A luta contra o Marco Temporal
Foto: Fábio Rodrigues / Pozzebom – Agência Brasil
A resistência dos povos originários na Bahia
Por David Costa Rehem
Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia
Desde agosto deste ano o debate sobre o chamado Marco Temporal voltou à tona. A grande mídia tem noticiado sobre o assunto desde que a política genocida de Bolsonaro contra os povos originários ganhou visibilidade internacional, ainda no início da sua gestão. O chamado Marco Temporal é a análise pelo Supremo Tribunal Federal, instância máxima do judiciário brasileiro, do Recurso Extraordinário 1.017.365. Esso recurso se refere a um pedido de reintegração de posse realizado pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e contra o povo Xokleng, reivindicando a área que se refere ao Território Indígena (TI) Ibirama-Lakanõ de pertencimento do povo citado.
A retomada do tema pelo STF é de grande relevância para a luta dos povos originários, tendo em vista que a decisão final interferirá na abordagem a ser realizada pelos poderes públicos quanto ao reconhecimento dos territórios ocupados pelos 305 povos indígenas em nosso país. Segundo o último senso do IBGE, realizado em 2010, esses povos somam 896.917 pessoas, sendo 572.083 moradores de áreas rurais, incluindo aí as TI’s. Os ruralistas defendem que a leitura do artigo 231 – que trata sobre a definição e natureza dos territórios indígenas – se limite a reconhecer os que já estavam ocupados até o dia da promulgação da Carta Magna, no dia 05 de outubro de 1988. Tal argumento desconsidera a histórica violência de latifundiários no roubo de áreas ocupadas por diversos povos e que massacra mulheres, homens, idosos e até crianças, como é o caso do povo Xokleng.
“Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão”, relatou Ireno Pinheiro sobre as expedições que realizava no interior de Santa Catarina até os anos 1930 para exterminar indígenas a mando de autoridades locais.
Pinheiro era um ‘bugreiro’, como eram conhecidos no Sul do Brasil milicianos contratados para dizimar indígenas (ou ‘bugres’, termo racista que vigorava na região naquela época). O relato está no livro Os Índios Xokleng – Memória Visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos.
Aqui na Bahia, em 1951, duas pessoas apareceram na aldeia Barra Velha, localizada na região do Monte Pascoal. Chegaram se identificando como demarcadores do território, estimulando os conflitos entre pataxós e não indígenas. Esses conflitos resultaram num ataque das forças policiais da região. Os pataxós tiveram que fugir de seus territórios, negar sua ancestralidade e cultura por medo de perseguições e da repressão estatal. Não demorou muito para que grileiros invadissem tais territórios e decretassem posse de suas terras.
Tempo presente
Logo após o chamado “Fogo de 51” acontecer, os pataxós reiniciaram a retomada de posse das terras da Barra Velha. Durante os anos de 1980 e 1990 diversas outras lutas garantiram o retorno dos pataxós em diáspora, resultando na reorganização de territórios com a Aldeia Velha, Coroa Vermelha e Novos Guerreiros. Em 26 de abril do ano corrente, os caciques do território indígena Pataxó Ponta Grande declararam Estado de Emergência em razão do corte de água potável e luz, efetuado por causa da decisão monocrática do desembargador Carlos Brandão a favor de um Clube de Aviação, que reivindica parte desse território. Curiosamente, a FUNAI – que deveria agir em acordo com as demandas dos povos originários – tomou partido contrário à população. No dia 27 de agosto policiais federais levaram uma intimação para as lideranças. Após grande mobilização e resistência do povo Pataxó, no dia 02 de setembro, o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1) suspende a reintegração de posse. Notem que a ação contrária aos pataxós ocorria uma grande mobilização nacional dos povos originários de todo o Brasil, que entre os dias 22 e 28 de agosto realizavam o acampamento Luta Pela Vida na capital federal. Logo após o acampamento também foi realizada a 2.ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas entre os dias 7 e 11 de setembro, com participação de cerca de 4 mil mulheres de mais 150 povos, dois eventos vitoriosos, em especial pela demonstração da grande capacidade de mobilização e pressão dos indígenas em nosso país.
Outras lutas acontecem nas terras baianas. Uma das mais acirradas acontece no sul da Bahia e atinge diretamente o povo tupinambá da região. No dia 29 de abril o povo tupinambá e entidades indigenistas realizaram denúncia contra a FUNAI e seu presidente por desvio de função constitucional. A Fundação é denunciada por se negar a acompanhar as ordens de despejos desejados na região.
Em 4 de maio, o Conselho Missionário Indígena nos informou:
Em documentos oficiais, o presidente da Funai diz que a TI Tupinambá de Olivença é um “pretenso território indígena”. Marcelo Xavier baseou a decisão na Procuradoria Federal Especializada, que atua junto ao órgão indigenista, e em despacho comunicou o abandono de interesse da União na defesa do povo Tupinambá em ação judicial de reintegração de posse de seu território tradicional.
O conflito dos Tupinambás no sul do estado tem se destacado pela força e resistência de tal povo que possui no cacique Babau sua maior liderança. A violência de latifundiários, seus jagunços e aliados da política local salta aos olhos. Entre os anos de 2013 e 2014 esses setores ligados ao retrocesso reagiram à retomada de terras ocupadas de forma irregular por eles na cidade de Olivença. Entre as ações dos latifundiários e de seus lacaios estão tiros contra um ônibus escolar que levava crianças indígenas para a escola e o ataque ao veículo do Instituto Federal da Bahia (IFBA), no qual se encontravam 3 professores da instituição e o motorista. Mas a luta continua, rumo à vitória do povo tupinambá.
O Estado brasileiro tem deixado em evidência que seu papel não é o de representar os interesses de seus representados. O Estado burguês nega aos povos originários o direito às suas terras, tradições e língua. O discurso do presidente e de seus aliados, incluindo as indicações para instituições estatais, que deveriam representar os povos originários e tradicionais, reforça a ideia de que o poder público constituído hoje navega no sentido de impor um processo “civilizatório” baseado na garantia de interesses estranhos aos interesses nacionais e em favor de interesses privativos – degradando o que é público, de destruição e exploração dos recursos naturais e na violação de direitos humanos, trabalhistas e previdenciários.