Não há necessidade de reforma da Previdência no Brasil
Modelo de privatização da Previdência Social do novo governo é semelhante ao instituído no Chile durante ditadura
Brasil de Fato
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor e pesquisador do Departamento de Engenharia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DEI-UFRJ) José Miguel Saldanha fala sobre a organização do sistema previdenciário no Brasil. Ele explica como funciona a Previdência Privada e o regime de capitalização proposto pelo governo Bolsonaro na figura de Paulo Guedes, futuro Ministro da Economia. O modelo é semelhante ao instituído no Chile em 1981 durante o governo ditatorial de Pinochet, o pesquisador ressalta que “nenhum outro lugar do mundo tentou fazer isso porque sabe que o problema é muito grande”. No Brasil, segundo ele, “a pretexto de equilibrar as contas públicas” o tema aposentadoria tem sido amplamente difundido como uma pauta urgente de aprovação. Uma reforma da previdência afetaria todos os trabalhadores da inciativa privada e também os servidores públicos.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Professor, esse tema fica ainda mais complexo de entender com as desinformações, afinal como é que funciona a Previdência brasileira?
José Miguel Saldanha: Um dos sistemas da Previdência pública brasileira é o chamado Regime Geral da Previdência Social (RGPS) que atende aos trabalhadores da iniciativa privada cujo contrato de trabalho é regido pela CLT, administrada pelo INSS. Essa previdência funciona pelo regime de repartição ou solidariedade. O governo recolhe uma receita de contribuições daqueles descontos que fazem nos contracheques dos trabalhadores, também a empresa ou o empregador pagam uma parte e com isso pagam-se os benefícios e aposentadorias do mesmo mês. Quer dizer que os ativos contribuem pra pagar os aposentados e pensionistas contemporâneos, daquele mesmo mês, não há formação de um fundo pra ser consumido depois.
Ou seja, o que eu pago não é pra minha aposentadoria. Pago pra quem está aposentado neste momento que eu estou trabalhando.
Na verdade, você nunca pode pagar sua própria aposentadoria, porque aquilo que pode ser poupado para o futuro é muito pouco. Quando você poupa dinheiro para o futuro, no caso de uma Previdência Privada, você na verdade está poupando o poder de compra no futuro. Você não está poupando as coisas que de fato você vai consumir no futuro, que alguém vai ter que produzir. Então, a solidariedade real existe sempre, não tem como. Sempre a classe trabalhadora ativa que sustenta todo mundo. Um copo de leite que você não toma hoje, daqui a vinte anos vai estar estragado. Alguém vai ter que produzi-lo no futuro. Agora, a forma como os direitos das pessoas são definidos é que varia. No atual regime você tem direito porque trabalhou, contribuiu pra previdência, então, você tem direito que a classe trabalhadora do futuro pague seu salário quando você for aposentado.
Esse pacto entre as gerações dos trabalhadores vai se renovando sempre. Os adultos vão ficando idosos, as crianças ficam adultas e os adultos vão sustentando sempre as crianças e os idosos. Esse sistema é organizado pela maioria dos países pelos Estados e também no Brasil pelo INSS que recolhe as contribuições dos ativos e paga os aposentados. Ora, essas contribuições dependem do nível de emprego, de quantas pessoas estão empregadas, do grau de formalização, quer dizer, quem trabalha sem carteira assinada não recolhe para a Previdência.
Estamos falando sobre a contribuição do trabalhador de carteira assinada e também dos autônomos?
Isso. Na verdade, toda contribuição vem do produto do trabalho. Pra gente entender: a pessoa trabalhou, foi calculada uma contribuição com base no seu salário, foi pagando e isso serviu para pagar os aposentados. Quando a gente faz as contas, pensa que um sistema desses, em geral, precisa ter equilíbrio não é? Ou seja, que o total das contribuições seja suficiente pra pagar as aposentadorias. Mas isso não ocorre em país nenhum. Os sistemas públicos de todos os países são deficitários, quer dizer, o que se paga de benefício em geral é maior do que as contribuições. Em todos os países e no Brasil também existem medidas legais para poder dar conta desse déficit.
E o rombo na Previdência é um déficit previsto na própria estrutura dela?
Exatamente. E você pode calcular esse rombo de várias maneiras. Por exemplo, no Brasil há um orçamento da seguridade social onde você inclui também as despesas de saúde e de assistência, além das contribuições nos contracheques também têm outros impostos como o COFINS que as empresas pagam sobre o faturamento, o CLL que é a contribuição sobre o lucro líquido que as empresas também pagam e tinha a CPMF que era uma arrecadação.
Quando você soma todas essas receitas e compara com todas as despesas da Previdência, assistência e saúde que é a seguridade, até ano passado ou dois anos atrás você tinha um superávit grande que era absorvido pelo Estado e usado pra pagar juros da dívida. O orçamento da seguridade foi usado durante muitos anos pra pagar juros da dívida. Do ano passado pra cá isso mudou um pouco não porque tivemos um aumento assustador de despesas. As despesas seguiram seu rumo normal, as receitas é que despencaram por causa da crise econômica.
Quer dizer que as receitas caíram porque caiu o emprego, o consumo, é isso?
Caiu o consumo e a atividade econômica, o capital se retraiu foi só para a esfera financeira. É a crise do capital, você tem capacidade produtiva, gente que precisa consumir, trabalhadores desempregados, mas o sistema não consegue juntar isso. Falta investir. É aí que entram as teorias desenvolvimentistas que falam para o Estado investir pra recuperar a atividade econômica e fazer a engrenagem funcionar novamente e infelizmente parece que não é o planejado para os próximos períodos.
Quanto às contas da Previdência, às vezes têm superávit, às vezes déficit, mas o que é muito importante de a gente entender é que, mesmo quando tem déficit ou rombo – que usam pra assustar e achar que é uma coisa errada -, quem paga esse rombo é a mesma classe trabalhadora ativa que paga as contribuições. Isso costuma ser ocultado quando dizem ‘o povo vai pagar o rombo’, mas quem é que vai receber o dinheiro? O próprio povo. Na verdade, se trata de discutir o quanto nós queremos financiar de uma forma ou de outra.
Manter os aposentados e pensionistas vivos a gente tem que manter. Não dá pra você querer que trabalhem até morrer. A economia do país sustenta perfeitamente isso. É claro que as pessoas vivendo mais tempo e passando mais tempo aposentadas vão gastar mais. Será que se a gente viver até os 200 anos vai querer se aposentar com 60? Não, talvez com 120, mas isso tudo são mudanças demográficas, na estrutura da natalidade e mortalidade que mudam lentamente, então, é possível estudar as contas, fazer previsões e planejar mudanças.
Eventualmente um aumento na idade pra se aposentar, no tempo de contribuição, mas não precisa de forma súbita. São mudanças lentas, então, dá pra discutir visões, analisar com a sociedade inteira, e tomar uma decisão que reflete como a sociedade quer cuidar dos seus idosos. Pessoas que já trabalharam a vida inteira e agora precisam descansar porque não têm mais condições. Isso tem que ser uma decisão social e não é assim que tem sido feito no Brasil. Em geral, essas decisões têm sido tomadas com base em argumentos meramente financeiros a partir de modelos que não são claros.
A PEC 277 do Temer, que está suspensa, prometeu economizar R$ 700 bilhões em 20 anos: os trabalhadores vão perder esses bilhões. O modelo de previsão que o Ministério fez ninguém entende porque eles não oferecem os dados técnicos pra fazer uma análise decente. Os deputados da comissão solicitaram e o governo forneceu um estudo que está público e é uma piada em termos de modelo de previsão, não tem os dados, só as fórmulas. Fórmulas erradas que a gente sabe onde está o erro. É um relatório meio que pra constar, é ruim mesmo. Na comissão falaram isso várias vezes, mas ninguém discutiu o mérito. Tinha maioria foi aprovado e pronto.
E sobre o trabalhador da iniciativa privada, é diferente do caso dos servidores públicos?
É bastante diferente. Dentre os servidores públicos, há diferenças entre os civis e os militares. A Constituição já sofreu mudanças através de uma emenda quanto a isso. Militar não é mais considerado servidor público, os sistemas eram iguais e agora são diferentes.
Há essa urgência de ter que fazer a reforma da Previdência?
Não. As mudanças estruturais na sociedade, que são as demográficas, são lentas. A chamada transição demográfica, ou seja, de queda das taxas de mortalidade e natalidade ao mesmo tempo provocou um fenômeno que é o ‘embarrigamento’ daquela pirâmide etária. Diminuiu a quantidade de adultos produtivos e está aumentando a de idosos, mas isso é uma transição que no futuro vai voltar a ser pirâmide. A pressa na verdade tem um sentido político: de não dar tempo de debater, reclamar, questionar, tudo muito urgente.
Para justificar a pressa são apresentados esses números particularmente da aposentadoria dos servidores. É aí que está a grande farsa. Até 1998 não havia contribuição pra Previdência por parte dos servidores, não havia necessidade de equilíbrio orçamentário. O governo tinha a folha de ativos, de aposentados, pensionistas e era tudo despesa. Onde é que estão as receitas? Nos impostos cobrados à população que paga as despesas do Estado. Não havia déficit nem superávit porque não fazia sentido fazer essa conta.
Na reforma de 1998 do Fernando Henrique Cardoso com a emenda nº 20/98 isso mudou. O regime dos servidores passou a ser contributivo. Que significa a necessidade de haver contribuição dos ativos. A partir daí passaram a querer que toda folha de aposentados e pensionistas fossem pagas pelos ativos. Como a quantidade de servidores públicos vem diminuindo e a quantidade de aposentados vem aumentando essa equação não fecha nunca.
Com isso, todos os regimes de servidores públicos da União de todos os estados e municípios que tenham regime próprio passaram a apresentar déficit. E passaram a chamar esse déficit de rombo, dizer que é um absurdo. Quando na verdade é uma conta mal feita, tudo deveria continuar sendo considerado despesa. Porque o empregador da pessoa durante a vida ativa como servidor público é o mesmo que paga a aposentadoria, ao contrário do regime privado que depois o INSS cuida. No caso do governo não.
É o mesmo governo que paga o ativo, o aposentado e o pensionista então colocava tudo isso na folha de pagamento única e pronto. Como, aliás, continua sendo feito com os militares. Eles não contribuem pra Previdência, então nem faz sentido falar em rombo dos militares, é despesa. O que o governo faz na contabilização a partir de algumas leis que foram aprovadas depois dessa emenda? Inventa uma contribuição do governo pra ele próprio que não existe definida na Lei 10.877 Art. oito dizendo que a contribuição da União para o sistema previdência é igual ao dobro do servidor ativo.
Em geral, mostram os altos salários do Legislativo e do Judiciário e não mostram do Executivo que são bem mais baixos e é uma quantidade muito maior. E aí parece que os servidores públicos são os apaniguados e por causa do dinheiro que eles ganham a nação está com problema. Não é nada disso, se você olha os números do regime próprio da Previdência desse período, a conta dos civis em 2017 foi de R$82 bilhões e em 2014 tinha sido R$78 bilhões em valores atualizados. Está longe de ter uma questão explosiva, não há nenhum problema urgente, é continuar pagando.
E sobre a proposta para a retomada da CPMF que no final o dinheiro não vai pra saúde e educação?
Então, para onde foi o dinheiro? Foi pra fazer o superávit primário. Na verdade, essa economia gigantesca que pretendem fazer tem o objetivo explícito de pagar a dívida pública, de pagar os rendimentos de capital. Se você olhar de uma maneira mais ampla vê que toda essa reforma tem objetivo de mudar a repartição de tudo que se produz no país, na repartição entre ganhos de capital e ganhos de trabalho. Essa proposta é uma brutal transferência do trabalho para o capital que tá sendo feito a pretexto de equilibrar as contas públicas. Essa é infelizmente a explicação mais geral dessa contra reforma da Previdência como a gente chama. Porque afeta todos os trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos.
Os balões de ensaio que estão sendo jogados em relação a isso com o novo governo e Paulo Guedes é o seguinte: fazer um novo regime a partir de janeiro e consertar o atual. O novo regime é capitalização, de substituir tudo isso que a gente falou por contas individuais em bancos que vão render juros e no futuro a pessoa vai viver disso. Igual a Previdência Privada.
Aquilo que fizeram no Chile em 1981 na ditadura de Pinochet, porque sem ditadura é impossível aprovar uma coisa dessas, e arruinou a Previdência. Estão pagando até hoje, o Estado teve que assumir novamente depois que acabou a ditadura porque as pessoas estavam literalmente morrendo de fome, se suicidando. Foi a única experiência mundial onde se privatizou capitalizando toda Previdência, nenhum outro lugar do mundo tentou fazer isso porque sabe que o problema é muito grande. É o que estão propondo aos novos trabalhadores. Para os atuais, o que é consertar? É essa PEC do Temer que reduz benefícios, aumenta o tempo necessário pra se aposentar, aumenta contribuições, reduz as pensões.Ou seja, prejudica enormemente toda classe trabalhadora do país. Na ordem de grandeza alguns bilhões de reais no espaço de 10 anos que eles vão economizar na verdade é o dinheiro que vão tirar do bolso do trabalhador, a exata medida que os trabalhadores vão perder.
A chamada Previdência privada é sempre capitalização, um negócio puramente financeiro. É como se o trabalhador, na imaginação deles, estivesse se tornando um capitalista. Até que um dia, depois de depositar um dinheirinho numa conta, ele se aposente e passe a viver dos rendimentos do seu capital. Isso é uma grande ficção porque não dá pra todo mundo viver de rendimento de capital, seria uma maravilha, ninguém precisaria trabalhar. Qual a magica que faz o capital render? A exploração do trabalho, não tem outra maneira.
Esses regimes de capitalização em geral são empresas ligadas aos bancos que cobram taxas e não vão à falência nunca. Os participantes, pensionistas sim, eles perdem. Principalmente porque os planos hoje são de ‘contribuição definida’, você sabe quanto paga, mas não sabe quanto vai receber no futuro. Ou seja, o fundo de pensão não vai quebrar nunca porque só paga aquilo que ele tem. Quem quebra é o participante porque não vai ter sua aposentadoria garantida como ele imagina que um dia vai ter. A propaganda agora vai ser ‘você vai cuidar da sua própria aposentadoria, não vai ter que manter do outro’, é uma grande ilusão porque você vai juntar um monte de dinheiro e vai precisar que alguém trabalhe pra produzir as coisas que você tem.
Edição: Jaqueline Deister
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