O ovo do pato: notas sobre ideologia no capitalismo decadente
BLOG DA BOITEMPO
Por Mauro Luis Iasi
“Quanto mais a forma normal de intercâmbio da sociedade e com isso, as condições da classe dominante desenvolvem sua oposição às forças produtivas progressistas, quanto mais cresce, em decorrência, a discórdia na própria classe dominante e entre ela e a classe dominada, é claro que tanto mais inautêntica se torna a consciência (…) e descamba para meras frases de efeito idealizadoras, para ilusão consciente, para hipocrisia proposital”
— Marx e Engels, A ideologia alemã
O presidente dos EUA, Donald Tramp, que na tradução literal seria uma espécie de pato vagabundo, anunciou aos quatro ventos que estava assinando “uma ordem executiva histórica instituindo tarifas recíprocas a países de todo o mundo”, e explica: “se eles fazem conosco, vamos fazer com eles”. Modestamente, como é próprio do personagem, completa: “Este é um dos dias mais importantes, na minha opinião, na história dos Estados Unidos”.
Enquanto a cabeleira amarelo-milho esvoaça ao vento do Norte, as bolsas despencam em todo o mundo, os investidores entram em pânico, o dólar cai, o presidente segura uma tabela com dados falsos e um operário empresta seu apoio usando um boné que espera que a América seja grande novamente, fabricado na China.
Sardenberg diz que todos os grandes economistas — o que certamente não inclui o jornalista — estão perplexos. Na rádio que só toca notícias, faz um desabafo lacrimejante, dizendo que o tarifaço de Trump encerra um longo período de crescimento econômico, diminuição da pobreza e no qual os investimentos dos EUA ajudaram os países pobres no seu desenvolvimento.
Podia ser um episódio dos Simpsons, podia ser uma briga no parquinho onde um garoto mimado empurra outro e fala para mãe: foi ele que começou. Mas é o presidente da maior economia capitalista do mundo, sentado em um arsenal nuclear com 5111 ogivas operacionais e ativas e quase oitocentas bases militares pelo mundo afora que quer roubar a Groenlândia do amiguinho dinamarquês.
Jeffrey Sachs, o professor de economia de Harvard e Columbia, que assessorou o FMI, o Banco Mundial e a OCDE e ajudou a Polônia, Eslovênia e Rússia a abandonarem o socialismo e a construírem a economia de mercado, desconcertado declara que não sabe se é “apenas retórica, ignorância ou confusão”, mas que sabe que é “uma política econômica incrivelmente ruim”.
Vamos tentar ajudar Sachs, como ele ajudou a Bolívia de Paz Estenssoro a conhecer as maravilhas do neoliberalismo e das privatizações. O modo de produção capitalista, que esse senhor se empenhou tanto em propagar pelo mundo como alternativa ao perigoso comunismo, só sobrevive através de ciclos de crescimento e crise, nos quais o processo de valorização levanta barreiras contra si mesmo. Na raiz da crise do capital está o processo contínuo de valorização que leva à superacumulação e à alteração inevitável da composição orgânica do capital, cada vez mais proporcionalmente concentrada no capital constante do que no capital variável, o que resulta a longo prazo na queda das taxas de lucro.
Para quem tem dificuldade de entender esses termos, eu só posso aconselhar que larguem seus gurus das redes sociais e comecem a ler O capital (na Boitempo tem). Bom, o capital tenta compensar a queda nas taxas de lucro através de contratendências, tais como o aumento da exploração do trabalho, a redução de salários, o aumento da superpopulação relativa, o barateamento das matérias primas e insumos, o aumento de mercados e a especulação financeira (tá lá no Marx, no livro III). Além disso, o imperialismo (Lênin, 2021) e a guerra tornaram-se no capitalismo desenvolvido um meio eficaz de queimar capitais, assim como o complexo industrial-militar (Mészáros, 2002).
Acontece que, como nos ensinou Mandel (1990), o desfecho da crise de superacumulação e superprodução não tem como ser racional. Mesmo diante da crise, que exige a queima de capitais, os empresários tendem a investir jogando gasolina no incêndio. Neste momento, a crise estoura na forma de quebra de empresas, desemprego, ociosidade da capacidade instalada e queima descontrolada até criar as condições de novos investimentos com taxas de lucro aceitáveis.
O imperialismo (novamente, segundo Lênin) funciona como uma grande contratendência porque exporta capitais e os reproduz de forma ampliada em suas áreas de influência, partilhando e repartilhando o mundo através da guerra. Ocorre, no entanto, que as nações sedes do imperialismo assumem, cada vez mais, um caráter parasitário, isto é, vivem do valor produzido pelo capital mundializado e do capital financeiro. O capital não tem pátria, mas as nações imperialistas continuam sendo nações, com seu povo e seu governo, levando ao fato de que o capital pode entrar em contradição com o interesse nacional.
Para o capital alemão, é muito melhor explorar um operário brasileiro na Volkswagen do que um operário alemão. O operário na Alemanha ganha aproximadamente 2.150 euros (R$ 13.388,00 mais ou menos, ou 62 euros por hora), enquanto o brasileiro ganha na mesma empresa cerca de R$ 4.000,00 (cerca de 645 euros ou 1,74 euros por hora).
Quando falamos em balança comercial, as coisas são diferentes, dado que cada vez mais os países imperialistas produzem mercadorias fora de seus territórios nacionais, concorrendo com suas indústrias nacionais. Mais de 90% dos Iphones da Apple são montados na China. Nesse ponto, Jeffrey Sachs tem razão: o problema não é a balança comercial deficitária. O que ele não compreende, e por isso oferece uma saída clássica (cortar gastos do Estado), é que o déficit comercial é compensado em muito pela remessa de mais-valor advindo da superexploração nas áreas de influência do imperialismo e pelo fluxo do capital financeiro.
Mas isso resolve o problema do capital, não dos trabalhadores americanos que perdem seus empregos graças à concorrência de suas próprias empresas transnacionais. O pato vagabundo venceu os democratas no Cinturão da Ferrugem no Meio-Oeste, antes conhecido como cinturão industrial, com a maioria dos votos operários que alimentam o sonho da volta da indústria americana nos moldes do século XX.
Isso não quer dizer, de forma alguma, que Trump virou um nacionalista em defesa dos trabalhadores. Sua política de corte de empregos, de não taxar os ricos financiadores de sua campanha, o endurecimento contra os imigrantes, o desmonte dos serviços públicos, sua pauta moral (ou imoral) mostra bem seu interesse de classe e seu caráter direitista, mas ele precisa de uma base popular e apoio eleitoral, e capturou o descontentamento da classe trabalhadora.
O embate entre o esclarecido professor de Harvard e o pato laranja com cabelo de milho revela outra coisa. O professor racional tem razão: as medidas não vão resolver o problema da indústria americana, provavelmente vão piorar muito a situação, assim como é evidente que Trump mente e manipula, mas essa não é a questão.
A primeira pista para respondê-la está na epígrafe deste texto. A crise tem por efeito aumentar as tensões no interior da própria classe dominante. A discórdia é entre eles. Ocorre que Trump percebeu — melhor do que alguns segmentos da esquerda brasileira — que o apoio popular é um importante fator na correlação de forças.
O segundo fator (para nós, fundamental) diz respeito à ideologia. Marx e Engels nos apontam na mesma epígrafe que a crise que causa discórdia no seio mesmo das classes dominantes revela, também, a perda de correspondência das ideias da classe dominante, sua transformação em meras fórmulas idealizantes, em hipocrisia deliberada. A ideologia que antes apresentava os interesses particulares como se fossem universais perde sua correspondência com o real, e “quanto mais elas são desmentidas pela vida e quanto menos valem para a própria consciência, tanto mais resolutamente são afirmadas, tanto mais hipócrita, moralista e santa se torna a linguagem da sociedade” (Marx e Engels, 2007, p. 285).
Vejamos a questão mais de perto. O esclarecido professor de Harvard não encontra racionalidade na proposta de Trump porque está procurando no lugar errado. Ele está preso à noção weberiana da racionalidade instrumental, segundo a qual um meio é racional quando adequado ao fim proposto. Esquece-se de que há outros tipos ideais de racionalidade, como a tradicional, a afetiva, a ação orientada por valores etc. O pai da sociologia compreensiva alerta que estes tipos ideais, num contexto histórico concreto, se misturam, de forma que uma ação racional quanto aos meios e fins pode se combinar com valores ou com o afeto.
Analisando exatamente os EUA, Weber (2001) irá dizer que para ele a política americana era a combinação da manipulação de meios irracionais para fins racionalmente calculados, antecipando assim, sem o saber, o processo de ascensão do nazismo em sua própria terra.
Trump não tem um plano para salvar a economia dos EUA, nem para melhorar a vida dos trabalhadores. Ele quer salvar o capital (dos séculos XIX e do início do século XX) contra o capital (do século XXI). Ele quer, “na minha opinião”, como disse no discurso do dia da libertação, ele — o indivíduo extraordinário, o líder supremo. E, portanto, precisa de recursos de poder que não encontra na outra face do capital que já se tornou uma imensa e internacional máquina de acumulação e parasitismo. Então ele busca o povo. Como o antigo Rei Sol, ele proclama: o Capital sou eu.
Voltemos à frase de Marx e Engels para entender o porquê do pato vagabundo não poder se comunicar por meio de ideias, valores e representações que sejam claramente significantes de significados precisamente determinados, isto é, ideias correspondentes. Ora, pelo simples fato de que isso revelaria a crueza brutal de seus interesses. Para isso, existe a ideologia, que oculta as determinações, inverte, naturaliza, justifica o existente escondendo os interesses particulares como se fossem universais. Ocorre que a força da ideologia reside na sua correspondência com o real. Quando a burguesia afirmou-se como classe universal e proclamou as palavras que constituem sua ideologia — igualdade, liberdade, indivíduo, mercado, propriedade, livre concorrência — esses valores correspondiam à materialidade de uma primeira fase do modo de produção capitalista e da ascensão da burguesia. Com o desenvolvimento do capitalismo, principalmente nos momentos de sua crise, esses valores se desidratam de sua substância, vão se tornando meras frases idealizantes e, pouco a pouco, pura hipocrisia e cinismo.
Assim, não é possível pensar a fala e a ação do pato vagabundo nos termos de uma racionalidade de meios e fins. Os valores da ideologia burguesa decadente são explicitamente falsos e devem, portanto, ser reafirmados como sagrados (mobilizados pela fé), manipulando afetos instintivos (irracionais), sem a preocupação de esconder sua falsidade. São, por isso, hipócritas e cínicos (Žižek, 2018).
Alguém ainda acredita que a sociedade capitalista é a sociedade da igualdade? Alguém ainda acredita na ideia positivista de progresso? Em que escaninho empoeirado foi parar a ideia de fraternidade? As bombas que caem em Gaza são para defender a liberdade e a democracia? No dia da libertação, quem foi liberto?
Enquanto isso, o assecla nazifascista, Elon Musk, nos explica que a empatia não é um sentimento humano eticamente aceitável, mas a fraqueza da sociedade ocidental, uma vez que é manipulada pela esquerda para forçar o Estado a cercear a livre iniciativa dos ricos e poderosos contra a natureza do mercado. Para ele, portanto, a empatia é inimiga da liberdade.
Não devemos considerar as falas desses senhores como piada, bobagens folclóricas ou pura ignorância e confusão. Elas são a ideologia do capitalismo no seu máximo desenvolvimento e, portanto, a ideologia de sua crise. É a forma adequada ao conteúdo, que no caso do capitalismo plenamente desenvolvido não é a civilização, mas a barbárie, ou, como dizia Benjamin, a civilização na forma de barbárie.
Quando a ideologia na sua forma de hipocrisia, que expressa a substância do capitalismo em crise, encontra ressonância na classe trabalhadora e captura o ressentimento da classe com o sistema capitalista, geram-se as condições para que brote o fascismo. O ovo do pato chocou.
Referências:
LÊNIN, V. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021.
MÉSZÁROS. I. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
MANDEL, A crise do capital. Campinas, SP. Unicamp/Ensaio, 1990.
MARX, K. O capital. Volumes I, II e III. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
WEBER, M. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2001.
ZIZEK, S. Lacrimae Rerum: ensaios sobre o cinema moderno. São Paulo: Boitempo, 2018.