecnológicos, entre outros. A crítica mais geral às PPPs reside na subordinação do interesse público aos lucros privados, uma vez que o capital prioriza regiões e setores mais lucrativos, deixando de lado áreas periféricas e populações de baixa renda. Além disso, há falta de transparência em muitos contratos, favorecimento a grandes conglomerados empresariais, facilitados pela fragilidade do Estado em regular e fiscalizar esses contratos.

Em outros termos, quando o Estado transfere áreas estratégicas e de serviços para a iniciativa privada, ocorre uma mudança estrutural na área da gestão. Por exemplo, na lógica da financeirização, os acionistas pressionam as empresas por lucros de curto prazo e maximização de dividendos, como vem acontecendo atualmente com a Petrobrás. Além dessas considerações, embora possa se argumentar que o controle acionário desses setores continue em poder do Estado, a falta de regulação e a dependência das expectativas do mercado configuram de fato um controle do capital privado.

Os governos petistas também realizaram vários leilões nos campos de petróleo do pré-sal, arrematados por companhias internacionais, e colocaram ações da Petrobras em bolsas de valores nos Estados Unidos. Como todos sabem, a Petrobras tem a maior expertise na prospecção de petróleo em águas profundas e possui todas as condições para explorar de maneira autônoma o petróleo brasileiro, mas o governo resolveu ceder às pressões do capital internacional, mesmo sabendo que o petróleo é um bem não renovável. Além disso, ao listar ações nas bolsas dos Estados Unidos, a empresa brasileira fica sujeita às normas da SEC (Securities and Exchange Commission), o que em termos práticos dá poderes aos EUA para atuar contra a empresa brasileira.

Além desses fatores, os contratos de concessões preveem garantia de rentabilidade ao capital e financiamento público dos investimentos privados. Ou seja, o BNDES financia boa parte desses projetos com juros subsidiados, o que significa a socialização do risco e a privatização dos lucros. Mesmo não ocorrendo a privatização em sentido estrito, as concessões realizadas nos governos Lula e Dilma significaram uma espécie de mecanismo de acomodação entre o Estado e o grande capital, por meio das quais o Estado concede um bem público lucrativo para agradar o mercado e, dessa forma, reforça a presença do capital em setores essenciais da economia, mantendo a lógica neoliberal do Consenso de Washington.

A retomada das privatizações com Temer e Bolsonaro

O processo de privatização foi retomado nos governos Temer e Bolsonaro. Temer assumiu o governo no bojo da crise institucional do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, com uma plataforma de restauração da ortodoxia neoliberal, a partir do documento Ponte Para o Futuro, que recolocava na ordem do dia a austeridade fiscal, a abertura econômica, o processo de privatizações, visando satisfazer o capital financeiro interno e externo e os organismos internacionais. Como Temer assumiu a presidência após o golpe parlamentar de 2016, não possuía capital político nem base social para realizar essa nova guinada ortodoxa. Por isso, seu governo foi marcado pela impopularidade, tanto que ele se tornou o presidente mais impopular da história moderna brasileira, com índices de aprovação inferiores a 7%. Sua gestão também foi marcada pela corrupção. Temer foi flagrado em gravação do proprietário da empresa JBS avalizando propina para proteger o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o que gerou um dos maiores escândalos de corrupção da história do Brasil.

Do ponto de vista econômico, seu governo realizou uma espécie de choque ortodoxo radical, quando aprovou o teto de gastos, no qual congelava por 20 anos os investimentos sociais, como saúde, educação e infraestrutura. Temer também aprovou a contrarreforma trabalhista, que flexibilizou direitos, legalizou formas precárias de contratação dos/as trabalhadores/as e enfraqueceu os sindicatos. Durante seu governo, eliminou entraves ambientais, flexibilizou exigências de conteúdo nacional e entregou para privatização e concessões rodovias e ferrovias, portos, aeroportos de várias capitais do país, leilões de petróleo e gás, além da venda de empresas públicas, particularmente na área de energia elétrica, como várias distribuidoras da Eletrobras.

Na área de petróleo vendeu ativos da Petrobras e retirou sua exclusividade de ser operadora e deter 30% das operações dos consórcios, deixando para empresas estrangeiras a exploração dessas áreas estratégicas. Abriu o capital da BR Distribuidora, reduzindo a participação da Petrobras e preparando a privatização que se consumou no governo Bolsonaro. Também realizou negociações para a entrega da Embraer para a Boeing, culminando com a venda da 80% da empresa, que posteriormente foi cancelada pela própria corporação dos Estados Unidos. Temer terminou o mandato isolado e desmoralizado, sem base popular, servindo apenas como ponte de transição para o projeto neoliberal ainda mais radical que viria com Bolsonaro. A desmoralização de seu governo e a instabilidade política do período criaram um terreno fértil para a narrativa da extrema-direita e seu discurso antipolítica e antissistema, que explorava os acontecimentos no governo Temer como exemplo da corrupção generalizada na política tradicional brasileira.

Bolsonaro e o neoliberalismo militarizado

A vitória de Bolsonaro provou mais uma vez que a burguesia brasileira não tem escrúpulos e que é capaz de tudo para manter seus privilégios. Antes das eleições, Bolsonaro era apenas um político de extrema-direita, folclórico, sem a mínima condição de se eleger presidente da República. Mas, diante da crise política e institucional e da inviabilidade eleitoral dos candidatos da direita clássica, toda a burguesia foi aos poucos mudando de posição e finalmente resolveu apoiá-lo, especialmente porque este anunciou Paulo Guedes, um neoliberal reacionário que participou do programa econômico do governo de Pinochet, como seu futuro ministro da Fazenda, e o próprio Guedes anunciou a intenção de “privatizar tudo” durante sua gestão.

Como representante típico do lumpesinato político, Bolsonaro montou um ministério que reunia o que de mais reacionário existia na sociedade brasileira, desde o obscurantismo em relação à ciência e à cultura, o conservadorismo comportamental e a política de ódio e preconceito contra mulheres, homossexuais, nordestinos/as, negros/as, indígenas e quilombolas. Ao lado do comportamento reacionário, desenvolveu-se também uma ofensiva contra direitos e salários de trabalhadores, trabalhadoras e aposentados/as, contra a educação, além da privatização de empresas públicas e entrega das riquezas naturais ao grande capital.

Sempre com um discurso antissistema, Bolsonaro incentivou a polarização permanente, buscou deslegitimar instituições como o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e incentivou a retórica das teorias da conspiração sobre fraude eleitoral, além dos ataques à imprensa e às universidades. Ao lado disso, colocou milhares de militares, entre generais, coronéis e oficiais em geral, nos principais ministérios e nas empresas estatais, como forma de garantir a disciplina interna e a legitimidade simbólica para as suas bases nas várias regiões do país e também para servir de escudo político diante do desgaste social das medidas antipopulares.

Mas o obscurantismo do bolsonarismo de tornou mais evidente na crise da pandemia, quando o governo desenvolveu uma campanha negacionista de boicote às vacinas, de resistência às medidas de isolamento social e da indicação de medicamentos sem nenhuma base científica, como cloroquina e ivermectina, para resolver o problema da doença. Essa campanha negacionista foi a principal responsável pelas mais de 700 mil mortes na pandemia. No Congresso se montou uma Comissão Parlamentar de Inquérito que não só comprovou os crimes de Bolsonaro, como também esquemas de corrupção na compra das vacinas.

Do ponto de vista econômico, Bolsonaro não só manteve o teto dos gastos, como promoveu uma radicalização do processo de privatização, com a venda da Eletrobrás, da BR Distribuidora, refinarias da Petrobrás, além das concessões dos aeroportos, ferrovias, portos e rodovias, petróleo e gás. Bolsonaro ampliou a informalidade, mediante a facilitação do trabalho intermitente e realizou uma nova contrarreforma da Previdência, que aumentou a idade mínima para a aposentadoria e reduziu benefícios. Também desregulamentou as regras ambientais, mediante o afrouxamento da fiscalização e incentivo à mineração em terras indígenas. Para coroar as tragédias bolsonaristas, o Brasil retornou ao Mapa da Fome da ONU. Após perder as eleições, Bolsonaro buscou de todas as formas realizar um golpe de Estado, o que não se consumou porque não conseguiu o apoio dos principais comandantes militares.

Reconfiguração do Estado e explosão das tarifas

A política de privatizações e concessões desenvolvidas pelos diversos governos brasileiros pode ser considerada um projeto político de longo alcance articulado pelo capital financeiro nacional e internacional, com o objetivo de amealhar o patrimônio público, desmontar as bases materiais do Estado e enfraquecer sua capacidade de regulamentação, planejamento e proteção social. As sucessivas ondas de privatização consolidaram uma mudança na forma de ação do Estado brasileiro, que deixou de ser indutor do desenvolvimento e protetor do interesse público para se transformar num Estado mínimo para os/as trabalhadores/as e máximo para o grande capital, cuja função estrutural é assegurar o cumprimento dos contratos privados e a livre circulação de capitais, mesmo que isso significa a destruição da capacidade produtiva nacional.

Ao vender a preços subavaliados os setores estratégicos, o Estado abdica de instrumentos fundamentais para intervir na economia e promover políticas públicas. O que deveria ser realizado pelas empresas estatais, com diretrizes a partir do interesse público, passa a ser determinado pela lógica do mercado, fragilizando-se os mecanismos de fiscalização, de forma a que os grandes conglomerados nacionais e internacionais possam operar sem controle efetivo. Essa perda de capacidade de regulação criou um ambiente fértil para a criação de um novo arcabouço institucional sob o controle do grande capital – as agências reguladoras.

Essas agências, que surgiram com o argumento de que era necessário garantir o equilíbrio entre o interesse público e o funcionamento eficiente das empresas privatizadas, foram capturadas pelos interesses econômicos daqueles que deveriam ser fiscalizados, jamais tendo se cumprido a missão para a qual supostamente teriam sido criadas, como maior eficiência das empresas privatizadas, melhor qualidade dos serviços, redução das tarifas e universalização dos serviços. Na prática sempre foram instrumentos voltados a referenciar as decisões privadas. Por exemplo, após as privatizações pioraram muito os serviços na área de energia elétrica, com apagões frequentes e aumento das tarifas. Nas rodovias, os contratos de concessão permitiram às empresas cobrar pedágios altíssimos sem realizar todos os investimentos prometidos.

A propósito das tarifas, a ausência de regulação efetiva fez com que as empresas concessionárias passassem a praticar reajustes sistemáticos, na maior parte das vezes acima da inflação. Os serviços passaram a ser tratados como mercadorias, acessíveis apenas a quem pode pagar, e a justificativa para as recomposições tarifárias sempre são apresentadas com argumentos “técnicos”, tais como a necessidade de recomposição de custos, as volatilidades cambiais, equilíbrio financeiro, entre outros, mas todas essas desculpas são apenas pretextos para garantir a rentabilidade dos acionistas e fundos de investimentos, sempre ávidos por maior lucratividade no curto prazo. A mercantilização dos serviços aprofunda a desigualdade estrutural da sociedade brasileira e corrói a ideia de que todos devem ter acesso igualitário aos bens públicos, naturalizando o abandono do Estado das questões sociais.

A lógica empresarial predominante passou a ser a redução de custos e a precarização do trabalho, com consequências devastadoras para os/as trabalhadores/as e a população em geral. Um dos principais impactos sociais das privatizações foi o desemprego generalizado, tendo em vista que a passagem das empresas públicas para o controle privado foi acompanhada das chamadas “reestruturações administrativas”, que nada mais são que programas de demissões voluntárias e cortes de pessoal, o que significou a destruição de milhares de postos de trabalho e perdas de direitos. Sob a lógica da chamada eficiência empresarial, os novos proprietários passaram a substituir trabalhadores/as concursados/as, qualificados/as e com estabilidade por terceirizados/as e prestadores/as de serviços, com salários reduzidos, sujeitos à competição e a metas agressivas de produtividade, o que tem levado ao adoecimento mental e aumento dos acidentes de trabalho.

Outro dos efeitos nocivos foi o enfraquecimento do movimento sindical em todas as categorias envolvidas com a privatização. Os/as trabalhadores/as das empresas públicas, em função da estabilidade, historicamente sempre construíram sindicatos fortes, articulados nacionalmente e com papel relevante nas lutas sociais e econômicas do país. Mas as demissões dos/as trabalhadores/as com estabilidade e sua substituição por terceirizados minaram a organização coletiva, porque pulverizaram a filiação sindical, reduziram a capacidade de mobilização e de reivindicação dos trabalhadores e das trabalhadoras.

Em outras palavras, as privatizações transformaram o Brasil num laboratório de experimentação do capital financeiro na sua forma mais predatória, mostrando mais uma vez o poder da ditadura das finanças na periferia do capitalismo.