O Vale do Silício e a guerra
TRUMP 2.0: A OLIGARQUIA TECNOLÓGICA COMO PONTA DE LANÇA
Bappa Sinha (*)
ODIARIO.INFO
Um recente artigo no New York Times, que procurava formular um cenário de desresponsabilização dos EUA face à derrota militar da OTAN na Ucrânia, teve efeito adverso: apenas veio confirmar que se trata efetivamente de uma guerra de agressão dos EUA contra a Rússia com os ucranianos como intermediários e principal carne para canhão. Este artigo aponta o papel dos gigantes tecnológicos nesse conflito, do Starlink de Elon Musk à Palantir Peter Thiel. E um fato é essencial: os oligarcas seus proprietários estão ocupando lugares de destaque na administração Trump.
O Trump 2.0 teve um início tumultuado. Embora Trump tenha sido sempre errático e quase deliberadamente imprevisível, o âmbito e a magnitude das mudanças que estão sendo introduzidas nesta administração são qualitativamente diferentes. Está sendo feita uma ambiciosa tentativa de reestruturar o Estado e as forças armadas dos EUA, bem como as suas relações com o resto do mundo. Todos os dias são anunciadas novas tarifas, mesmo contra os seus parceiros mais próximos, como o Canadá e o México, e depois retiradas, são tomadas decisões controversas em matéria de política externa e o governo dos EUA é radicalmente reestruturado.
Embora as decisões erráticas de Trump sejam frequentemente atribuídas à sua personalidade, uma estratégia mais ampla parece estar subjacente a estes movimentos: uma parte da burguesia estadunidense chegou à conclusão de que o domínio total dos EUA, com controle sobre as instituições globais, o comércio internacional e as guerras intermináveis, já não é viável. Em vez disso, estão pressionando para reavivar a declinante força econômica, tecnológica e militar dos EUA, enquanto se contentam com uma guerra fria com a China.
A oligarquia tecnológica (os grandes monopólios tecnológicos e os seus proprietários multimilionários) está na linha de frente e no centro deste ambicioso esforço. Os monopólios tecnológicos têm desempenhado um papel cada vez mais importante na economia dos EUA e estão agora começando a afirmar o seu poder político. O “quem é quem” da tecnologia, incluindo Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Sundar Pichai, Tim Cook e Elon Musk, ocuparam lugares na primeira fila na tomada de posse de Trump, demonstrando a sua importância. Multimilionários da tecnologia como Elon Musk, Peter Thiel, David Sacks e Marc Andreessen são figuras centrais na administração Trump, assumindo papéis-chave e posições de consultoria.
Tanto com Trump como com Biden, Washington procurou travar o boom tecnológico da China através de sanções estritas, em especial no setor da fabricação de semicondutores. A administração Biden aprovou a Lei CHIPS e Ciência, que atribui 52 bilhões de dólares em incentivos para trazer a produção de semicondutores de volta aos EUA. No entanto, a China fez avanços significativos na concepção e fabrico de chips, minando o impacto pretendido destas políticas. Os avanços da China na produção de celulares da Huawei com chips avançados de 7 nm e DeepSeek, um modelo de IA competitivo com os principais modelos dos EUA, têm sido impressionantes. Estes são “momentos Sputnik” para a indústria tecnológica dos EUA. Entretanto, os esforços para deslocalizar a produção de chips para o mercado interno sofreram reveses.
A administração Trump parece agora favorecer uma política econômica mais agressiva, utilizando tarifas e pressões empresariais para forçar as empresas estrangeiras – como a TSMC de Taiwan, o fabricante de chips mais avançado do mundo – a instalar fábricas dentro das fronteiras dos EUA. A convicção subjacente é a de que a coerção econômica, no lugar de subsídios, irá restaurar a força da indústria transformadora dos EUA. Para além dos direitos aduaneiros, existe um profundo empenho na desregulamentação, especialmente no que diz respeito à segurança da IA e às preocupações ambientais. Acredita-se que os espetaculares avanços na IA, apoiados por investimentos maciços em hardware para centros de dados, energia barata e o enfraquecimento das capacidades tecnológicas da China através de sanções, permitirão aos EUA alargar a sua vantagem tecnológica e manter a sua posição de liderança econômica.
A guerra da Ucrânia também reformulou a estratégia militar dos EUA. As expectativas iniciais de que a Rússia entraria em colapso sob as sanções ocidentais revelaram-se infundadas e Moscou provou ser mais resistente, tanto econômica como militarmente. Além disso, a Rússia e a China demonstraram possuir uma tecnologia militar superior em áreas como os mísseis hipersônicos, sistemas de defesa aérea altamente sofisticados, aviões de combate de sexta geração e a guerra autônoma com drones. A demonstração russa do mais avançado míssil Oreshkin, que se estima ser capaz de atingir Mach 10 ou 12.348 km/h, e a demonstração chinesa dos seus caças furtivos J36 de sexta geração funcionaram como mais um conjunto de “momentos Sputnik” para os EUA no domínio militar. Até os rebeldes Houthi do Iêmen conseguiram perturbar a navegação no Mar Vermelho, apesar da presença das forças navais dos EUA.
A guerra na Ucrânia mostrou que a dependência das forças armadas dos EUA de dispendiosas “peças-chave”, como porta-aviões, submarinos nucleares, bombardeiros B-52, tanques Abrams e sistemas de mísseis antiaéreos Patriot, tem sido largamente ineficaz. A guerra moderna evoluiu para a utilização de enxames de drones baratos que podem sobrepor-se a armas que são, em geral, muitíssimo mais caras. Os sistemas de nova geração provaram ser muito mais eficazes. Os sistemas Starlink de Elon Musk mantiveram as comunicações de comando e controle do exército ucraniano funcionando, apesar de grande parte do sistema de telecomunicações terrestre ter sido destruído pelos russos. A empresa de Peter Thiel, Palantir, tem desempenhado um papel fundamental no esforço de guerra da Ucrânia. O software da Palantir, que utiliza a inteligência artificial para analisar imagens de satélite, dados de fonte aberta, imagens de drones e relatórios terrestres para apresentar opções militares aos comandantes, é responsável pela maioria dos ataques com armas, incluindo artilharia e mísseis antitanque, pela Ucrânia.
Um elemento-chave da estratégia de Trump é aproveitar a experiência do Silicon Valley, com destacados multimilionários tecnológicos como Elon Musk e Peter Thiel e as suas empresas a desempenharem um papel direto no desenvolvimento de armas futuristas baseadas em IA e exércitos de drones. Prevê-se que estes sejam fundamentais para as futuras guerras dos EUA.
Em nível nacional, Trump lançou um ataque total à burocracia federal. Está tentando a eliminação de departamentos-chave, incluindo o Departamento de Educação. Elon Musk foi encarregado de dirigir o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), que já implementou cortes profundos em várias agências. Esta medida é impulsionada pela ideologia ultraliberal dos aliados de Trump na indústria tecnológica, que defendem uma intervenção mínima do governo nos assuntos econômicos.
Um recém-criado fundo soberano de criptomoeda sublinha ainda mais a tendência liberal da administração no que diz respeito às políticas econômicas internas. Vários multimilionários do círculo de Trump, como Peter Thiel, Elon Musk, David Sacks e Marc Andreessen, que detêm investimentos significativos em criptomoedas, irão se beneficiar deste fundo.
O objetivo geral do segundo mandato de Trump parece ser uma rápida e radical tentativa de reavivar a força dos EUA face aos crescentes desafios econômicos e militares. A abordagem da administração sugere uma transição de uma ordem mundial unipolar para uma nova Guerra Fria, com a China como principal rival. As iniciativas de paz com a Rússia podem também ser motivadas por um esforço para afastar a Rússia da sua relação de “amizade sem limites” com o gigante asiático.
No entanto, as políticas de Trump estão repletas de contradições e de pontos cegos ideológicos. Sem primeiro construir a capacidade industrial e o know-how para gerir uma indústria moderna, esvaziada por décadas de externalização, o uso agressivo de tarifas na esperança de recuperar a autossuficiência econômica pode sair pela culatra. Pode também alienar os aliados, enfraquecendo a posição dos EUA na cena mundial. Em última análise, o segundo mandato de Trump representa uma experiência radical e altamente imprevisível de reformulação do poder dos EUA, que acarreta riscos profundos e um futuro incerto para o império estadunidense.
Bappa Sinha é um veterano tecnólogo interessado na relação entre a tecnologia, a sociedade e a política.
Fonte: https://www.elviejotopo.com/topoexpress/silicon-valley-y-la-guerra/