A ameaça Bolsonaro: culpa da esquerda?

imagemFernando Savella*

Desde o crescimento de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto alguns meses antes das eleições até a votação que quase lhe rendeu uma eleição em primeiro turno, cresceu também – e dentro do próprio campo de esquerda, diga-se de passagem – a narrativa de que a ascensão da ameaça fascista é um efeito de erros cometidos pela própria esquerda. A saber, especificamente, a desunião das forças de esquerda que falharam em criar uma alternativa à altura de Bolsonaro como resposta à crise econômica e à crise da hegemonia petista; e os protestos de cunho feminista, negro e LGBT que serviriam de caricatura para a criação de um “outro” objeto do ódio crescente da extrema-direita. Notadamente, as manifestações das Mulheres Contra Bolsonaro e seu chamado #EleNão, tidos por setores da esquerda como campanhas “pró-Bolsonaro”.

Essa narrativa não tem fundamentos e pode ser rebatida por uma análise materialista, política e consequente. Primeiramente, se baseia numa concepção genérica e essencialista de “esquerda” como um bloco único de pensamento, indiferenciado no tempo e espaço e que apenas se manifesta em diferentes forças e organizações políticas por incapacidade de indivíduos chegarem a consensos. O que foge a essa concepção é o fato de que o que chamamos de esquerda é na verdade um campo cheio de forças sociais e políticas e organizações com programas e interesses distintos a serem representados.

Ao contrário do que o imaginário conservador e liberal possa sugerir, o PCB, o PSOL e as demais organizações que se organizaram na candidatura de Boulos e Guajajara não possuem os mesmos interesses e, portanto, não possuem os mesmos princípios que permitiriam uma união duradoura na construção de uma alternativa ao fascismo com partidos como o PT ou o PDT. Ao passo em que o PCB e seus aliados tem como eixo principal o envolvimento dos trabalhadores e dos subalternos em geral na organização e formação política de forma a construir um poder exercido pelo povo, o PT tem como eixo principal a sua reprodução institucional utilizando da população trabalhadora como base eleitoral, mantendo uma postura de conciliação com a classe dominante para que se beneficie tanto da força do povo sob a democracia burguesa como das vantagens de estarem inscritos nas instituições burguesas. Com políticas tão diferentes, não há união programática possível e temos que optar por divergências programáticas e convergências táticas, como no caso do apoio do PCB à candidatura de Haddad no segundo turno, e o mesmo vale para outras organizações do campo da esquerda.

Essa narrativa idealista – que coloca no terreno do pensamento e do diálogo fenômenos que pertencem à materialidade da luta de classes – é tecida por aqueles que, sem se organizar politicamente, exigem respostas e atitudes das organizações segundo suas perspectivas que nada têm a ver com a prática política de fato e não são confrontadas com as condições concretas que determinam diretamente as nossas vias de ação, de avanço e de recuo. Também aparece como expressão da ideologia dominante que oculta os conflitos reais da sociedade capitalista e resume suas manifestações enquanto fruto do debate, capacidade e boa vontade política. E é nesse mesmo sentido que se dá a crítica às manifestações #EleNão.

Estimulados pelas flutuações dos resultados das pesquisas eleitorais, tais críticos tratam a ascensão do fascismo e cada uma de suas flutuações como fruto de atos que tornariam a esquerda cada vez mais caricata e ofensiva ao estilo de vida de uma população supostamente conservadora e inflexível, que, em resposta, procuraria o seu exato oposto por meio do voto. O que esse tipo de análise esconde são problemas muito mais sérios e que devem ocupar as nossas preocupações. Não basta transformar uma suposta esquerda caricata “em essência” em uma esquerda que o público conservador possa engolir, mas transformar as condições de vida e das forças políticas na sociedade que ocasionaram a ascensão de Bolsonaro de forma tão massiva.

O discurso de Bolsonaro que encontra respaldo em seus eleitores, mesmo aqueles que flutuam entre as opções, é baseado sim na construção de um “outro” a ser combatido, mas esse “outro” não é a tal esquerda caricata. O discurso de Bolsonaro se opõe, de um lado, à inclusão prática das minorias e à igualdade de gênero, aos programas de inclusão social e à reparação histórica com o povo negro, e, do outro lado, à corrupção no Estado, identificada enquanto típica de uma elite política, cuja principal expressão seria o PT. Em suma, seu discurso se vale do anti-petismo e da exclusão do povo pobre, negro, LGBT e das mulheres. O que torna esse discurso tão efetivo politicamente é justamente que no nosso momento histórico, existe uma pressão muito forte na esfera pública e na prática cotidiana do povo brasileiro, pelo avanço das pautas feministas, LGBTs e do povo negro, da mesma forma que houve neste nosso último período democrático, um grande avanço das pautas imediatas dos trabalhadores e da chegada de sindicalistas ao governo federal.

Não é coincidência alguma que a classe social que mais fortemente apoia Bolsonaro seja a classe média, e mais especificamente, a alta classe média. Essa é a classe ideologicamente mais hostil a todo tipo de ataque à noção de meritocracia (onde as cotas e o assistencialismo se tornam um grande problema) e também à ascensão social da classe trabalhadora e do lumpemproletariado, grupos que servem de subsídio para todo tipo de justificativa e reprodução ideológica da posição ocupada pela classe média. A reprodução da ideologia da classe média depende fundamentalmente da manutenção do racismo, do machismo e do ódio de classe contra os trabalhadores e contra a população de baixa renda e miserável em geral, bem como da defesa individualista e de negação da assistência estatal a todos esses grupos. O Estado, para a classe média, assim, deve se abster da assistência, o que na prática significa privilegiar os já privilegiados. O apoio da classe média a Bolsonaro aparece como uma defesa dos próprios privilégios.

Combinado a isso, o ambiente urbano altamente hostil e o papel do tráfico de drogas no debate sobre segurança pública representado pela imagem de jovens negros armados, os grandes símbolos do crime de acordo com a grande mídia e logo em seguida, com o senso comum, torna esse “outro” a ser combatido justamente o “outro” de sempre. O “outro” são os subalternos, e não a esquerda caricata.

A esquerda caricaturizada por nossas manifestações que de fato confrontam o conservadorismo, o machismo, o racismo e a homofobia, é tomada como “outro” apenas no momento em que a reação adentra a política e procura assim um antagonista entre os agentes políticos. Dizer que essa caricatura, expressão política de fenômenos também econômicos e sociais, é a origem da reação é ignorar o processo muito mais profundo de abalo de ideologias fundamentais para a sustentação da ordem burguesa e dependente no Brasil. Quando determinados setores e figuras da própria esquerda ou da direita, em coro, dizem que quem alçou Bolsonaro foi a esquerda caricata, o que está sendo feito é na verdade a negação de qualquer tipo de avanço contra o conservadorismo. Advoga-se pela manutenção de sustentáculos da ordem burguesa, responsáveis por dezenas de mortes diárias e perpetuação de desigualdades, com a justificativa barata de um respeito tático aos valores morais da classe trabalhadora.

Se há uma forte reação contra os avanços da militância feminista, negra, LGBT, trabalhista ou comunista, a ordem do dia é defender e aprofundar tais avanços, e não renegá-los como causas de um grande mal político. Se há uma forte movimentação desproporcionalmente maior do que os avanços conquistados, buscando aprofundar a desigualdade social e as estruturas ideológicas da dominação, a ordem do dia é buscar avanços mais profundos e programas políticos ainda mais radicais do que os dos últimos quinze anos, prevenindo por meio da organização da classe trabalhadora, o mesmo tipo de fenômeno como o de Bolsonaro. E essa organização não passa pela negação das lutas de mulheres, negros e LGBTs. Passa, sim, por seu fortalecimento.

*Militante da UJC Unicamp