Brasil 2023: o que fazer?
Por Milton Pinheiro – Membro do Comitê Central do PCB e do conselho editorial do jornal O Momento
JORNAL O MOMENTO – PCB DA BAHIA
“E enquanto nos preparamos para ir ao encontro dos demais, para recomeçar a guerra, o céu negro, carregado de tempestades, levanta-se docemente sobre nossas cabeças. Entre duas massas de nuvens tenebrosas, aparece tranquilo um raio de luz e esta fímbria tão estreita, tão pobre, com aparência tão pesada, mesmo assim nos traz a prova que o sol existe”. ( Henri Barbusse )
A conjuntura brasileira na pré-eleição definiu balizas importantes para a gerencialização da vida política e institucional, ao mesmo tempo que estabeleceu significativas amarras para o funcionamento do Estado. Essas pontes para o atraso foram aceitas de forma confortável pelo candidato da social-democracia tardia e seu complexo campo de apoio político, do Psol (mesmo com protestos internos) aos círculos reacionários que têm como estratégia recompor o novo bloco do poder. São pontes que ligam, do ponto de vista dos interesses populares, para a imprevisibilidade.
O processo eleitoral, mesmo com todas as dificuldades para enfrentar a mentira como instrumento de poder, abriu comportas que ficaram nítidas para se compreender o que é a política brasileira. Temos um confronto central entre a extrema direita, com presença de massas, versus uma ampla articulação democrático-liberal, cujo principal aspecto de sustentação é uma fraseologia de corte moral. Integrado a esses campos, temos na primeira conformação a extrema direita golpista, massas de delinquentes com conotação terrorista, frações da burguesia interna consorciada ao imperialismo (agronegócio em especial), o partido fardado, segmentos da mídia corporativa, o balcão de negócios do parlamento e forças policiais autonomizadas no processo institucional. Na vaga articulação democrático-liberal, agrupa-se a social-democracia tardia, o neodesenvolvimentismo político herdeiro da segunda internacional (com seu viés anacrônico), frações burguesas sedentas por espaço em um novo bloco no poder, oportunistas de esquerda e sua visão entrista e as OS (organizações sociais) da política.
O resultado eleitoral derrotou o governo de extrema direita, mesmo ele tendo uma base delinquente ativa e de massas. O governo de destruição do Estado, negacionista, obscurantista e ideologicamente antissocial não teve seu pleito renovado. Contudo, diante de tamanha destruição, como pôde ainda ter a imensa votação que obteve? Esse fenômeno precisa ser analisado de forma totalizante, ou seja, levando em consideração as diversas variantes do processo.
A vitória, mais uma vez, da coligação burgo-petista demonstra que a bifurcação da política brasileira e do complexo da luta de classes está longe de colocar na contradição principal a disputa entre capital e trabalho. A centralidade da crise brasileira ainda é operada pela disputa entre a extrema direita versus a vaga articulação democrático-liberal. Ainda será necessário muito trabalho de base e organização política para o campo proletário e popular entrar em cena com papel protagonista.
No entanto, existe a possibilidade de que uma fissura seja projetada para o futuro, contribuindo ainda mais para prejudicar os interesses da classe trabalhadora. Ou seja, se o governo que agora tomou posse claudicar do ponto de vista das questões sociais, as massas rumarão à direita. As pistas da história nos informam que onde os governos da conciliação social-democrata passam, logo em seguida a direita se apresenta como opção de salvação nacional. A disputa para confirmação desse cenário está aberta …
A composição do governo burgo-petista, embora contenha ilhas de representação social importantes, é majoritariamente formado por representações oligarcas, mercado, forças políticas que representam o balcão de negócios do parlamento, o agronegócio, frações da burguesia interna, caserna golpista e intocável, e até representação da escória miliciana da baixada fluminense. Qual será o eixo central de ação desse governo diante de tantas amarras?
A história recente nos permite avaliar (golpe de 2016) que a conciliação burgo-petista, em sendo rearticulada, é um forte instrumento que poderá nos mover para uma nova derrota agora de caráter estratégico. Defender as liberdades democráticas, combater as desigualdades, defender o serviço público, garantir investimentos para o SUS, para a educação básica e a universidade pública são tão importantes quanto restabelecer uma pauta política e ideológica de caráter progressista e popular. Neste sentido, seria fundamental criar o instrumento das assembleias populares para estabelecer consultas públicas sobre temas relevantes. Essa forma política também seria extremamente importante para mobilizar a classe trabalhadora e enfrentar a correlação de forças no parlamento. Ao lado das assembleias populares, poderiam ser criados os referendos revogatórios e/ou proclamatórios.
Esses instrumentos da democracia direta seriam necessários, também, para enfrentar a presença da extrema direita que se estabeleceu em todos os espaços da vida social. Não será com o silêncio obsequioso do poder de Estado, até aqui, que o Brasil superará e derrotará as ações dessas hordas delinquentes e de caráter fascista que estão presentes na vida política nacional. Não deve haver trégua diante desse cenário, até porque, para variar, estamos em guerra.
O que significaram os atos do dia 12 de dezembro de 2022? Sem dúvida foram ações organizadas de caráter terrorista que tinham por objetivo levantar os quartéis para uma empreitada de exceção na vida política brasileira. Está nítido que existe um concreto vínculo entre a extrema direita delinquente e as lideranças dos quartéis. A leniência com que essas hordas fascistas foram tratadas nas portas dos quartéis, em espaço da chamada área de segurança nacional, é uma comprovação da articulação dos comandantes militares (com sua formação arcaica do ponto de vista político e ideológico) e esses agrupamentos neofascistas.
Diante desse quadro, o que representam hoje as forças armadas? É urgente e necessária a construção de um projeto de Estado que refunde as forças armadas; não basta apenas tirar da sua vida cotidiana o perfil bolsonarista, é preciso torná-las um aparato profissional de defesa nacional e soberania, transformando-as efetivamente em instituição democrática. Trata-se de uma frente de batalha bastante complexa e difícil, mas a sociedade brasileira tem que exigir que essa tarefa seja cumprida. Afinal, até aqui, as forças armadas têm sido “braço forte e mão amiga” da burguesia interna e do imperialismo.
A partir desse cenário político complexo e perigoso, não interessa à classe trabalhadora um governo de união nacional cujo eixo central da sua ação seja a conciliação de classes, que tem como elemento político para movimentar seus interesses o discurso de combate às desigualdades, contudo, com práticas que distribuem migalhas para o conjunto da população e mantêm o essencial do Estado operando na lógica de “comitê executivo da burguesia”. A disputa deve ser aberta, mas não é uma disputa por dentro do governo, é um enfrentamento na sociedade, a partir da luta de classes.
Os impasses que se seguem criaram dificuldades manifestadas na cena política (abertas ou veladas) que devem ser afrontadas pela capacidade da esquerda revolucionária em constituir um instrumento de frente única de caráter proletário e popular. Essa frente única, dirigida pelo bloco revolucionário do proletariado, deve surgir do trabalho de base e da organização da classe trabalhadora. Esses dois vetores podem representar um passo à frente na luta de classes ao ponto de modificar a contradição central da política, ou seja, trabalho versus capital. A batalha se dará nas ruas, nas fábricas, nas escolas, nas universidades, nas periferias e bairros populares, mas se dará também na batalha das ideias e na frente cultural.
Precisamos criar a partir desse projeto o programa que possa movimentar a classe trabalhadora com toda sua riqueza e perfil (gênero, raça e orientação sexual) para as novas jornadas de lutas. A conciliação de classes e seu governo de união nacional não interessam ao projeto de futuro da nossa classe.
Publicado originalmente em: https://omomento.org/editorial-brasil-2023-o-que-fazer/