O pacote do governo e a ganância da oligarquia financeira
Edmilson Costa – doutor em economia pela Unicamp e secretário-geral do PCB
Na saga para cumprir as metas do arcabouço fiscal, o ministério da Fazenda anunciou um pacote de cortes no orçamento de 31,5 bilhões, dos quais R$ 20,7 bilhões serão contingenciados e 10,6 bilhões bloqueados. Bloqueios são suspensões temporárias que podem ser revistas ao longo do ano, enquanto contingenciamentos referem-se a medidas de cortes mais duradouros em função de riscos de não cumprimento das metas fiscais. O pacote também incluía novas regras para o Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF), entre as quais a taxação de 3,5% referente às aplicações feitas por fundos de investimentos brasileiros no exterior. Estes fundos especulativos não pagam IOF nem imposto de renda sobre os recursos que investem lá fora. No pacote também constava a taxação sobre operações de crédito e câmbio para pessoas físicas e jurídicas, além de tributação para aplicações de pessoas físicas e jurídicas acima de R$ 50 mil em previdência privada, além de aumento da alíquota sobre compras internacionais realizadas com cartões de crédito. Com as medidas do pacote, o governo esperava arrecadar R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 2026.
Acontece que cerca de seis horas após a publicação, o governo recuou de maneira atabalhoada na taxação desses fundos especulativos, justificando que a medida foi revista após “ouvir o país” e depois de “alertas” de agentes do mercado no sentido de que a taxação poderia passar uma imagem que não era a desejada pelo Ministério. “Não temos nenhum problema em corrigir a rota, desde que o rumo traçado pelo governo seja mantido, de reforçar o arcabouço fiscal, cumprir as metas para a saúde financeira do Brasil. Vamos continuar abertos ao diálogo, sem nenhum tipo de problema, e contamos com a colaboração dos parceiros tradicionais … para atingir o objetivo declarado, que é o que mais importa”, disse o ministro em entrevista coletiva. Nada mais revelador da submissão à lógica dos especuladores, especialmente por um governo eleito por um partido que se diz dos trabalhadores. “Ouvir o país”, é bom que se diga, significa se submeter aos banqueiros e rentistas, a quem o ministro chama de “parceiros tradicionais”. O que aconteceu realmente para o recuo do governo?
Tão logo foi anunciada a medida, a oligarquia financeira começou a movimentar o lobby pela revogação do pacote. Articularam com os seus escribas nos meios de comunicação e anunciaram uma pesquisa com dezenas de investidores institucionais na qual alardeavam que a medida iria levar o dólar às alturas, que haveria queda nas bolsas, que o pacote seria visto como um controle de capital e, indiretamente, do câmbio. Anunciaram ainda que receberam de investidores e aplicadores no mercado financeiro mais de 1.500 tuítes com críticas ao pacote econômico, todos dizendo que a cobrança do IOF passaria uma mensagem muito negativa do governo tanto internamente quanto no exterior, o que poderia comprometer eventuais investimentos estrangeiros no Brasil. Imediatamente, o Ministério da Fazendo revogou a taxação dos 3,5% dos fundos de investimentos no exterior, demonstrando mais uma vez que a oligarquia financeira é quem realmente manda neste governo e que os especuladores continuarão sem pagar impostos.
Em seguida, várias confederações empresariais, como a Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Confederação Nacional da Indústria (CNI), Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), Confederação Nacional de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Complementar e Capitalização (Cnseg), Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) e Associação Brasileira de Companhias Abertas (Abrasca), lançaram um manifesto contra a cobrança do IOF e conclamaram o Congresso a anular o decreto que instituiu a tributação. Posteriormente, tanto o presidente da Câmara dos Deputados quanto o presidente do Senado anunciaram que o Congresso era contra o aumento dos impostos e exigiram do governo alternativas, citando explicitamente a reforma administrativa, corte de benefícios e austeridade fiscal.
O que mais impressiona nesse manifesto é o fato de que, ao lado das entidades de representação do sistema financeiro, assinam o documento setores da produção, como a indústria, o agronegócio, ou áreas que dependem da renda da população, como o comércio e serviços. Esse manifesto demonstra três coisas importantes: a) as classes dominantes estão unidas contra os trabalhadores e a população em geral, ao exigir austeridade fiscal e corte de gastos; b) estão viciadas na especulação financeira e buscam de todas as formas ganhar o máximo com a financeirização da economia sem pagar impostos; c) demonstra aparentemente certa contradição, uma vez que austeridade fiscal e corte dos gastos reduzem a renda das famílias e a demanda agregada, ou seja, as pessoas irão comprar menos bens e serviços, o que termina impactando negativamente na performance desses setores da atividade econômica. Mas isso se explica, pois os empresários da indústria, do comércio e dos serviços terão seus ganhos preservados com a compra de títulos da dívida pública e o pagamento de juros estratosféricos.
No dia 11 de junho, o governo editou uma medida provisória buscando compensar o recuo do IOF, na qual institui a tributação de 5% sobre as Letras de Crédito do Agronegócio e Letras de Crédito Imobiliário, unifica em 17,5% a alíquota de imposto de renda para aplicações financeiras, incluindo as criptomoedas, passa de 9% para 15% a Contribuição Sobre o Lucro Líquido das Fintechs e de 12% para 18% a tributação sobre as plataformas de apostas, a chamadas bets, entre outras. Mas a MP do governo faz o conjunto de concessões à ortodoxia, como a inserção das despesas do Programa Pé de Meia no piso constitucional da Educação, muda as regras para o benefício por incapacidade temporária de trabalho, bem como ajustes nos critérios de acesso ao seguro defeso, vinculando seus repasses à dotação orçamentária. Mesmo com as concessões governamentais, as classes dominantes não estão satisfeitas e seus representantes no Congresso e entidades representativas já se pronunciaram contra as novas medidas, prometendo rejeitá-las. Vale a pena refletir um pouco sobre a ganância dos milionários brasileiros.
A reação coordenada dos rentistas significa que os especuladores não admitem abrir mão de um centímetro sequer de seus privilégios ficais e não hesitam em apelar para o terrorismo financeiro buscando bloquear qualquer tentativa, por mínima que seja, de taxar seus ganhos parasitários. Funcionam como uma espécie de poder paralelo, mediante a ação de seus agentes nos meios de comunicação e no Banco Central, tanto bloqueando qualquer tentativa de redistribuição fiscal, quanto chantageando o governo para adotar as diretrizes ortodoxas. Eles percebem que estamos diante de um governo fraco e que as proclamações de “reconstrução do país” e “governar para os mais pobres” não é pra valer: trata-se apenas de retórica, uma cortina de fumaça para seguir com sua política de subserviência ao capital. Por isso a ousadia cada vez maior dos especuladores no aprofundamento da política neoliberal: já estão reivindicando o ataque ao salário mínimo, à previdência e aos pisos constitucionais da saúde e educação.
Em outras palavras, a atitude dessa oligarquia, composta por banqueiros, grandes empresários, latifundiários e rentistas em geral, revela o caráter predatório das classes dominantes brasileiras, que buscam um Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para a burguesia e defendem o mercado quando se refere ao proletariado e um Estado forte quando se trata de garantir os seus lucros. Querem cortar gastos para os mais pobres, mas defendem regimes especiais sem taxação para suas aplicações em fundos especiais e offshores; são contra a tributação de lucros, dividendos e grandes fortunas e se opõem à isenção do imposto de renda para quem ganha até cinco salários mínimos, além de qualquer medida de justiça fiscal. Seu objetivo é continuar saqueando o fundo público às custas da precarização das condições de vida da imensa maioria da população, para continuar mantendo esse modelo perverso de concentração de renda.
Rendição à lógica da austeridade
Na verdade, o pacote de contingenciamento do governo Lula representa mais um erro estratégico e uma rendição à lógica da austeridade fiscal, ao mesmo tempo em que joga por terra todo o discurso de reconstrução nacional, retomada do investimento público, fortalecimento das políticas sociais e compromisso com os trabalhadores. Esse pacote reforça a armadilha da ortodoxia, porque vai cortar investimentos e reduzir os recursos para o custeio de áreas sociais, como educação, saúde, ciência e tecnologia, atua contra o crescimento econômico e esvazia a capacidade do Estado de coordenar a política econômica ou a reindustrialização que as autoridades do Planalto sempre anunciam. Nesse cenário, o governo abandona mais uma vez as veleidades desenvolvimentistas que tanto proclama para continuar com a política de teto dos gastos reconfigurado, disfarçado de arcabouço fiscal, déficit fiscal zero e metas artificiais de inflação, o que vai resultar em baixo crescimento econômico e brutal transferência de renda para a oligarquia financeira.
Para se ter uma ideia de como os rentistas se apropriam do fundo público no Brasil basta dizer que somente nos últimos seis meses, de outubro de 2024 a março de 2025, os pagamentos de juros corresponderam a R$ 499,1 bilhões de reais, numa média de R$ 83,1 bilhões mensais (Tabela 1). Portanto, parece até piada de mau gosto o governo fazer um pacote de ajuste de R$ 30 bilhões quando somente os juros mensais da dívida pública superam em quase três vezes o montante do pacote governamental. Na verdade, o ajuste das contas públicas deveria ser feito em relação às obscenas taxas de juros definidas pelo Banco Central e ao pagamento dos serviços da dívida, porque esses mecanismos significam a pilhagem social permanente do fundo público e a acumulação parasitária por parte de uma minoria de rentistas, ou melhor, dos grandes bancos, instituições financeiras nacionais e internacionais, gestores de fundos de investimentos e pessoas físicas de alta renda. Enquanto isso, trabalhadores, trabalhadoras e o povo pobre tornam-se refém desses ajustes fiscais perversos que comprimem os investimentos, os gastos sociais e levam o país à recessão.
Tabela 1. Juros nominais mensais e juros acumulados nos últimos 12 meses (R$ bilhões). Out. 2024/Mar. 2025 | ||||
Meses | Acumulado | |||
Out./24 | 116,6 | 869,3 | ||
Nov./24 | 92,5 | 918,2 | ||
Dez./24 | 96,1 | 950,4 | ||
Jan./25 | 40,4 | 918,2 | ||
Fev./25 | 78,3 | 924,0 | ||
Mar./25 | 75,2 | 935,0 | ||
Fonte: Banco Central – Estatísticas Fiscais |
Ora, se o contingenciamento já era um erro estratégico, o recuo em relação à taxação dos fundos de investimentos no exterior representa mais uma subserviência diante do lobby dos especuladores do mercado financeiro. Isso porque os ricaços brasileiros que vivem de renda, da especulação com derivativos, das aplicações nas bolsas estrangeiras, títulos públicos e privados, moeda estrangeira, entre outros, segundo o Valor Investe, somam mais de 800 mil pessoas e possuem mais de R$ 1,1 trilhão aplicado fora do Brasil. Esses especuladores bilionários, utilizando estruturas financeiras sofisticadas no exterior, escapam da tributação fiscal e continuam ganhando rios de dinheiro sem pagar imposto. E o governo, mesmo ciente dessa situação, renuncia à taxação dos especuladores, enquanto corta investimento do povo trabalhador, preservando os ganhos da elite parasitária. Parece que os senhores do Planalto se encantam com sua própria propaganda e esquecem as dramáticas condições sociais do país, com um desemprego estrutural disfarçado de informalidade ou de lorotas do empreendedorismo, além da perda de popularidade em função da frustração popular.
Capitular ou se fingir de morto são as piores opções nessa conjuntura adversa. A opção de renunciar à luta ideológica contra a extrema-direita (e a terceirizar para o Supremo Tribunal Federal) e abandonar a perspectiva da luta social só agrava as dificuldades do governo e o deixará cada vez mais fraco diante das forças conservadoras. Aliás, o governo vai pagar um enorme preço diante dessa tentativa retórica de conciliar o inconciliável, ou seja, dizer que governa para os pobres, mas na prática opera macroeconomicamente em favor dos ricos. Essa oligarquia brasileira perversa, hereditária de mais de 300 anos de escravidão e viciada na exclusão da classe trabalhadora em relação às decisões econômicas e políticas, não entende outra linguagem a não ser a mobilização popular para conquistar as mudanças que o país necessita.
Aliás, não é só o governo quem pagará a conta da crise: a sociedade brasileira, se não se rebelar a tempo diante dessa tragédia social e econômica, será a principal vítima, pela segunda vez, dessa política que já não pode nem ser considerada conciliação de classe, porque na prática é subordinação de classe. Como diria Gramsci, quando o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu, aparecem os monstros. E o monstro dessa vez é a possibilidade da volta da extrema-direita no vácuo da apatia das forças democráticas, progressistas e de esquerda. Nós já vimos esse filme recentemente e não temos o direito de errar novamente. Portanto, é necessário insistir: só as massas mobilizadas serão capazes de reverter essa correlação de forças para virarmos o jogo e mudar o rumo do país na perspectiva dos interesses populares.
A hora é de rebeldia para se evitar nova tragédia!