Brasil, Fascismo e a Ala Esquerda do Neoliberalismo 

imagemRob Urie – ODIARIO.INFO

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições para a presidência do Brasil, tornou-se indiscutível a existência de um ressurgimento global da direita radical. O sr. Bolsonaro – ao mesmo tempo politicamente repressivo e culturalmente intolerante – é um representante particularmente hediondo desse movimento. A interrogação que a imprensa burguesa vem colocando é: que doença psicológica se vem manifestando, que poderia persuadir os votantes a eleger semelhante indivíduo?

Um tal enquadramento coloca este ressurgimento como inexplicável, como o resultado de uma falha fundamental da democracia: os eleitores. Daí para baixo é distribuída uma ladainha de falhas. Uma vez que o sr. Bolsonaro é politicamente repressivo e culturalmente intolerante, o eleitorado deve desejar repressão política e intolerância cultural. Uma vez que o sr. Bolsonaro é misógino e homofóbico, os eleitores devem ser misóginos e homofóbicos.

Ausente das explicações para a ascensão do sr. Bolsonaro está que, na última década, o Brasil atravessou a pior recessão econômica da sua história (gráfico abaixo). Catorze milhões de brasileiros em idade ativa, anteriormente empregados, estão agora no desemprego. Tal como sucedeu nos EUA e na Europa periférica desde 2008, a resposta liberal foi a austeridade, enquanto a classe dominante brasileira ficava mais rica e politicamente mais poderosa.

imagem<Gráfico: O Brasil entrou em recessão juntamente com boa parte do resto do mundo em 2008, no quadro da crise financeira global. Reentrou em recessão em 2012 naquilo que veio a ser o maior retrocesso econômico na história do país. A resposta liberal, patrocinada por Wall Street e o FMI, foi uma década de austeridade. Fonte: St. Louis Federal Reserve.

Desde 2014, a dívida pública brasileira subiu de 20% para 75%, proclama um preocupado FMI. Que uma parte significativa dessa subida seja resultado de uma queda do PIB em consequência da austeridade econômica comandada pela Wall Street e pelo FMI não é mencionado. Uma década de austeridade fez com que a Presidente liberal Dilma Rousseff fosse removida do cargo num processo que não pode ser designado senão como um putsch de Wall Street. Talvez Bolsonaro venha a dizer a Wall Street em que lugar (não) meter os seus empréstimos.

De volta aos EUA, toda a gente sabe que a liberalização da finança e do comércio nos anos 90 resultou de cálculo político. Que esta liberalização tenha sido e seja patrocinada por ambos os partidos dominantes sugere que talvez tal liberalização tenha servido certos interesses econômicos. Não importa que esses interesses tenham obtido o que queriam e no processo tenham rebentado com a economia. Se os problemas econômicos resultam de cálculos políticos, a solução é política – eleger dirigentes melhores. Se eles são guiados por interesses econômicos, a solução é mudar a forma como as relações econômicas se organizam.

Entre 1928 e 1932 a produção industrial alemã caiu 58%. Em 1933, seis milhões de alemães anteriormente empregados mendigavam nas ruas e vasculhavam o lixo à procura de coisas para vender. A resposta liberal (Partido Socialista) foram meias medidas e austeridade. Dentro do quadro liberal, a Depressão era um problema político que seria encarado no plano da política. A acomodação centrista definia o quadro existente. Adolf Hitler foi nomeado Chanceler da Alemanha em 1933, no fundo do poço da Grande Depressão.

No Brasil do início-meados da década de 2000, Luís Inácio Lula da Silva, mais conhecido como Lula, implementou um programa de esquerda que retirou da pobreza vinte milhões de brasileiros. A economia brasileira teve uma breve recuperação após o crash de Wall Street em 2008, antes que a dívida pública fosse usada para forçar a implementação da austeridade. Dilma Rousseff capitulou, e o Brasil reentrou na recessão. Cercado pela austeridade comandada pelo FMI e por Wall Street, qualquer governo liberal eleito viria a ter o mesmo destino que Rousseff.

Na Itália dos anos 20, o pagamento das dívidas de guerra da 1ª Guerra Mundial conduziu a austeridade e recessão que precedeu a ascensão do chefe fascista Benito Mussolini. Na Alemanha, o pagamento das indenizações de guerra e o pagamento de empréstimos industriais limitou a capacidade do governo de Weimar de dar resposta à Grande Depressão. Governos liberais que facilitaram a financeirização de economias industriais nos anos 20 acabaram como cobradores de dívidas na crise capitalista que se seguiu.

Desde 2008, a estrutura fiscal da UE (União Europeia) combinada com relações comerciais profundamente desequilibradas conduziu a uma década de austeridade, recessão e depressão na periferia europeia. Nos EUA, por alturas de 2009, Wall Street pressionava por austeridade e cortes na Segurança Social e nos serviços de saúde (Medicare) como necessários à estabilidade fiscal. As consequências de quatro décadas de políticas comerciais financeirizadas neoliberais não eram de nenhum modo distribuídas de forma igual. As relações de classe internas e externas ficavam evidentes através de períodos de alta estreitamente distribuídos seguidos por períodos de quebra largamente distribuídos.

Com o presumível objetivo partilhado de pôr fim à ameaça do fascismo

As premissas ideológicas por detrás da lógica que assumem os fascistas com explicação do fascismo emergem do liberalismo. O termo é aqui tomado no sentido descritivo. O liberalismo procede de posições ontológicas específicas. No interior deste enquadramento temporal, um pouco de lógica social: se os fascistas existiam já, por que não existia já fascismo? A questão da opção entre combater fascistas e combater o fascismo depende da resposta a essa pergunta. O ponto de vista essencial é que são as características intrínsecas dos fascistas que fazem deles fascistas. É esta a base do racismo científico. E está implícita na teoria fascista da raça.

A teoria de um homem forte que explora pessoas que têm uma predisposição no sentido do fascismo é essencial no sentido de que a receptividade é intrínseca, i.e., resulta da psicologia, da genética, etc. O comentário liberal-de-esquerda dos últimos anos tem tendido no sentido do ponto de vista essencialista – que os fascistas nascem ou são de outro modo predispostos no sentido do fascismo. Não é tomado em consideração que não-fascistas são igualmente determinados neste quadro. Se “deploráveis” fossem gerados desta forma, quatro décadas de neoliberalismo são absolvidas.

O problema da analogia, a questão do que é o fascismo e de como se relaciona o fascismo do séc. XX com o do presente não pode ter resposta no quadro liberal. A ascensão e queda da direita radical global tem sido episódica. Tem estado historicamente ligada ao desenvolvimento do capitalismo global num modelo centro-periferia de poder econômico assimétrico. A finança a partir do centro facilita a expansão econômica até a crise financeira interromper o processo. Fica para os governos periféricos a tarefa de gerir o pagamento da dívida com economias em colapso.

Globalmente, a dívida forçou a convergência de políticas entre partidos políticos de diferentes ideologias. Partidos europeus de centro-esquerda têm avançado com a austeridade mesmo quando a ideologia sugeriria o oposto. Em 2015, os autonomeados marxistas do Syriza grego capitularam perante as reclamações de austeridade e privatização dos seus credores, encabeçados pela Alemanha. Mesmo Lenin negociou (em nome da Rússia) com credores de Wall Street nos meses seguintes à Revolução de Outubro. Num quadro político, a solução a partir de baixo é eleger dirigentes e partidos cuja ação corresponda à sua retórica.

O problema prático em fazer isto é o poder dos credores. Aos devedores que rejeitam as dívidas são fechados os mercados de capitais. O poder de criar moeda que seja aceita em pagamento é um privilégio dos países centrais, que sucede serem também credores. A expansão capitalista cria interdependências que produzem carências imediatas e profundas se o serviço da dívida é interrompido. A dívida é uma arma cujos efeitos podem atingir um grupo enquanto a obrigação do pagamento recai sobre outro. A posição dos EUA ficou expressa quando o FMI, com conhecimento de causa, fez empréstimos não pagáveis à Ucrânia para apoiar o golpe ali patrocinado pelos EUA em 2015.

A racialização fascista tem analogia com as relações capitalistas de classe existentes. O estatuto da imigração, da raça e do gênero definem uma taxonomia social de exploração econômica. A raça foi introduzida há décadas na expressão anglo-americana da escravatura a fim de naturalizar a exploração dos negros. A desigualdade de gênero exprime a evolução do trabalho não-pago para trabalho-pago para as mulheres no Ocidente capitalista. Afirmar que estas discriminações são causa de exploração trata a sequência temporal ao contrário. Estas eram/são grupos sociais exploráveis antes de o seu estatuto especial ser criado.

Não se pretende com isto dizer que as relações de classe capitalistas configuram uma explicação completa para a racialização fascista. Mas a premissa ontológica que “congela,” e desse modo reifica a racialização é fundamental ao capitalismo. Isto relaciona-se com o ponto argumentado adiante de que os educados burgueses alemães, sob a forma de cientistas e  engenheiros nazis que foram trazidos para os EUA após a 2ª Guerra Mundial, achavam a racialização nazi plausível através do que foi durante muito tempo adiantado como uma forma de entendimento antitético. Dito de outro modo, não foi apenas a ralé que considerou plausíveis caricaturas raciais grotescas. A pergunta que se coloca é por quê? A propaganda foi desenvolvida e refinada por Edward Bernays na década de 1910 para ajudar a administração Wilson a vender a 1ª Guerra Mundial a um público cético. Tem sido utilizada pelo governo dos EUA e pela publicidade capitalista desde então. A ideia era integrar a psicologia com palavras e imagens de modo a levar as pessoas a agir de acordo com as vontades e desejos daqueles ao serviço de quem era elaborada. O quadro operacional da propaganda é instrumental para a utilização das pessoas para atingir objetivos em cuja concepção não intervieram de forma nenhuma. A perspectiva política é ditatorial, benevolente ou outra. O governo norte-americano tem desdeentão sempre utilizado a propaganda. Métodos semelhantes foram utilizados pelos fascistas italianos e alemães para subir ao poder.

A propaganda comercial tornou-se ubíqua nos EUA. Empresas de publicidade contratam psicólogos para elaborar campanhas, sem qualquer consideração pelo fato de a coação psicológica eliminar do capitalismo a liberdade de escolha. A distinção entre propaganda política e comercial reside apenas no objetivo, não no método. A sua utilização por Woodrow Wilson é instrutiva: existia um amplo, e com forte afirmação pública, movimento antiguerra que tinha razões legítimas para se opor à entrada dos EUA na 1ª Guerra Mundial. O objetivo de Bernays e de Wilson era de sufocar a oposição política.

Após a 2ª Guerra Mundial, os EUA trouxeram 1.600 cientistas e engenheiros nazistas (e as suas famílias) para os Estados Unidos para trabalharem no Departamento de Defesa e na indústria norte-americana, através de um programa designado Operation Paperclip. Muitos eram nazistas dedicados e entusiastas. Foi referido que alguns eram genuínos criminosos de guerra. Em contraste com a asserção liberal/neoliberal de que o nazismo era uma irracionalidade política, os cientistas nazistas encaixaram como luvas na produção militar norte-americana. Não existia qualquer contradição aparente entre ser nazista e ser cientista.

O problema não reside apenas em que muitos empenhados nazistas eram cientistas. Foram a Ciência e a Tecnologia que criaram a máquina de guerra nazista. A Ciência e a Tecnologia estiveram inteiramente integradas na criação e na gestão dos campos de concentração nazistas. A Ciência e a Tecnologia constituíam o nó funcional do Nazismo. E os cientistas e engenheiros da Operation Paperclip deram destacada contribuição para a dominação militar dos EUA no pós-guerra.

Existia uma tensão dimensional entre os mitos românticos de um passado glorioso e antigo e a tarefa burguesa de fazer avançar a industrialização e a modernidade. A análise liberal e neoliberal tem-se focado nesta mitologia enquanto forma irracional de raciocinar. O que está ausente é que o Nazismo não poderia ter-se movido para além das fronteiras alemãs se não tivesse disposto da base da ciência e tecnologia burguesa necessária ao poder industrial. Isto integra o projeto mais amplo nas premissas ontológicas e administrativas do liberalismo.

Este fato está indubitavelmente desconcertando os teóricos da “diferença.” Se Bolsonaro pode impor a austeridade mantendo uma paz injusta, Wall Street e o FMI sorrirão e solicitarão um acréscimo da presença dos negócios dos EUA, que já estão cercando o Brasil, sabendo que consumidores cativos em combinação com direitos de propriedade garantidos pela força e uma força de trabalho manejável significam lucros. Onde estavam os liberais quando a Wall Street que Barack Obama salvou estava pressionando os povos do Brasil, Espanha, Grécia e Portugal a pagarem dívidas assumidas pelos oligarcas? O liberalismo é o elo entre o capitalismo e o fascismo, não a sua antítese.

Tendo há muito abandonado Marx, a Esquerda Norte-Americana anda perdida na lógica temporal do liberalismo. A forma de combater os fascistas é acabar com a ameaça do fascismo. Isso significa combater Wall Street e as grandes instituições do capitalismo ocidental.

Brazil, Fascism and the Left Wing of Neoliberalism