O Lula místico
Por H. Suricatto
Na foto, outdoor do comitê “Lula 2022” em Porto Alegre/RS – foto de H. Suricatto
I
Antônio Gramsci afirmou que a crise é fruto das contradições do passado não totalmente superado com o futuro que não vingou por completo. A arena de encontro do passado com o futuro se chama presente, e nos eventos imediatos da atual conjuntura que fazem dias parecerem anos por tantos eventos de relevância primordial a ocorrer em sequência é que nos debruçamos para analisar a ausência real de superação de um passado que insiste em se afirmar como um futuro, mas que desde a sua origem está tão envelhecido quanto os princípios que o guiaram. Mas como o passado insiste em se apresentar como o novo sempre? Como o obsoleto permanece atraente? A resposta é simples, ele se vale do esquecimento.
O esquecimento é um dos melhores instrumentos de dominação política já criados. Se, na luta de classes, os nossos inimigos empregam o esquecimento coletivo através de seus instrumentos de dominação ao ignorar greves, paralisações, protestos ou manipular a opinião pública com cobertura parcial e monopólio da interpretação dos fatos, os oportunistas do movimento operário, para se consolidar em seus postos de controle da classe que supostamente dirigem e promoverem sua linha rebaixada, reivindicam uma completa estagnação, se conformam com as perspectivas criadas por eles mesmos e dizem aos quatro cantos que isso é o possível a ser feito. Desde os mais descarados aos mais manipuladores.
Para os militantes revolucionários, isso nunca foi tão gritante como em 2021, com a reentrada de Lula na cena política como principal oponente de Bolsonaro. Neste atual ciclo de manifestações contra o governo Bolsonaro/Mourão, a estratégia petista em torno de seu líder máximo foi exposta à luz do dia para centena de milhares de manifestantes Brasil afora, para milhões de trabalhadores, e os revolucionários já devem ter sacado o seu emprego para fins que não entram em concordância com a real necessidade do movimento gestado até aqui.
II
Quando, em março, escrevi sobre a decisão de Fachin de anular as sentenças da operação Lava a Jato determinadas por Moro, não vi aquilo como uma mera ação legalista de um juiz, mas um cálculo político feito por alguns setores da burguesia, que – ao contrário da maioria das análises feitas pelas forças revolucionárias na época – lançava Lula de volta ao tabuleiro eleitoral como a última tentativa de estagnar Bolsonaro. Ou há entre nós aqueles que acham que as decisões dos juízes do STF são isentas de qualquer posição política? Não à toa, o efeito Lula foi imediato, tanto em seu discurso no Sindicato dos metalúrgicos do ABC quanto na memorável entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo, esse ex-militante da Libelu e autor do Livro O Pais dos Petralhas (sic). Bolsonaro teve uns lapsos de estadista sério e regular por semanas, ao sentir o fungar de Lula no cangote.
Mas um é útil ao outro, e foi bem perceptível isso neste ano de 2021. Lula não perdeu tempo depois de sair da prisão e logo após a segunda onda da Covid diminuir ou se tornar suportável mais de 1500 mortes diárias. Suas articulações com o G7 da CPI da Covid, seu encontro com José Sarney, esse oligarca nonagenário a transformar o Maranhão em seu feudo; ACM neto, herdeiro do nefasto avô Antônio Carlos Magalhães, um perfeito exemplo de coronelismo contemporâneo na Bahia; FHC, o ex-presidente sociólogo que escancarou as porteiras do neoliberalismo em nosso país; Renan Calheiros, cuja atuação na CPI da Covid fez muita gente de esquerda esquecer do seu belo currículo de corrupto e de suas falcatruas em Alagoas; a sondagem à bancada evangélica e a outros políticos centristas. Lula tem capital político e habilidade o suficiente para oferecer a toda essa turma algo que Bolsonaro não consegue oferecer de forma nenhuma: a estabilidade de suas governanças e mandatos. O establishment da política institucional brasileira, o famoso Centrão, é pragmático, e sabe que Lula não atenta contra as suas bases de influência, como Bolsonaro tentou. Muitos desses partidos centristas viram a faceta antipopular de muitos de seus parlamentares se escancararem diante do bolsonarismo, não tanto pela competência de Jair, mas por convicção que ora estava velada nestes parlamentares que odeiam os trabalhadores, odeiam a nossa classe e veem utilidade grande em um sujeito que pode lhe oferecer muito mais em troca da estabilidade política, mesmo que ^às custas de nossa mobilização até aqui. “Ah que falta faz um estadista!”, exclamam muitos!
Qualquer político do executivo de evidência nacional seria bem mais competente no sentido de gestar as atuais crises que o Brasil vive com a sua retórica e capacidade de articulação. Os trabalhadores estariam ferrados de qualquer jeito, mas Bolsonaro deixa muito evidente isso e prejudica até a classe dominante em determinada medida com seus arroubos golpistas e na convicção de agradar a própria base social que gestou para si. Mas a vantagem de Lula sobre os postulantes da fatídica 3ª via – que só existe na cabeça de jornalistas – é o status de ex-presidente da república. Vejam que a retórica adotada por Lula desde que teve seus direitos políticos restabelecidos, com pleno conhecimento da máquina estatal, lhe confere uma segurança maior sobre suas colocações, mesmo que gerem torções de nariz de muitos membros das classes dominantes. E com todo este portfólio, condição de se candidatar à presidência, se apresenta como um chefe de estado, é reconhecido informalmente como chefe de estado até por aqueles que nutrem um ódio autêntico sobre sua figura, que apesar de toda a sua conciliação, de toda a sua cooptação, de toda a subserviência aos interesses do capital, não toleraram o ver na presidência não pelo que é, mas por aquilo que gerou de expectativa em muita gente que acreditou num governo popular. E os militares são a vanguarda deste ódio, por mais que o tenham bajulado.
Isso não é apenas porque ele em vias de fato foi um chefe de Estado, mas que, diante de um Bolsonaro, que de longe foge de qualquer concepção de estadista no seu sentido burguês clássico, gera uma nostalgia de tempos mais estáveis com dirigentes mais competentes para gerir o estado burguês em prol da tão necessária estabilidade. Se, para a militância petista e seus simpatizantes mais ferrenhos, isso já era um fato consumado, com destaque ao pragmático Zé Dirceu, entre boa parte dos formadores de opinião da imprensa, apesar de todo o seu antipetismo (leia-se: antiesquerdismo em geral) praticamente orientam Lula a estar mais ao centro possível, a saber como fundamentar melhor o seu futuro governo, em como a nova conciliação de classes será feita e se ela será o suficiente para paralisar os revolucionários e qualquer outra fonte de instabilidade política gritante existente a atrapalhar os negócios da grande burguesia brasileira. No fundo, a dita 3ª via parece ser a 2ª via lulista, e a possibilidade de uma nova escolha difícil parece ser bem remota, salvo alguma fúria ideológica.
III
E onde fica a esquerda diante de tudo isso? Bem simples. A dar pistas sobre a relação com o restante da esquerda, Lula afirmou que esta que esta venha a seu reboque, não precisa se esforçar par se articular com a esquerda, exceto o PDT e o orgulhoso Ciro Gomes, até aqui, o mais sério candidato da 3ª via. Sobre Ciro, merece uma análise à parte que não compete aos fins dessa brochura.
Um silêncio que não passou despercebido e revelou muito de sua estratégia eleitoral foi a falta de apoio direto ao ato de 29 de Maio de 2021, o primeiro grande ato da campanha “Fora Bolsonaro!”. Os petistas, de início, tentaram usar sua máquina para esvaziar a participação de seus militantes, pois a vanguarda de sua convocação e preparação prévia estava com forças da esquerda classista, mais notadamente o MES/PSOL, o PCR/UP e o PCB. Ao verem que as próprias base de influência direta iriam aos atos com o sem o aval do partido, o PT, aos 45 do segundo tempo em quase todo o Brasil, corre atrás do palanque, sua base adere em peso aos atos, é exposta aos revolucionários presentes, e o líder máximo entra em choque com a projeção de sua imagem, apenas o Lula real dá as caras.
As centrais sindicais são colocadas de forma tímida, mas não com força total, de propósito, em movimento em prol da liderança dos protestos nas mobilizações posteriores aliados às forças democráticas populares. A maioria delas guarda uma relação próxima com Lula mais pela conveniência do restabelecimento do imposto sindical, do que para oferecer um ambiente mais fácil de atuação de suas burocracias depois da reforma trabalhista. Eles sabem que foram usados de bode expiatório para tornar a reforma mais aceitável pelos trabalhadores e, hoje, os sindicatos estão muito enfraquecidos no geral. Essa terra arrasada pode gerar confusão e expor as vacilações de muitas organizações que batiam no peito e se autoproclamavam revolucionárias. De tanta derrota, parece que decidiram se contentar com a miséria do petismo antes de sequer tentar de fato derrubar Bolsonaro antes de 2022. Gabriel Landi expôs bem as vacilações da Resistência/PSOL frente ao PT e como uma organização, saída do PSTU, parece que em ato de completa negação ao seu passado, praticamente deu os fundamentos teóricos ao congresso do PSOL em sua capitulação frente ao PT. Há de ver se os eventos a respeito podem se tornar mais claros nos próximos meses, mas se o PSOL vai cumprir o papel histórico de ser a farsa daquilo que o PT foi a tragédia, será interessante ver uma tendência “revolucionária” cumprir um papel que no PT foi delegado a indivíduos notáveis como Zé Dirceu, Palocci, Gushkein, Delcídio Amaral e outros: de expurgar as alas revolucionárias deste partido para fora do PSOL. Que triste fim veio a cumprir o português!
Para quem não tem memória curta, Bolsonaro era o candidato ideal nos cálculos petistas para enfrentar nas eleições de 2018. Bolsonaro era tão pitoresco que o PT achava conveniente ter ele no segundo turno para que amplos setores da sociedade civil lutassem por Lula, mesmo a contragosto, para derrotar “um mal maior à democracia”. Só esqueceu de combinar isso com a própria burguesia, que queria se livrar do PT para passar suas contrarreformas sem precisar da mediação da conciliação de classes, ao se valer do impeachment da Dilma e se valer da Lava a Jato para jogar Lula na cadeia, o tirar das eleições daquele ano e garantir a continuidade das contrarreformas e da ofensiva geral sobre a nossa classe sem barreiras. Agora, para 2022, e com Bolsonaro no governo e suficientemente desgastado, é conveniente o manter lá e sangrando, deixando o Centrão sugar o máximo dele, até descartá-lo e aderir a Lula no segundo turno, para manter a base do governo. Por isso o impeachment de Bolsonaro nunca foi defendido com força por nenhum dirigente petista, tanto nas ações quanto nas declarações. É citada a defesa do impeachment por parte deles como mera retórica para manutenção de suas bases de influência junto ao movimento operário e popular. Se as pesquisas de opinião insistem em apontar o petista como líder e com grandes chances de vencer logo em primeiro turno, o mito poderá regressar de novo, o Brasil voltar a ser feliz de novo e a paz voltará sobre a terra. Só gostaria de saber, se nestes cálculos do PT, conta o que farão com aquela pilha de militares a ocupar o Planalto, com o desemprego e a informalidade em massa, com a violência, com a pilha de reacionários armados quando voltarem ao governo e o que farão conosco, comunistas revolucionários e com o movimento popular quando fomos sair às ruas para contestar a carestia geral de nossa classe.
IV
Em verdade vos digo, o Lula, mesmo fetichizado, não nos serve, sua estratégia política apenas irá retardar a ofensiva definitiva sobre os trabalhadores e tratando de esmagá-los e encerrar o ciclo político atual iniciado em Junho de 2013. Lula não irá combater o bolsonarismo ainda vigente na sociedade brasileira depois de eleito, irá o utilizar como uma oposição perfeita, aquela que por si só lhe dará legitimidade em sua ampla frente política de alianças com as forças do establishment, conhecidas como o Centrão e mesmo forças da direita tradicional, próximo do que testemunhamos com Nicolás Maduro e sua relação com a direita venezuelana. De forma muito rebaixada, Lula e o PT, em seus cálculos eleitorais, fingem menosprezar a real ameaça bolsonarista e seus apelos golpistas e quem lastreia o seu projeto de poder. O apelo às forças armadas, sobretudo ao exército e às forças policiais não poderá surtir o efeito desejado. A não punição de Pazzuelo há alguns meses tem precedentes históricos no Brasil e serve de aviso.
A mais escancarada conciliação de classes pode gerar uma ira muito maior na sociedade brasileira e em grandes parcelas no nosso proletariado com a esquerda no geral. E o não combate até as últimas consequências ao bolsonarismo e ao acelerado desarme da organização independente de nossa classe podem formar um bolsonarismo mais competente para atingir seus objetivos políticos ou até algo pior possa vir de seus escombros. Qualquer ideia é uma ideia perigosa se você estiver armado para defende-la, por mais estúpida e simples que seja. Vide Trump, apesar do boicote internacional: se mantém em forte evidência política dentro dos EUA.
Esse Lula fetichizado é um fenômeno social da esquerda em busca do eterno resgate de um líder para nos guiar. Em vez de construir as condições políticas e organizativas na classe trabalhadora para que ela mesma possa erguer novamente suas próprias lideranças ou ratificar as lideranças das vanguardas revolucionárias que junto a elas atuam, ela quer voltar ao passado do último grande êxito, dos últimos avanços ditos progressistas. O resgate ao passado é tentador, pois, diferente do futuro, ele já aconteceu e as experiências ditas positivas não são “ilusórias” para o senso comum. Mas são muito limitadas, é grande a fragilidade destas conquistas, ao custo de uma enorme desmobilização histórica das tradições de luta e dos instrumentos de luta de nossa classe (sindicatos, entidades estudantis, movimentos sociais, partidos políticos etc.), que foram desmanchados em poucos decretos e reformas. O PT tinha plena consciência deste custo e se julgava eterno no poder, ao ponto de postergar suas propostas – embora limitadas – das reformas de base a nunca saírem do papel, a enganar muitos, a iludir dezenas de milhões de trabalhadores que um dia acreditaram e se mobilizaram em torno delas e hoje sentem profundo desprezo a esta sigla, muito explorada pelo bolsonarismo.
Para se ter uma ideia do emprego do Lula e do PT fetichizado nos últimos anos, este foi usado em 2014, quando acreditavam na guinada à esquerda de Dilma nas eleições de outubro daquele ano. Foi usado no impeachment de 2016, acreditando numa radicalidade maior do campo democrático popular testemunhada pela última vez durante o mandato de FHC no final dos anos 1990. Na prisão de seu líder máximo em 2018, onde apenas as vanguardas e apoiadores mais fanáticos estavam presentes em sua defesa, cenas muito diferentes vistas no próprio ABC décadas atrás. O esquecimento proposital dos eventos executados pelos petistas e seus satélites cumpre uma lúcida tarefa tática de legitimar sua estratégia de autêntico e único representante dos trabalhadores brasileiros. O resgate de um Lula místico, com sua barba volumosa e seu rosto com visível fadiga sobre a foto de um DOPS em sua primeira prisão a estampar camisetas e campanhas mundo afora, faz crer a milhares de pessoas que esse Lula e o partido que o personifica permanecem o mesmo. Só que, nestes últimos 42 anos, sua metamorfose não foi apenas fruto das contradições colocadas pelos formuladores teóricos deste partido ou de toda uma geração pós ditadura a erguer um Partido dos Trabalhadores livres do fardo do “Socialismo Real” (PCB) e do Trabalhismo (PDT), personificados em Prestes e Brizola respectivamente. Ele teve que se projetar sobre estas figuras, partidos e o movimento que representavam, e da ruína de seus legados políticos o PT avançou. Em suma, ele se ergueu dentro de nosso campo, combatendo a então esquerda hegemônica da época e conquistou para si o posto de principal partido da esquerda brasileira.
Essas novas gerações têm a obrigação de conhecer essa trajetória para não continuar alimentando ilusões fatais em torno do petismo, para expurgar de nossa classe essa linha. Não fazemos isso porque rivalizamos mais contra nossos adversários dentro da esquerda do que os nossos inimigos de classe. Mas para apontar, com toda a autoridade, que sua estratégia e boa parte de suas táticas irão condenar a nossa classe ao esmagamento completo de seus instrumentos de luta, pois sequer a resistência será armada no fortalecimento de nossa organização independente. É assim que se procede numa crítica aos oportunistas e charlatões entre nós. A receita para que as massas trabalhadoras possam superar o petismo não é encontrada em fórmulas prontas, em dogmatismos matemáticos e etapismos disfarçados de tradições supostamente dialéticas ou transposição mecânica de experiências internacionais. É encontrada na competência dos comunistas brasileiros em ousar retomar o espaço que os petistas e todas as forças do campo democrático popular ocupam dentro de nossa classe. O próprio Lula, em uma entrevista, sintetizou o nosso objetivo perante o oportunismo petista: “se querem se impor, terão que correr mais do que eu! Terão que estar mais onipresente nos problemas do povo do que eu!”
Que assim seja…