O mito da direita democrática
– A propósito da vitória de Pedro Castillo no Peru
por Atilio A. Boron
Apesar do veredito da história, é irrefutável que a sabedoria convencional das ciências sociais e a opinião pública estabelecida difundem sem cessar a concepção errada de que a direita latino-americana se reconciliou com a democracia, que cortou amarras com a sua gênese oligárquica, racista, patriarcal e colonial, que pôs fim à sua história como visível instigadora e frequente executora direta de inumeráveis golpes de estado, atentados, sabotagens, massacres e toda classe de violações aos direitos humanos e às liberdades política.
Apesar dessa origem perversa, dizem agora alguns acadêmicos e “opiniólogos” distraídos (ou que jogam para a direita), esta “aggionou-se” e aceita as regras do jogo democrático. Erro trágico, confirmado, como dizia no princípio, pela vida prática: a direita nunca foi democrática, não o é e jamais o será no futuro. Pelo seu enraizamento cultural e interesses de classe está destinada a defender com unhas e dentes a ordem social do capitalismo dependente do qual é sua exclusiva beneficiária. Por isso apela a todos os imensos recursos de que dispõe (dinheiro, greve de investimentos, fuga de capitais, evasão e fuga tributárias, ataques especulativos contra a moeda local, demissões de pessoal, falência de estabelecimentos, terrorismo midiático, apelo ao intervencionismo militar, o favor de juízes e promotores, proteção “da embaixada”, etc) perante qualquer ameaça, por moderada que seja. No meu “Sete teses sobre reformismo, revolução e contrarrevolução na América Latina” (incluído no livro de download gratuito compilado pelo CLACSO sob o título Bitácora de un Navegante ) indico alguns antecedentes decisivos sobre o tema. Por isso sugiro às pessoas interessadas que leiam o referido artigo para ter acesso a uma elaboração mais completa sobre este argumento.
Por agora, conformo-me com este breve recordatório sobre a conduta da direita latino-americana para que os leitores extraiam as suas próprias conclusões. Na Argentina, em 2015, aquela representada por Maurício Macri triunfou no segundo turno da eleição presidencial sobre Daniel Scioli. A diferença foi de uns 3 por cento e a coligação perdedora admitiu a derrota nessa mesma noite. Em 2017 o narcopolítico Juan O. Hernández impôs-se na eleição presidencial hondurenha graças a uma fraude escandalosa que foi tão descarada que aditou durante várias semanas o reconhecimento de Washington, do qual aquele era a sua peça. Apesar dos protestos da oposição, esta não teve outro remédio senão admitir a sua “derrota”.
Nas eleições presidenciais brasileiras de 2018, triunfou Jair Bolsonaro, porta-voz dos golpistas que derrubaram, mediante lawfare, Dilma Rousseff da presidência. Apesar das grosseiras e múltiplas violações da legislação eleitoral (entre as quais o não comparecimento de Bolsonaro ao debate presidencial), o papel sinistro desempenhado pelo poder judicial – que ilegalmente impediu que Lula fosse candidato – e os meios de comunicação, ferreamente controlados pela direita, a derrota da aliança opositora respeitou o resultado das urnas. Os políticos brasileiros no Congresso, a “justiça” desse país e os grandes meios de comunicação, cada qual mais corrupto, estão fazendo pagar um preço imenso ao povo desse país por haver instalado no Palácio do Planalto um sociopata como Bolsonaro, que com o seu negacionismo da pandemia enviou à morte mais de meio milhão dos seus compatriotas.
No Uruguai, em 2019, o candidato da direita Luis Lacalle Pou derrotou Daniel Martínze, da Frente Ampla, por 1,5 por cento dos votos válidos, e o perdedor admitiu sua derrota sem contestar. Pouco depois de assumir a presidência, Lacalle Pou abusou de um negacionismo suicida, proclamando com uma atitude chauvinista que no Uruguai não aconteceria o mesmo que aos seus vizinhos argentinos e brasileiros. Teve que engolir suas palavras e hoje o Uruguai está pagando um preço muito elevado pela soberba do seu presidente.
No México, o candidato de esquerda Cuauhtémoc Cárdenas ia ganhando a eleição presidencial de 1988 até que uma suspeita “queda do sistema” da Comissão Federal Eleitoral operou o milagre: ao serem reiniciados os computadores, o candidato de Washington, Carlos Salinas de Gortari, aparecia desfrutando de uma ampla vantagem sobre o seu oponente e foi proclamado ganhador. De nada valeram os protestos populares diante de uma fraude tão descarada como essa. A direita queria ganhar “de qualquer forma” e, com o beneplácito de Washington e da OEA, conseguiu.
Também no México, em 2016, a direita produziu outro roubo eleitoral. Vários dias depois de finalizada a renhida eleição, o Instituto Federal Eleitoral emitiu um comunicado anunciando o fim da contagem dos votos e que o candidato conservador Felipe Calderón se impunha por uma diferença de 0,62 por cento dos sufrágios sobre Andrés M. López Obrador. Apesar do repúdio generalizado perante um roubo eleitoral tão descarado – exemplo: em numerosas mesas de votação votou muito mais gente do que a que estava registrada – Calderón foi proclamado ganhador da contenda eleitoral.
Na eleição presidencial da Nicarágua (25/fevereiro/1990) triunfou a candidata da União Nacional Opositora, Violeta Barrios de Chamorro. Obteve 55 por cento dos votos, sobrepujando Daniel Ortega, então presidente da Nicarágua e candidato do Sandinismo, que foi apoiado por 41 por cento do eleitorado. Dois dias depois de concluída a eleição, Ortega reconheceu publicamente a sua derrota e felicitou a candidata triunfante. Ortega só voltaria a ser eleito presidente no ano de 2007.
Na Argentina da década dos trinta, a fraude da direita adquiriu um status quase institucional, sob o nome de “fraude patriótica”. O objetivo: impedir a qualquer custo que a “chusma radical” e os socialistas e comunistas tivessem acesso a qualquer cargo de eleição popular. A fraude era exaltada como um serviço que uma virtuosa oligarquia, com seus partidos, juízes e diários prestavam à pátria. Até os dias de hoje persistem nessa atitude de pretender burlar a vontade popular, claro que recorrendo às novas tecnologias do neuromarketing político para manipular, mediante o ódio e o medo, as atitudes e as condutas das massas. A direita não só recorreu à fraude; além disso proscreveu o peronismo durante dezoito anos, a principal força política do país. E quando nem um nem outro eram suficientes, a “carta militar” sempre estava à mão: uma interminável sucessão de “planos militares” carcomia os débeis e ilegítimos – por causa da proscrição do peronismo – governos civis surgidos depois da derrubada do peronismo em 1955. Duas brutais ditaduras assinalaram este processo de decomposição política: primeiro, a encabeçada por Juan C. Onganía em 1966 e, dez anos depois, a apoteose do crime e do genocídio com a ditadura cívico-militar instaurada com o golpe militar de 24 de março de 1976 que afundaria o país num inesquecível e imperdoável banho de sangue. Em ambos os casos, a colaboração da direita argentina foi essencial fornecendo ideias, projetos, funcionários, diplomatas e pondo o seu aparelho midiático a serviço dos ditadores.
Em contrapartida, em 20 de outubro de 2019, Evo Morales ganhou as eleições presidenciais da Bolívia ao obter 47,08 por cento dos votos, contra os 36,51% do candidato da oposição Carlos Mesa. A legislação eleitoral desse país estabelece que, se nenhum candidato atingir os 50 por cento dos votos válidos, deveria ser convocada um segundo turno eleitoral, salvo quando se superassem os 40 por cento e houvesse uma diferença de 10 por cento ou mais em relação ao segundo, o que efetivamente se verificou por aproximadamente 0,60 por cento do total de votos. Apesar disso, dois relatórios da OEA, um antes e outro depois da votação, assinalando alegadas irregularidades na contagem dos votos, criaram um clima de fraude e suspeita que potencializou até ao infinito as denúncias de uma direita que já havia declarado antes das eleições que não reconheceria qualquer outra vitória que não fosse a do candidato da oposição. Após uma série de manifestações violentas e perante a incompreensível impotência oficial, os altos comandos do Exército e da Polícia apoiaram as denúncias da direita racista e exigiram a demissão do presidente Morales. Algumas semanas mais tarde, vários relatórios de organizações acadêmicas americanas, especializadas em assuntos eleitorais, confirmaram a transparência e honestidade das eleições bolivianas, mas era demasiado tarde e a Bolívia estava a se esvaindo em sangue perante a violência do novo regime. Um ano depois, o MAS boliviano recuperava a presidência esmagando eleitoralmente a direita golpista.
O capítulo mais recente desta saga fraudulenta da direita latino-americana está tendo lugar nestes dias, em junho de 2021, no Peru. Ali o candidato presidencial da esquerda, Pedro Castillo, impõe-se diante da corrupta representante dos poderes de fato nesse país, Keiko Fujimori. Apesar das virulentas reclamações da oposição, a contagem definitiva concede uma vantagem clara, ainda que pequena, ao candidato do Perú Libre. Complexos procedimentos de verificação de atas com irregularidades realizadas por organizações especializadas concluem que em caso algum estas alteram o resultado eleitoral. Apesar disto a coligação direitista recorre a toda classe de artimanhas, incluindo o sub-reptício apelo a um golpe militar feito por Mario Vargas Llosa para impedir que o Peru “caia nas garras do totalitarismo chavista”. Houve inclusive um pronunciamento de militares reformados neste sentido, energicamente repudiado pelo presidente Francisco Sagasti. De qualquer modo, não se descarta que possa se produzir um golpe parlamentar destinado a anular as eleições ou a desqualificar o seu vencedor, Pedro Castillo.
Desgraçadamente, o Congresso da República do Peru, composto por 130 membros, tem poderes para destituir o presidente por múltiplas causas, dentre elas a muito enigmática “incapacidade moral”. A presidente dessa instituição, Mirtha Vásquez – frente-amplista com vasta experiência na defesa dos direitos humanos no seu país – apelou à reflexão dos seus colegas para evitar que se convertessem em cúmplices da manobra de derrubada ou golpista da direita. Para que isso aconteça, esta deve controlar dois terços dos votos no Congresso, ou seja, 87 congressistas. Que por enquanto não tem mas, conforme rumores em Lima, “não os tem mas pode alugá-los”. O êxito ou não desta manobra dependerá, como sempre, da capacidade de mobilização e organização das forças de esquerda que se oponham à mesma. O desenlace desta eleição será conhecido nos próximos dias.
Conclusão desta breve revisão: quando ganha a direita, a esquerda admite o veredito adverso das urnas; quando ganha a esquerda, a direita recorre à chantagem, à fraude ou ao golpe militar ou institucional, ratificando pela enésima vez que a direita não é nem será democrática. Não esqueçamos esta lição. Na direita não se pode confiar nem um bocadinho, nada, como dizia Che Guevara em relação ao imperialismo. E a mesma atitude convém seguir com os filhos putativos do império, espalhados por toda a América Latina e o Caribe.
21/Junho/2021
Ver também:
Políticas culturales y ciudadanía: estrategias simbólicas para tomar las calles . Este livro comenta um conjunto de iniciativas que, utilizando diferentes estratégias simbólicas, intervieram nas ruas de Lima, Peru, a fim de tornar visíveis diversas relações de poder instaladas na vida social. Clique com o botão direito do rato para descarregar (2638 kB).
O original encontra-se em www.resumenlatinoamericano.org/…
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