Assassinatos no campo em dois tempos históricos
A resistência social ao governo Bolsonaro precisa entender a nova forma da relação entre o Estado e o poder do atraso. É isso que possivelmente se manifesta nos assassinatos dos líderes sem-terra na Paraíba.
BLOG DA BOITEMPO
Após cerimônia religiosa na cidade de Mari, militantes do MST carregam corpo de José Bernardo da Silva, assassinado junto com Rodrigo Celestino, no último dia 8 de dezembro na Paraíba. Foto: Silvia Torres/TV Cabo Branco
Por João Alexandre Peschanski.
Em 8 de dezembro de 2018, foram assassinados os líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Rodrigo Celestino e José Bernardo da Silva. Coordenavam o Acampamento D. José Maria Pires, em Alhambra (PB), onde vivem 450 famílias. Foram executados por milicianos encapuzados, enquanto jantavam, no acampamento. Em nota oficial, o MST declarou: “Exigimos justiça com a punição dos culpados e acreditamos que lutar não é CRIME. Nestes tempos de angústia e de dúvidas sobre o futuro do Brasil, não podemos deixar os que detém o poder político e econômico traçar o nosso destino. Portanto, continuamos reafirmando a luta em defesa da terra como central para garantir dignidade aos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade.”
Por um lado, os assassinatos na Paraíba remetem a um tempo histórico passado, o do alastramento da violência contra sem-terra no governo de Fernando Henrique Cardoso. A expressão maior dessa violência foi, em 17 de abril de 1996, o Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 camponeses sem terra foram assassinados pela Polícia Militar. Mas a prática do assassinato era contumaz: houve 197 assassinatos de sem-terra entre 1997 e 2002, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). À época, milícias financiadas por grandes fazendeiros agiam para tentar impedir ocupações de terra, a formação de acampamentos, e atacavam quem tentava, principalmente lideranças. Nesse contexto, e apesar dos altos índices de violência no campo, participar do MST era uma forma institucional de resistência e sobrevivência, pois gerava constrangimento ao governo o assassinato de camponeses usando o boné do movimento dos sem-terra. Estar no MST garantia visibilidade e estrutura na disputa pela reforma agrária.
Nesse período, a organização e a lógica de ação coletiva do MST consolidaram-se. Tornaram-se um marco entre os movimentos sociais, por sua flexibilidade e criatividade. Sua gênese deu-se em uma interpretação sociorreligiosa, no quadro de um cristianismo pelos pobres, na linha do Concílio Vaticano II. Sua estrutura interna foi influenciada por experiências comunitaristas, às vezes com experimentos de democracia radical. Instaurou um repertório tático inovador e com alta capacidade de pressão política. Fundamentou as bases para transformações em práticas educacionais, culturais e interpessoais. Estar no MST era – apesar de problemas pontuais na realização da prática social que o movimento se colocava – participar de um processo profundo de emancipação. Testemunhou-se aqui, num contexto de acentuada violência no campo, um tempo histórico de oportunidades.
Nesse tempo histórico, as práticas do MST motivaram uma reflexão acadêmica própria. A literatura sobre os sem-terra mobilizou teóricos consagrados como István Mészáros, Michael Löwy e Boaventura de Sousa Santos. Canalizou também o despertar das inquietações de uma nova geração intelectual; entre outros, Jade Percassi, Alexander Hilsenbeck, Rebecca Tarlau, Tiaraju D’Andrea, Marco Fernandes e Deni Rubbo. A linha geral da reflexão crítica era entender os desafios e potencialidades da emergência e consolidação do movimento dos sem-terra.
Por outro lado, os assassinatos na Paraíba remetem a um tempo histórico provável, o do tempo vindouro. Significam-se pelas falas de Jair Bolsonaro e acólitos, para quem as ações do MST devem ser tratadas como terrorismo. O que está pressuposto nessas falas é a exceção, em que o governo age ou apoia assassinatos no campo, em que as execuções de Rodrigo Celestino e José Bernardo da Silva são normalizadas, atos de segurança nacional. O tempo histórico provável é o da ameaça permanente, que necessariamente culmina na violência real.
O tempo histórico do bolsonarismo define-se por incertezas, num contínuo que vai de cumprir normalmente a lei até a prática do extermínio no campo. A lógica da ação coletiva, para os ruralistas, é nesse tempo testar os limites e lealdades do governo.
A resistência social ao governo Bolsonaro precisa entender a nova forma da relação entre o Estado e o poder do atraso. É isso que possivelmente se manifesta nos assassinatos dos líderes sem-terra na Paraíba. A forma da resistência social, em defesa das populações espoliadas, num contexto de desativação do estado de direito, depende da formulação do sujeito político, miliciano e governante, que está por vir.
João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda. Colaborou com os livros de intervenção da Coleção Tinta Vermelha da Boitempo Occypy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012), Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013) e Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (2015). Colabora para o Blog da Boitempo esporadicamente.