Privatizações das refinarias, regulação e Estado

imagemFoto: Arquivo Petrobras

– A tragédia brasileira

Eduardo Costa Pinto [*]

Se até no Reino Unido, berço das práticas neoliberais, as privatizações e a regulação têm perdido legitimidade em virtude de sua baixa efetividade, qual seria o motivo que têm levado o governo Bolsonaro e os economistas de mercado brasileiro a continuarem defendendo a mesma retórica de quarenta anos atrás?

A redução da atuação do Estado brasileiro na economia, por meio da venda de ativos públicos e das privatizações de suas empresas, tem sido alardeada pelo governo Bolsonaro como o caminho do nirvana para o crescimento econômico e o desenvolvimento social. Desde o início desse governo até fevereiro de 2020, já foram vendidos ativos no valor de R$134,9 mil milhões [€21,56 mil milhões].

Desse total, somente a Petrobras foi responsável com R$70,3 mil milhões [€11,23 mil milhões] em virtude da privatização de suas empresas subsidiárias (BR distribuidora, TAG, Liquigás, Belém Bioenergia, entre outras) e das vendas de campos de produção de petróleo e gás (Enchova e Pampo; Tartaruga Verde, Pargo, entre outros).

O governo Bolsonaro pretende avançar muito mais no processo de privatização com a venda dos Correios, da Eletrobras e de subsidiárias da Caixa, do Banco do Brasil e da Petrobras, que pretende vender oito de suas refinarias (RNEST, RLAM, REPAR, REFAP, REGAP, REMAN, LUBNOR e SIX), cerca de 50% do seu parque de refinação.

Para a equipe econômica do governo Bolsonaro, assim como para boa parte dos economistas de corretoras e de grandes bancos, as vendas dos ativos do Estado proporcionariam aumento da competição de mercado, atração de investimentos privados, redução da dívida pública e a eliminação da corrupção. Isso tudo supostamente aumentaria a eficiência econômica proporcionando ao consumidor adquirir produtos e serviços com melhor qualidade e menores preços.

Esse argumento defendido hoje pelo governo Bolsonaro é o mesmo adotado nas décadas 1980 e 1990, nos países centrais e no Brasil, para justificar a redução do papel do Estado na atividade econômica. Aquele período fora marcado pelo triunfalismo da ideologia e das práticas neoliberais. Assumiu-se como pressuposto que o Estado seria por definição ineficiente em relação ao mercado, no que diz respeito ao papel de planejador e produtor. Com isso, o Estado deveria adotar o papel de regulador da atividade econômica privada (Estado-regulador), buscando criar mercados competitivos e estimular e introduzir a concorrência.

O programa de privatizações do Reino Unido dos anos 1980-1990, comandado pela primeira-ministra Margaret Thatcher, foi o caso paradigmático, que serviu de modelo para diversos países. Inclusive para as privatizações brasileiras da década de 1990 (das telecomunicações, da mineração, da siderurgia etc) e a criação das agências reguladoras, tais como: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em 1996; a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 1997; e a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de 1998.

A onda de mercado, em consonância com o “Consenso de Washington”, como dito por Jean Hansen e Jacques Perceboais no livro Transition(s) électrique(s) de 2017, varreu o paradigma anterior pautado [1] na atuação direta do Estado (produtor e planejador) e (2) na necessidade de integração vertical, sob controle dos Estados, em setores econômicos caracterizados por monopólio natural e/ou pela produção de mercadorias que detém papel estratégico (energia elétrica, produção e distribuição de petróleo e seus derivados etc.).

Com a primazia do mercado, a questão central do Estado voltou-se à regulação que deveria ser temporária, pois o regulador criaria as condições para o florescimento de um mercado competitivo, como dito por Stevan Thomas em artigo denominado “A perspective on the rise and fall of the energy regulator in Britain”, publicado em 2016. Neste artigo, ele analisa os limites da regulação do Reino Unido no que diz respeito aos objetivos propostos inicialmente.

Independente de qualquer comprovação empírica a respeito da maior eficiência econômica do mercado em relação ao Estado, os programas de privatização foram adotados. A questão da segurança energética supostamente seria resolvida pelo mercado. E os consumidores teriam o poder para escolher os seus fornecedores a um preço mais barato. Alguns até poderiam acreditar nisso no passado, em virtude do annus mirabilis de 1989 e da ideia de “fim da história”. Mas como a história não tem fim, na verdade, essa retórica foi utilizada para avançar na redução do Estado em virtude de questões ideológicas e, sobretudo, para criar espaços de acumulação para o setor privado.

Passados mais de trinta anos desse debate e dos impactos das privatizações, não dá para continuar acreditando que a privatização e a atuação dos reguladores proporcionarão preços mais baixos. Nem muito menos que no atual contexto de transição energética, marcada por incertezas (tecnológicas, custos, financiamento, etc.), o Estado-regulador seria capaz de direcionar o mercado para o caminho da transição. O artigo de Stevan Thomas e o livro de Jean Hansen e Jacques Perceboais deixam isso muito evidente, inclusive mostrando que as agências reguladoras do Reino Unido e da França têm perdido espaço para uma atuação mais direta do Estado, por meio de políticas discricionárias.

Se até no Reino Unido, berço das práticas neoliberais, as privatizações e a regulação têm perdido legitimidade em virtude de sua baixa efetividade, qual seria o motivo que têm levado o governo Bolsonaro e os economistas de mercado brasileiro a continuarem defendendo a mesma retórica de quarenta anos atrás?

Vejamos o caso da venda das refinarias da Petrobras. O discurso é que essas privatizações (i) aumentariam a competição/concorrência no mercado de combustíveis, pois viabilizariam a entrada de novos agentes na refinação; (ii) ampliariam os investimentos; e (iii) proporcionariam a queda dos preços dos derivados de petróleo para os consumidores.

Os órgãos regulatórios (ANP e Cade, Conselho Administrativo de Defesa Econômica), assim como o Ministério de Minas e Energia (MME), partem da ideia de que necessariamente uma menor concentração da estrutura de mercado de refinação nacional proporcionará uma redução dos preços, com base em estudos empíricos do mercado de derivados dos Estados Unidos[1].

Estudo recente sobre o mercado de refinação da Europa [2] concluiu que “dividir a indústria em players menores para incentivar mais concorrência pode levar a preços mais altos para os consumidores”, pois grandes empresas podem ser mais eficientes do que as pequenas em virtude das economias de escala da indústria de refinação.

Além disso, é preciso levar em conta as especificidades da estrutura de mercado de refinados brasileiro, haja vista que as refinarias (e infraestruturas logísticas) da Petrobras foram localizadas com o objetivo de minimizar o custo de investimento, evitando despesas redundantes. Com isso, os mercados relevantes, de boa parte, das refinarias são regionais e, sim, podem ser considerados como um monopólio natural de fato. Isso ficou evidente em estudo coordenado pela PUC-Rio (denominado Competitividade no mercado de gasolina e diesel no Brasil: uma nova era?) que apontou a elevada probabilidade de estabelecimento de monopólio regional pelas refinarias privatizadas.

Nesse sentido, essas refinarias privatizadas tenderão a estabelecer preços de monopólios. Com isso, os preços para o consumidor final tendem a aumentar. Para conter isso, a ANP teria que ter estabelecido marcos regulatórios claros. No entanto, o regulador não tem a mínima ideia dos efeitos da privatização das refinarias sobre os preços para o consumidor e sobre a coordenação do abastecimento.

Isso fica evidenciado por essa fala, no dia 24 de junho publicada no Valor, da superintendente adjunta de Fiscalização do Abastecimento da ANP, Patrícia Huguenin Baran: “Todo arcabouço regulatório foi construído numa estrutura em que a Petrobrás tinha um papel predominante. Agora o que se tem é um desafio de um novo cenário que rompe essa estrutura”. Segue ela: “Então, a estrutura está dada, mas o contexto é diferente. Fica realmente meio engessado. Você quer chegar num ponto, mas não tem ainda o caminho feito”.

Esse é um exemplo do que está acontecendo no setor de petróleo e gás, mas pode ser generalizado para outros setores, como o elétrico (proposta de privatização da Eletrobras). Não há nenhuma discussão a respeito dos impactos econômicos e sociais das privatizações, nem muito mesmo a tentativa, pelos reguladores, de construir marcos regulatórios para criação de mercados competitivos, como havia na década de 1990.

O mercado resolve tudo (preços baixos, qualidade, segurança de abastecimento, investimentos), nem precisa regulação! Na verdade, essa é a retórica atual que legitima um processo de privatização que está associado à geração de novos espaços para ampliação do capital privado nacional e internacional. Um verdadeiro botim em que o patrimônio público é dilapidado com o objetivo de aumentar a lucratividade das empresas financeiras e não financeiras no curto prazo, sem que isso proporcione o aumento do bem-estar para os consumidores e cidadãos.

Vivemos hoje um momento histórico em que o Estado brasileiro é a expressão direta dos interesses dos empresários nacionais e estrangeiros. O público e o privado foram fundidos da pior forma possível, em que os interesses dos lobbies empresariais dominam toda a cena política e estatal. Isso sim é corrupção estrutural.

Notas

[1] Cade, Nota Técnica Nº 37/2018/DEE/CADE sobre o setor de Combustíveis, 2018.
[2] ZIRGULIS, A. & PETRUCIONIS, L. & HUETTINGER, M. The Impact of Oil Refinery Market Power on Retail Fuel Prices in the European Union. ekonomika Vol. 95(3), 2016

[*] Professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).
O original encontra-se em diplomatique.org.br/privatizacoes-das-refinarias-regulacao-e-estado-a-tragedia-brasileira/
Este artigo encontra-se em resistir.info

Em Portugal, o recente encerramento da refinaria de Matosinhos – a única do país com capacidade para produzir óleos base para o blending de lubrificantes – mostra a continuação do processo de desindustrialização em curso. Depois de sectores inteiros da economia nacional terem sido destruídos (estaleiros navais, metalomecânica pesada, siderurgia, adubos, frota pesqueira, etc) segue-se agora o do petróleo. Mas um país que não tem indústria é apenas uma horta como dizia, com razão, um antigo ministro de Salazar. Assim, restringir a discussão acerca de Matosinhos apenas aos 1600 empregos agora destruídos pela administração da Galp é minimizar a gravidade deste crime de lesa economia nacional.

Este processo de desindustrialização é feito sob a égide da União Europeia e com a conivência da classe dominante portuguesa. Ele confirma uma tendência inexorável do capitalismo: a lei do desenvolvimento desigual [**], que tende a polarizar países, regiões e continentes.

No caso da refinaria de Matosinhos, em Leça da Palmeira, a sua destruição foi feita com a anuência do governo PS presidido pelo sr. António Costa (o seu ministro Matos Fernandes manifestou publicamente o seu beneplácito à liquidação deste importante activo fixo).

Dessa forma, pode-se afirmar que a “tragédia brasileira” mencionada por Eduardo Costa Pinto no título deste artigo não é apenas brasileira – é também portuguesa e de qualquer outro país do mundo (EUA inclusive). Esta tragédia é do próprio capitalismo, independentemente das aldrabices ideológicas que tentam justificá-lo.

Resistir.info

[**] A sua definição é dada no “Economie politique, Dictionnaire”, Editions du Progrès, Moscou, 1981:
Lei do desenvolvimento econômico e político desigual do capitalismo sob o imperialismo – lei objetiva descoberta por Lênin: na época do imperialismo, o desenvolvimento econômico e político dos países capitalistas efetua-se por saltos, o que implica repartições periódicas do mundo, a exacerbação geral da luta anti-imperialista, torna possível a vitória do socialismo num pequeno número de países capitalistas ou mesmo num único. Com o agravamento da crise geral do capitalismo, o desenvolvimento desigual do capitalismo acentua-se. Devido à existência da propriedade privada, da corrida aos lucros e da anarquia da produção, a desigualdade do desenvolvimento é inerente ao capitalismo em todas as etapas da sua evolução. Uma vez chegado à etapa imperialista, esta desigualdade efectua-se por saltos. Isto se deve à forte aceleração da concentração e da centralização da produção e do capital, à dominação do capital monopolista, às grandes mudanças que se verificam nos domínios da ciência, da técnica, o que permite a certos países capitalistas se distanciar rapidamente dos outros países. Um papel importante é desempenhado no caso pela exportação do capital que reforça as posições de certos agrupamentos monopolistas em detrimento dos outros. O desenvolvimento econômico por saltos leva os países imperialistas que ganharam avanço a exigirem, conforme as novas relações de força, uma repartição do mundo capitalista. Isto implica um agravamento das contradições inter-imperialistas, o emprego de métodos militares de luta entre os agrupamentos imperialistas rivais, o que conduziu a duas guerras mundiais. Ao analisar o funcionamento da lei do desenvolvimento econômico e político desigual dos países capitalistas sob o imperialismo, Lênin chegou a uma conclusão da mais alta importância histórica – a possibilidade da vitória do socialismo inicialmente em vários países ou mesmo num único país capitalista considerado separadamente. A ruptura do sistema imperialista verifica-se no seu ponto mais fraco. Em 1917, foi a Rússia czarista este ponto fraco, o nó de todas as contradições imperialistas – econômicas, políticas, sociais, nacionais. (…)