O regresso do macartismo
Prabhat Patnaik [*]
A atual repressão da administração Trump à liberdade de expressão nos Estados Unidos faz lembrar assustadoramente a década de 1950, quando houve uma caça às bruxas liderada pelo senador Joseph McCarthy, que não só vitimou toda uma geração de artistas e intelectuais sob a acusação de serem comunistas, como também deixou uma marca negativa profunda na vida criativa daquele país durante décadas. As vítimas dessa caça às bruxas incluíram numerosas personalidades notáveis, desde artistas e escritores como Dashiell Hammett, Dalton Trumbo, Bertolt Brecht e Charles Chaplin, a acadêmicos como Lawrence Klein, Richard Goodwin, E. H. Norman, Daniel Thorner, Moses Finlay e Owen Lattimore. Mesmo figuras públicas notáveis como J. Robert Oppenheimer, que dirigiu o Projeto Manhattan para a construção de uma bomba atômica, e Harry Dexter White, que fundou o sistema de Bretton Woods (juntamente com J. M. Keynes do Reino Unido), não foram poupados: foram convidados a comparecer perante uma ou outra das comissões criadas para investigar o comunismo nos EUA. O prejuízo para os EUA com esta caça às bruxas foi imenso. Há mesmo quem sugira que o país se envolveu na Guerra do Vietnã porque os estudos disponíveis sobre o Leste e o Sudeste Asiático foram dizimados pelo macartismo; se estivessem disponíveis, os EUA poderiam ter tirado partido deles e evitado entrar no atoleiro.
A semelhança entre o fenômeno macartista e as ações agora iniciadas por Trump é sentida por muitos; mas foi explicitamente articulada pelo Professor da Universidade de Columbia, Bruce Higgins (MR online, 21 de março). À primeira vista, pode parecer que traçar esse paralelo constitui um grande exagero. Afinal de contas, até agora só houve uma mão-cheia de casos de detenção e deportação; por que ficar tão exaltado com isso e sugerir paralelos com a caça às bruxas macartista? Do mesmo modo, pode se argumentar que os alvos até agora têm sido cidadãos não americanos, que residem no país quer com um visto quer com uma Green Card; isto é certamente diferente do período macartista, em que os cidadãos americanos, e não apenas os “forasteiros”, tinham sido vítimas da caça às bruxas.
Mas dificilmente se pode retirar muito conforto de tais considerações. Trump deixou claro que casos como o de Mahmoud Khalil são apenas o começo; seguir-se-ão ações em milhares de outros casos semelhantes. Mahmoud Khalil, recorde-se, era o estudante de Columbia titular de um Green Card e casado com uma cidadã americana que, por acaso, estava grávida de oito meses. Khalil foi detido e aguarda a deportação sob a acusação de ter ligações com “terroristas” por ter liderado as manifestações de estudantes de Columbia contra o genocídio em Gaza. Do mesmo modo, quando se verificar a deportação em larga escala de titulares de vistos e de Green Card, os cidadãos americanos que participarem em protestos contra genocídios do tipo de Gaza e também contra essas deportações, dificilmente serão poupados a ações punitivas. Também eles serão vitimados por apoiarem atividades “terroristas” estrangeiras. Em suma, é impossível, uma vez iniciado o processo de vitimização de uma parte da população por exprimir livremente as suas opiniões, sentirmo-nos seguros de que esse processo se limitará apenas a essa parte e não afetará o resto da população. É, portanto, justificado sentirmos que estamos no início de uma caça às bruxas ao estilo de McCarthy.
De fato, a caça às bruxas que se aproxima é ainda pior, em muitos aspectos, do que a lançada pelo Senador Joe McCarthy. Em primeiro lugar, a deportação de Mahmoud Khalil está sendo ordenada ao abrigo de uma disposição da Lei de Imigração e Nacionalidade dos Estados Unidos de 1952, que afirma que qualquer “estrangeiro, cuja presença ou atividades nos Estados Unidos, o secretário de Estado tenha motivos razoáveis para acreditar, teria consequências adversas potencialmente graves para a política externa dos Estados Unidos, é deportável”. A invocação desta cláusula significa, de fato, que nenhum estrangeiro, quer seja titular de um visto ou de uma Green Card, pode criticar a política externa dos Estados Unidos. No caso de Khalil, por exemplo, a acusação contra ele, para além de ser próximo de uma organização “terrorista”, o Hamas (para a qual não foi apresentada qualquer prova), é de “antissemitismo”, que é uma das caraterísticas que a política externa dos EUA pretende combater em todo o mundo; a sua oposição ao genocídio infligido em Gaza por Israel é classificada como “antissemitismo” e, portanto, como tendo consequências adversas para a política externa dos EUA. Mas uma acusação semelhante pode ser feita contra qualquer “estrangeiro” que critique qualquer aspecto da política externa dos EUA; e mesmo os cidadãos americanos que “ajudem e sejam cúmplices” desses “estrangeiros”, participando em manifestações contra a política externa dos EUA, um eufemismo para atos do imperialismo estadunidense em outras partes do mundo, podem sem dúvida ser também acusados.
Por outras palavras, o âmbito da atual caça às bruxas é ainda mais vasto do que o do senador Joe McCarthy. Não é apenas dirigida contra um segmento da população, nomeadamente os comunistas e os seus simpatizantes, como era o caso do macartismo; pelo contrário, é dirigida contra qualquer pessoa que ouse criticar a política externa dos EUA e, acima de tudo, a política dos EUA de controlar a Ásia Ocidental através de um colonato israelense agressivo e expansionista.
Em segundo lugar, o macartismo foi desencadeado no contexto da Guerra Fria. A própria Guerra Fria fazia parte da luta do imperialismo contra o prestígio e o apelo que a União Soviética havia adquirido durante a Segunda Guerra Mundial; criou o fantasma da agressão soviética, embora a União Soviética, devastada pela guerra, não tivesse quaisquer intenções agressivas. Em suma, o macartismo fazia parte de uma estratégia imperialista muito específica num contexto muito específico; mas a atual ofensiva de Trump surge numa situação em que o imperialismo não pode apresentar qualquer ameaça específica de qualquer potência em particular. Destina-se simplesmente a encobrir a agressividade do imperialismo num mundo em que nenhuma potência específica pode ser citada como uma ameaça, mas em que um grande número de países, empurrados para a parede pela crise infligida pela ordem neoliberal, procuram algum alívio aos acordos econômicos que lhes são impostos. O contexto para o ataque de Trump é a falência moral do imperialismo estadunidense e não a estatura moral subitamente reforçada de qualquer potência não imperialista em particular.
Em terceiro lugar, o fato de o ataque de Trump à liberdade de expressão ter um alvo mais vasto do que o do macartismo é confirmado pela forma totalmente anticonstitucional e peremptória como a sua administração está ditando às universidades dos EUA a forma como devem conduzir os seus assuntos e a reter fundos federais no caso de se oporem. Assim, foram retidos 450 milhões de dólares de fundos federais à Universidade de Columbia [NR] se esta não capitulasse à exigência da administração Trump de proceder a uma série de alterações no seu funcionamento; e a universidade terá alegadamente cedido agora a estas exigências, o que truncará grandemente a liberdade acadêmica. Condicionar o acesso das universidades a fundos federais à sua gestão a contento do governo é tanto uma violação da autonomia da universidade como do seu ambiente acadêmico. Obriga as universidades a tornarem-se órgãos do governo e não espaços de pensamento criativo e crítico. Trata-se de uma inovação inédita em comparação com o macartismo.
Por outras palavras, estamos assistindo a uma investida neofascista contra o pensamento que é ainda mais vasta do que a investida macartista da década de 1950. É claro que, mesmo no resto dos países imperialistas que não têm regimes neofascistas no poder, o pensamento crítico e a liberdade de expressão também estão sendo atacados. Na Europa, por exemplo, não só se assiste a uma ameaça totalmente infundada de expansionismo russo (quando a realidade é o expansionismo da OTAN até as fronteiras da Rússia e até o estacionamento de tropas alemãs na Lituânia), mas também a um apoio total à ação israelense em Gaza. De fato, qualquer crítica à ação israelense está sendo alcunhada de antissemitismo; e reuniões para discutir o genocídio em Gaza foram canceladas na Alemanha por ordens oficiais.
Assim, os países imperialistas, quer sejam governados por regimes neofascistas, quer por regimes burgueses liberais, estão atacando fortemente a liberdade de expressão e tornando-se mais repressivos; os regimes neofascistas são, evidentemente, comparativamente mais repressivos, mas os regimes burgueses liberais não ficam muito atrás. Além disso, isto acontece num contexto em que os países imperialistas também aumentam as despesas militares. A Alemanha acaba de aprovar uma alteração constitucional que eleva o limite máximo do seu déficit orçamental, de modo a poder gastar mais em armamento. Também a França e o Reino Unido estão ampliando as suas despesas militares em relação ao seu produto interno bruto. Em suma, o capitalismo metropolitano está entrando numa fase de militarismo repressivo como não se via desde a Segunda Guerra Mundial, o que é um mau presságio para os povos do mundo.
30/Março/2025
[NR] Ver In complying with Trump’s demands to crack down on free speech, Columbia confesses that money, not education, is its goal
Ver também:
The dark, McCarthyist history of deporting activists
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2025/0330_pd/return-mccarthyism
Este artigo encontra-se em resistir.info