O sujeito oculto: ao vencedor as batatas
Uma pergunta assombra os cérebros inquietos que procuram compreender o cenário que se abre com a eleição de Bolsonaro: como isso foi possível?
Por Mauro Luis Iasi.
Blog da Boitempo
Uma pergunta assombra os cérebros inquietos que procuram compreender o cenário que se abre com a eleição de Bolsonaro: como isso foi possível? É compreensível, uma vez que essas pessoas se pautam pela razão e o bom senso e imaginam que os acontecimentos se definem por uma certa razoabilidade. Infelizmente, o que a história nos comprova é que na luta de classes, como na guerra, a primeira vítima é a razão.
Em um importante documentário de 2003, dirigido por Errol Morris, chamado Sob a névoa da guerra, o ex-Secretário de Defesa dos EUA, McNamara, afirma exatamente isso: “a racionalidade não nos salvará”. É evidente que qualquer pessoa sensata, diante das alternativas apresentadas, não escolheria alguém que revelasse o despreparo, a barbárie explícita e a evidente idiotia do candidato em questão. Mas não se trata de escolhas movidas pela razão e, por mais que doa constatar, não se trata de pessoas sensatas.
Neste ponto, a busca por respostas se refugia na noção de manipulação. Isto é, estaríamos diante de pessoas sensatas, mas que estariam sendo manipuladas por uma eficiente enxurrada de mentiras, eufemisticamente denominadas fake news. Ciro Gomes parece apontar na direção dessa interpretação ao afirmar em entrevista recente que não pode acreditar que quase 60% o eleitorado seja fascista. Tendo a concordar, mas a pergunta persiste: então porque foram receptivos à proposta do fascismo?
Outros procuram consolo em um raciocínio matemático pouco convincente. O eleitorado estaria dividido em três partes: a primeira votou no candidato da extrema direita (39% ou 57 milhões), a segunda em Haddad (32% ou 47 milhões) e uma terceira formada pelas abstenções, votos brancos e nulos (29% ou 42 milhões). Por este raciocínio, a maioria não teria votado em Bolsonaro, isto é, 61% ou 89 milhões), querendo com isso acreditar que a maioria não o apoia.
Creio que esse argumento é falho por alguns motivos. Primeiro porque insiste que a maioria sempre tende ao bom senso, o que não é verdade de forma alguma. Rousseau acreditava nisso, mas ninguém leva muito a sério essa esperança. Segundo porque esse argumento agrupa coisas de substâncias distintas (abstenções, brancos e nulos) como se fossem votos contrários à extrema direita, e não creio que seja verdade.
São expressões de quem não votou e só isso. Pessoas não votam por muitos e diferentes motivos, desde ao possível erro de cadastramento, casualidades fortuitas até o desencanto com as eleições e críticas variadas ao sistema. Caso desprezemos os acidentes, ainda assim esse desencanto é combustível para a posição política expressa na candidatura de Bolsonaro e para aqueles que ainda defendem alternativas à esquerda. Estatisticamente é mais provável que esses não-votos se distribuíssem na mesma proporção dos votos. Isto é, algo em torno de 39% para o candidato eleito e 32% para seu opositor.
Acredito que esse deslocamento de uma maioria eleitoral para a direita e para a extrema direita tem outra explicação. Defenderei aqui que uma pista para compreender as determinações mais profundas desse processo remete nossa análise para um “sujeito oculto”. Mas comecemos pelos sujeitos visíveis. Claramente o espectro político brasileiro se dividiu em segmentos de direita e extrema direta, de centro esquerda, de centro, de esquerda e de extrema esquerda. Esses segmentos ganham suas personificações em indivíduos: Alckmin, Meirelles e Amoedo (direita), Bolsonaro (extrema direita), Haddad e Ciro (centro esquerda), Marina (centro ou centro direita, com ela a gente nunca sabe), Boulos (esquerda), Vera (extrema esquerda) e assim por diante. Não me peçam para localizar um ex-bombeiro, grevista, crente, deputado raivoso contra o risco do comunismo na América Latina e contra os poderosos, porque francamente essa tarefa foge à minha área de especialidade.
A questão de importância decisiva do ponto de vista eleitoral é determinar a capacidade dessas expressões políticas mobilizarem massas eleitorais significativas. Sigamos por eliminação. Por motivos diferentes, a direita, o centro e a esquerda não tinham como mobilizar contingentes significativos. De um lado pelo desgaste do governo Temer, a visível piora das condições de vida e a insegurança; de outro o prolongado período de conciliação de classes e sabotagem da capacidade de resistência e autonomia dos trabalhadores que limita a possibilidade de um discurso de esquerda. Restam, num quadro de acirramento da crise, a polaridade entre a extrema direita e o centro esquerda, materializada nas três candidaturas que despontaram à frente no primeiro turno. Com métodos eficientes, ainda que não muito louváveis, a centro esquerda pendeu para o candidato petista e a polarização encontrou seu termo: antipetismo e petismo.
Como a direita e a extrema direita se uniram taticamente contra o petismo e, desde o golpe parlamentar, midiático e institucional de 2016, operaram para eliminar a maior chance de vitória da centro esquerda (Lula), o jogo se desequilibrou a favor dos conservadores e depois, diante da falência da alternativa Alckmin, para os reacionários.
O combustível principal da extrema direita sempre foi o antipetismo. Estou convencido de que a maioria daqueles que se dispuseram a votar num fanfarrão autoritário e despreparado foi a clara convicção de que era necessário evitar que o PT voltasse a governar. Todos nossos alertas sobre o risco de medidas fascistas, da violência, do retrocesso democrático, das propostas tresloucadas na área econômica, da flagrante prepotência amoral e cínica, do preconceito machista, homofóbico e racista, não faziam diferença diante da prioridade de se livrar do PT.
Para dar um toque de perversidade ao já trágico cenário, muitos dos que se beneficiaram das limitadíssimas políticas compensatórias na área social e das condições de inserção via consumo, votaram contra o PT.
É evidente que há um componente de manipulação. Isso tudo não teria a intensidade que teve não fora o massivo ataque dos meios de comunicação, a ação judicial que priorizou o ataque aos petistas envolvidos nos esquemas de corrupção, à insistente vinculação da pregação moral de um certo fundamentalismo religioso às posturas minimamente progressistas no campo dos costumes como depravação e uma ameaça à família e aos bons costumes. Da mesma forma, ficou comprovado um poderoso e milionário esquema de organizações que difundem uma espécie de liberalismo raivoso de extrema direita na criação de movimentos e personalidades para agir na propaganda e contra informação como armas de guerra e de desestabilização, como as iniciativas dos bilionários irmãos Charles e David Koch, da ultradireitista John Birch Society, da organização Students for Liberty, além de recursos vindos de partidos (PSDB, DEM, etc.) e empresários.
Se somarmos a isso a doutrinação sistemática operada por um conjunto de segmentos ditos religiosos, mais precisamente envolvidos em empresas altamente lucrativas de exploração da fé e do obscurantismo, temos uma boa explicação da imensa capacidade de manipulação de massa operada.
Caso o petismo dependesse de si mesmo teria sido derrotado de forma ainda mais fragorosa. Para muitos, isso é um mistério. As pessoas deviam reconhecer o que foi afirmado como o melhor governo de nossa história, a atenção aos que se encontram abaixo da miséria absoluta, o Bolsa Família, o acesso à universidade, a valorização do salário mínimo, as oportunidades de consumo e crédito, e tudo isso fazendo com que os empresários, o agronegócio e os bancos ganhassem muito dinheiro, como o ex-presidente adora lembrar.
O pragmatismo petista, é verdade, colheu os frutos de seus governos. Estes foram, comparativamente, governos “bons” – foram gestores bons e responsáveis, aceitaram e trabalharam dentro das regras e das posturas vigentes (o que inclui, ainda que alguns finjam não saber, praticas declaradas de corrupção direta e indireta). A surpresa é compreensível: por que uma experiência de governo que abre mão de qualquer perspectiva revolucionária e aceita se ater aos limites da institucionalidade burguesa foi vítima de tanto ódio, preconceito e violência?
Uma parte do reconhecimento aos seus feitos deu uma sobrevida ao PT, em grande parte pelo contraste com a catástrofe do desgoverno Temer, em parte pela liderança carismática de seu principal líder. Isso, somado a algumas manobras, colocou seu candidato no segundo turno, mas não foi suficiente para equilibrar ou pretender virar o jogo contra a extrema direita. A balança eleitoral só se equilibrou porque para o PT confluiu o antifascismo, o que é uma conformação para lá de heterogênea – vai desde a esquerda (interessante notar, toda ela, o que inclui a extrema esquerda), passando por segmentos médios progressistas mas que tinham se desiludido com o PT, e até segmentos do centro direita e da direita, como é o caso da Marina e de determinadas figuras e setores do próprio PSDB.
Até aqui, trabalhamos apenas no descritor do movimento dos segmentos e sua polarização entre a extrema direita e o centro esquerda. Uma questão segue sem resposta: por que a classe trabalhadora não saiu em defesa, primeiro do governo do PT e depois da democracia contra o fascismo? Ou pelo menos, por que não o fez na dimensão e força que poderia?
Eis que aparece nosso sujeito oculto: a classe trabalhadora. Lembram dela? Aquela que teria deixado de existir em tempos agora “pós-industriais”, numa sociedade do “fim do trabalho”; aquela cuja identidade de classe a multiplicidade de identidades secundarizou e cuja centralidade na luta política se diluiu em “novos sujeitos” e “novas formas de luta”… Pois então, este sujeito que ninguém mais via, que havia deixado de existir e ter importância nas disputas políticas, este sujeito decidiu a eleição a favor do fascismo.
Há bastante tempo, algumas vozes destoantes insistem que a classe trabalhadora passou por um processo de mudança de forma graças a uma nova configuração do mundo do trabalho. Ela teria assumido uma nova morfologia, mas não somente continuaria existindo como mantém uma centralidade na configuração contemporânea do modo de produção capitalista. Não quero ser injusto esquecendo contribuições essenciais nesta direção, mas bastaria citar a consistente obra de Ricardo Antunes, as contribuições valorosas de Ruy Braga, Giovanni Alves, Edvânia Lourenço, Maria Orlanda Pinassi, Marilda Iamamoto, só para citar algumas das pessoas que ficaram na linha de frente desta resistência contra a ideologia do “fim do mundo do trabalho”.
Queria, aqui, somar minha modesta contribuição no que diz respeito à configuração de classe e da consciência de classe. Já faz tempo que temos alertado para o fato de que a mudança da morfologia da classe trabalhadora, apesar de não alterar (concordando com os autores acima citados) a sua centralidade na ordem capitalista contemporânea, não deixar de produzir importantes alterações no que diz respeito à consciência de classe.
Resumidamente, sabemos que não há uma correspondência mecânica entre o ser da classe e sua consciência, de forma que os trabalhadores, pela posição que ocupam nas relações sociais, possam adquirir uma consciência correspondente. Os trabalhadores, na forma imediata de sua manifestação, são apenas indivíduos inseridos na divisão social do trabalho e na concorrência, se apresentando portanto como adversários imediatos uns dos outros. Nesta forma imediata, configuram aquilo que Sartre chama de “serialidade”. Isto é: estão no mesmo espaço, fazendo a mesma coisa, mas não se conformam como um grupo ou uma forma mais orgânica de unidade política. É no enfrentamento contra as contradições da ordem capitalista, primeiro de forma isolada e casual, depois de maneira mais sistemática, que esses indivíduos encontram pontos de fusão que podem levá-los à condição de classe, primeiramente como mera oposição aos capitalistas (como classe em si), depois, em certas condições, como possibilidade de se constituir como sujeitos de um projeto histórico contra e para além do capital (classe para si).
Como vemos, para a teoria marxista, a classe e a consciência de classe se inserem em um movimento de continua constituição e desconstrução, determinado pela luta de classes, como bem captou E. P. Thompson. Ora, quando analisamos o movimento objeto da classe trabalhadora desde a crise da autocracia burguesa nos anos 1970 até hoje, vemos claramente um processo no interior do qual se tornou possível a fusão de classe e a passagem para uma classe em si nos anos 1980, seguida de uma interrupção nesse caminho e sua desconstrução como classe que culmina no período de conciliação de classes dos governos petistas e sua reversão à serialidade no período recente.
Caso agreguemos a isso as transformações no mundo do trabalho, compreenderemos a base material que, somada aos desvios políticos, leva a uma configuração da classe em novo e brutal momento de serialidade. O que nos interessa neste momento é entender como isso se manifesta em um particular comportamento político. Para tanto, temos que remeter nossa análise para uma passagem do famoso O 18 de brumário de Luís Bonaparte em que Marx trata dos camponeses, naquela oportunidade procurando responder qual seria a base de massa para a aventura golpista de Luís Bonaparte.
Em síntese, Marx afirma que os camponeses, pela posição que ocupavam nas relações sociais e diante das formas de propriedade, formavam um certo agrupamento de classe mas no entanto não constituíam uma classe propriamente dita. Por viverem do mesmo modo, partilharem de uma determinada cultura e manifestarem certos interesses, formavam uma classe; mas, não formavam uma comunidade mais ampla do que aquela dos interesses e situações mais imediatas, não formavam qualquer união nacional, não podiam se representar, tinham que ser representados, por isso, não eram ainda uma classe. Seriam, na metáfora do autor, como “batatas que somadas, constituem um saco de batatas”.
Muita gente considera que isso não passava de um preconceito de Marx em relação aos camponeses. Mas na minha avaliação essa observação não vale apenas para as condições objetivas do campesinato na França daquela época, e pode servir para qualquer classe em seu processo de formação – inclusive para o proletariado urbano e, mais do que isso, cabe perfeitamente para a condição se serialidade que estamos descrevendo.
Os trabalhadores se fragmentaram: romperam-se os laços que os uniam, eles se dispersaram geograficamente, foram derrotados politicamente (em parte, traídos), serializaram-se. Mas, uma vez fragmentados, invisíveis e desprezados, ainda existem e em seu conjunto são os responsáveis pela produção e distribuição de tudo que é necessário à existência, desde produtos, serviços, manutenção e tudo que faz a materialidade da economia girar em favor do capital. Uma vez quebrados em sua unidade política de classe, voltam-se a outras formas de pertencimento e grupalização, na qual expressam seus interesses imediatos e os elementos constitutivos de sua cultura.
No caso presente, o que os uniu foi o ódio. Vejam, não é um ódio ao PT, é um profundo descontentamento com a vida, com a violência diária vinda da criminalidade, das condições de moradia, um ódio diante de uma sociedade hipócrita que valoriza a meritocracia e retira as condições para que se desenvolvam suas potencialidades, um ódio contra uma corja de sangue sugas que controlam as instituições de governo para saquear os recursos e enriquecer ilicitamente, um ódio contra uma democracia representativa que não representa ninguém além daqueles que dela se apropriaram como instrumento de garantia de privilégios, com juízes que se colocam sob a capa da lei para ser injustos, contra a desigualdade gritante, contra a opulência de poucos que são sempre os maus… Enfim, ressentimento e ódio contra um mundo que os despreza.
A centro esquerda viu nesse ódio, por vezes, apenas um recurso eleitoral, como quando tentou se valer dele no segundo turno de Dilma contra Aécio em 2014, para depois das eleições voltar ao discurso pragmático da governabilidade aliando-se aos seus algozes. O fato é que essa força foi desprezada no sentido de dar forma a uma consciência de classe, anticapitalista e socialista.
Coube à direita dar forma a esse ódio, colando nele a máscara de seu adversário. O PT é o culpado da crise, das filas no atendimento na saúde, da precariedade da educação, da corrupção, da desagregação das famílias, da explosão de uma sexualidade aberrante que ameaça, de mulheres que levantam a voz e colocam o dedo na cara de quem as oprime, de índios (meu deus, ainda tinham índios neste país) querendo as terras tão bem ocupadas por mineradoras, madeireiras e o agronegócio. A mensagem da extrema direita encontra o ódio de uma boa parte dos trabalhadores e os representa: essa democracia é uma farsa (pode fechar o Congresso e o STF), este Estado é um cabide de emprego, privatiza tudo, manda a polícia atirar para matar, tirem os doutrinadores das escolas, matem viados, negros, índios, feministas, petistas, comunistas…
Esse ódio e esse enorme ressentimento não nasce dos trabalhadores, como é possível perceber. Ele vem de fora, contrabandeando coisas que os trabalhadores não teriam porque temer. Por que um trabalhador deveria se preocupar com uma maior ou menor presença do Estado na economia, ou defender privatizações, ou destruir sua possibilidade de se aposentar um dia? Esse ressentimento nasce dos setores médios, que vêm acumulando ódio há anos. A extrema direita, que como sempre nasce dos segmentos médios e pequeno-burgueses, logrou colar seu ódio e ressentimento no ódio dos trabalhadores e, assim, ganhar base de massas para seu projeto reacionário.
A chave do enigma está em uma frase do Marx que citamos acima: não podem se representar, tem que ser representados. A impossibilidade de se conformar como uma classe encontra a unidade fora de si, em tempos de crise e acirramento da luta de classes, numa figura salvadora, aparentemente acima dos interesses em luta, que se sobrepõe à imagem abstrata de Nação e Ordem e as personifica: Luís Bonaparte na França do Segundo Império, Getúlio Vargas na década de 1930, Perón na Argentina, ou em outras situações mais agudas em que se somam outras determinações, Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha… Mais recentemente, Tump nos EUA, e agora Bolsonaro no Brasil.
A guerra, assim como a luta de classes, não é racional. Como dizia Weber, trata-se da manipulação de paixões irracionais para fins racionalmente calculados. Machado de Assis, em seu magistral Quincas Borba, dizia que era como uma disputa de duas tribos por um campo de batatas que não podia ser dividido, pois se isso fizessem os dois lados morreriam de inanição. Por isso, conclui o literato, é compreensível que pessoas sensatas festejem um vitória que custou o assassinato de seus adversários, “pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
No nosso triste cenário, não creio em compaixão. Quem ganhou as eleições foram as batatas.