Terceira via: a distensão do neofascismo brasileiro
Leonardo Silva Andrada
Na trilogia “Os subterrâneos da Liberdade”, Jorge Amado nos oferece um panorama dos primeiros anos do Estado Novo varguista. O primeiro volume, Ásperos Tempos, apresenta setores da burguesia em busca de uma aliança, capaz de cumprir o papel político de se livrar dos comunistas. As disputas internas da burguesia são tratadas como resultado da associação de cada fração com os diferentes imperialismos em conflito no final dos anos 30 – o inglês, o alemão e o estadunidense. Não obstante o aristocratismo altaneiro de sua visão dos integralistas, declaravam admirar suas posições sobre pátria e religião, um verniz para o apreço que sentiam pela disposição dos fascistas nativos para eliminar os comunistas, com o recurso à violência. Todo o cenário desenhado, os interesses em disputa e sua subordinação ao capital externo, o contexto da luta de classes, tanto quanto o cimento ideológico que unifica as frações, apesar das eventuais discrepâncias e desavenças menores, nos recordam a adesão da burguesia e seus canais de mídia à campanha Bolsonaro em 2018. Como uma atualização da França do 18 de Brumário, o interesse comum neutraliza as fricções e induz à formação de um bloco dos proprietários, buscando neutralizar a ação política das forças populares.
A candidatura Bolsonaro ofereceu a forma necessária para galvanizar o fascismo difuso na sociedade brasileira, colocando-o a serviço dos interesses associados ao grande capital. O bolsonarismo tornou-se a forma ideológica atualizada de uma sociedade atravessada pelo favor e o arbítrio, como expressões do poder de classe acima de qualquer convenção jurídica, e da ocupação autocrática do poder de Estado para impedir a passagem das demandas populares. Essa função de amálgama ressalta a relevância de um agente político que enfeixa os variados setores, em distintos níveis: serve para unificação das frações burguesas, e traz a reboque o apoio de setores das classes médias e trabalhadoras, compondo um bloco histórico que atenta contra seus interesses objetivos. O já citado caso de Napoleão III, à frente da coalizão que superou a crise de hegemonia burguesa na França, após as Jornadas de 1848, é o exemplo clássico.
Também é recorrente a menção aos fascismos que florescem na crise que se adensa no entreguerras. Na Espanha essa aliança foi consolidada no decurso da própria guerra civil, provocada pelo golpe de Estado em 1936. Enquanto republicanos levavam suas diferenças ao paroxismo das batalhas de rua na Catalunya, Franco submetia ao controle do partido fascista todas as correntes da direita espanhola, inclusive as facções que décadas antes estiveram em guerra. Para nossa experiência histórica, os militares cumpriram esse papel em 64, e Bolsonaro o reeditou em 2018. Napoleão III, Franco, os militares e Bolsonaro guardam entre si uma característica comum fundamental. Foram o rosto visível de governos autocráticos, exercidos em favor do interesse das frações burguesas que se mantiveram à sombra, permitindo que a expressão ideológica dessas ditaduras pudesse deslocar o elemento da luta de classes, se escorando no universalismo postiço da defesa da ordem, da família e da pátria.
A regularidade com que a burguesia lança mão desse recurso levanta uma questão que devemos enfrentar com empenho consequente: que características tem essa força política, capaz de produzir o amálgama? É ponto passivo que um recurso fundamental é o discurso ideológico, mas essa constatação não encerra a reflexão, é apenas seu ponto de partida. Além de simplesmente reconhecer que se trata de ideologia, é fundamental considerar que elementos compõem esse discurso, e qual a dinâmica de sua disseminação, para chegar aos resultados que alcança. Perplexidade semelhante levou Gramsci a analisar com cuidado a cultura popular, em que consistia sua substância e de que forma suas práticas permitiam a reprodução da ideologia dominante entre os dominados. Recuperar a preocupação do comunista sardo é tarefa que está na ordem do dia, porque diz respeito à atuação das forças revolucionárias, que não têm encontrado as formas de atuação que proporcionem os mesmos resultados da reação. Para o nosso contexto histórico, os blocos que atuaram como representantes das classes trabalhadoras só obtiveram vitórias à medida em que mutilaram seus programas políticos e neutralizaram a força de suas organizações de apoio. Forças que já eram originalmente reformistas e moderadas pasteurizaram sua agenda a ponto de cumprirem papel de administradores resignados do capitalismo subalterno.
A questão se torna emergente, não apenas porque é esse nosso horizonte político permanente, mas porque, diante do impositivo calendário eleitoral, começou a ganhar forma mais uma tentativa de catalisador, para substituir um Bolsonaro que esgotou muito cedo sua capacidade aglutinadora. A rigor o agitador neofascista nunca a teve, mas foi perspicaz para perceber o que deveria prometer, na campanha de 2018, visando convencer o verdadeiro poder que poderia cumprir esse papel. Muito rapidamente ele próprio e seu governo se encarregaram de demonstrar que não têm capacidade para cumprir a agenda empenhada. Acostumado a renovar seu mandato reiteradamente, ludibriando eleitorado desinformado para campanhas de deputado inexpressivo que sempre foi, supôs em sua limitada capacidade mental que teria o mesmo sucesso com os decisores do grande capital. Com mais de 30 anos de vida legislativa, não foi capaz de apreender que os financiadores de campanhas não se comportam da mesma forma que seu público alvo. Ainda de forma incipiente, começa um movimento de unificação das dissidências burguesas, com cautela e ares de teste, mobilizando o sempre disponível discurso da corrupção, para conquistar a adesão despolitizada das demais classes. O mais zeloso estafeta do imperialismo no Brasil contemporâneo, juiz símbolo da Operação Lava Jato, é a nova aposta, e o campo popular deve se precaver contra uma germinação do neofascismo brasileiro com outra coloração, renovado e depurado de suas manifestações mais toscas.
Os comunistas desempenham nesse processo papel destacado, pois sempre cumpriram a tarefa de oferecer a análise acurada com base na situação concreta, denunciando as bases desse projeto, seu horizonte político, e seu impacto para os trabalhadores – sem precisar se alicerçar em ilusões conciliatórias para tanto, nem oferecer uma leitura aleijada da conjuntura, em virtude dos compromissos estabelecidos pela conciliação. A renovação do neofascismo em um novo governo seria, além de uma catástrofe para as condições de trabalho e o padrão de vida dos trabalhadores, um impulso na desarticulação das organizações classistas que lutam por seus direitos, dada a intenção declarada de Sérgio Moro de estabelecer um controle autocrático ainda mais desbragado e bruto. Se agora temos um Bolsonaro que sonha com milícias cumprindo o papel do DOPS na destruição da esquerda, Moro declara abertamente querer tornar o DOPS e os grupos de extermínio, política de Estado com reconhecimento constitucional.
Bolsonaro é mais um giro do parafuso, na porca da modernização conservadora brasileira. Seu discurso recupera a memória da ditadura burgo-militar, porque seu governo replica (em parte) as “realizações” desse regime: emerge de um golpe para desarticular o bloco que incorporava organizações populares; reorienta a política econômica, se livrando dos embaraços de alguma resistência; destrói direitos trabalhistas e promove ataques à constituição, para ajustá-la às demandas do capital (nomeadamente, do capital financeiro, que dependeu da ditadura para construção de sua hegemonia, e com Temer/Bolsonaro recupera posições em um contexto de crise internacional); promove a aceleração da concentração de renda (com a diferença que a ditadura promoveu também o desenvolvimento das forças produtivas); o tema da segurança nacional, que justificava a repressão violenta, readaptado para segurança pública justificando extermínio de classes trabalhadoras; e como epítome, a elaboração ideológica que camufla todo esse projeto de poder de classe, sob consignas moralistas de defesa da família e do cristianismo, para emprestar manto de universalidade e conquistar a adesão das classes médias e trabalhadoras.
Diante desse quadro, a suposta terceira via, que se busca empurrar ao eleitorado, cumpriria o mesmo papel que a “transição democrática” cumpriu ao final da ditadura: continuar dando passagem ao exercício autocrático do poder burguês, sem os embaraços produzidos pelos agentes do arbítrio chamados a executar as tarefas em período critico. O exercício truculento do poder garantiu as altas taxas de acumulação, impondo arrocho salarial e integração submissa ao circuito internacional do capital financeiro, neutralizando qualquer foco de resistência e contestação com repressão violenta, tortura e assassinato. Cumprida essa tarefa, deixa de ser facilitador da acumulação e se torna um obstáculo, e o processo de desmonte institucional da ditadura, controlado pelo alto, se apresenta sob o signo da distensão, que em seguida se torna abertura.
A transição mascarava a elaboração política e institucional que garantiria a continuidade do sentido econômico e social da ditadura por outras vias. A realização desse programa implicava tanto a readequação da política econômica para a realização do interesse do capital, quanto a reelaboração ideológica para marcar o distanciamento e reconquistar a base social perdida, após anos de um governo que objetivamente significava queda da renda do trabalhador e truculência. A conjuntura atual aponta para um cenário semelhante, com um governo cujas bases foram corroídas pelo resultado de reformas agressivas contra o trabalho em favor do capital, com os agravantes da política ambiental de terra arrasada, denúncias de envolvimento com crime organizado, redução do Brasil a espectador da política global, a atuação genocida no trato da pandemia de COVID-19, e claro, o coringa das denúncias de corrupção. A realização do interesse do capital depende, agora, da remoção desses inconvenientes, ainda que de forma alegórica, para seguir seu curso. A terceira via é, em verdade, a mesma via neofascista, depois de passear no shopping.
Temos a lição histórica do elemento ausente no período da “redemocratização”: a força do movimento popular, sindical e de juventude, organizados em um operador político autônomo que organize essa potência e execute seu programa próprio. Uma ausência suprida pela força articulada da burguesia, que contou com apoio de relevantes setores da classe trabalhadora como elementos subalternos. Essa participação a reboque do projeto burguês permitiu o nascimento da Nova República nos moldes em que foi projetada, viabilizando a atualização da via prussiana à brasileira. Uma terceira e última menção à França do Bonaparte sobrinho: não podemos assistir à repetição farsesca da história, louvando acriticamente uma coalizão que se apresenta como agente das forças populares e mobiliza seu potencial em nome da realização de um governo administrador do capital em crise. É preciso envidar todos os esforços na construção de um bloco classista e autônomo, em defesa dos interesses da classe trabalhadora.