20 anos do Massacre do Carandiru – um legado de abuso e impunidade
No dia 02 de Outubro de 1992, uma rebelião eclodiu na Casa de Detenção em São Paulo. Uma briga entre detentos foi o estopim e, a seguir, os presos assumiram o controle do Pavilhão 9. A Tropa de Choque da Polícia Militar tomou de assalto a prisão para sufocar a revolta. Quando a operação terminou, onze horas mais tarde, deixou um saldo de 111 prisioneiros mortos.
A incapacidade das autoridades brasileiras de levar à justiça qualquer um dos responsáveis pela morte dos 111 presos no Carandiru, apenas reforça a longa tradição brasileira que combina abuso e impunidade extremos, elementos que há muito caracterizam o sistema de detenção no Brasil. Vinte anos após a chacina, nenhum dos policiais envolvidos, nenhum dos comandantes, nem sequer o governador do estado, foram responsabilizados por seu papel na tragédia. Um episódio como este é inaceitável em qualquer lugar, sobretudo em uma potência emergente como o Brasil.
Seja por negligência ou cumplicidade, o sistema judicial na melhor das hipóteses ignorou e na pior, demonstrou um desprezo total por qualquer preceito de justiça nacional ou internacional e pelos direitos dos que foram brutal e sumariamente executados.
O processo legal movido contra o coronel Ubiratan Guimarães, o oficial no comando da unidade da polícia militar enviada para controlar o motim iniciado na cadeia mais notória do país, é um dos melhores exemplos. Em julho de 2001, o coronel Ubiratan foi condenado pela justiça de São Paulo a mais de 600 anos de prisão pelo seu papel de comando na morte de detentos desarmados. Contudo, em fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal do estado revogou a condenação, alegando que o coronel Ubiratan tinha agido estritamente no cumprimento do dever e de ordens superiores. Assim não passou um só dia preso até o seu falecimento.
Vinte e quatro horas após o massacre, uma delegação da Anistia Internacional entrou na casa de detenção e encontrou evidências claras de violações de direitos humanos pela Tropa de Choque da Polícia de São Paulo. O relatório da organização foi, posteriormente, lido como evidência durante o julgamento do coronel Ubiratan e relatou:
“Uma vez concluída a operação policial, ficou evidente que detentos indefesos haviam sido massacrados a sangue frio. Os sobreviventes foram obrigados a se despir e passar por um “corredor polonês” de policiais militares, que os espancaram com cassetetes e lançaram cães contra eles. Vários presos feridos foram mortos a tiros, tal como outros detentos que haviam recebido ordens para retirar os corpos das celas…
Segundo um funcionário da prisão, “a PM ficou mais preocupada em ajustar a cena do crime durante quatro horas do que retirar os presos feridos”.
Embora houvesse três juízes presentes no local, inclusive o juiz-corregedor, estes nada fizeram para impedir as ações da polícia.”(trechos do relatório ‘Chegou a Morte’ – Massacre na Casa de Detenção São Paulo, da Anistia Internacional, maio de 1993 )
No âmago desse crime hediondo estão dois problemas endêmicos que continuam a afligir o sistema de detenção brasileiro. Primeiro, os detentos em prisões por todo o país são vítimas de tortura e submetidos a condições de vida desumanas e degradantes. O fracasso em garantir condições mínimas nos presídios deu origem à violência entre os prisioneiros, colocando a segurança daqueles detidos sob o cuidado do estado muito aquém do controle do mesmo. Segundo, há uma relutância persistente do estado e do judiciário em enfrentar questões como estas, seja através da implementação de reformas eficazes ou de investigação e punição dos autores de tais crimes. Com raras exceções, onde pode se comprovar boas práticas, os centros de detenção no Brasil continuam a enfrentar problemas de superlotação, violência entre facções, corrupção do funcionalismo e condições degradantes.
A população carcerária brasileira aumentou mais de quatro vezes nos últimos vinte anos, passando de 114.377 em 1992 para 514.582 em 2011 de acordo com dados do Ministério da Justiça. Isto caracteriza uma política de segurança pública que tem se baseado em discriminação e abusos, relegando jovens negros e pobres a um sistema que não tem condições de acomodá-los e que falha em fornecer a segurança que o país necessita.
Em março deste ano, uma delegação da Anistia Internacional visitou delegacias e prisões no estado do Amazonas, onde ouviu relatos numerosos de homens e mulheres que foram espancados, asfixiados, eletrocutados e atacados com spray de pimenta, entre outros maus tratos nas mãos de agentes da lei. Se o Brasil pretende instaurar, de maneira genuína, a segurança e a paz que seus cidadãos tanto almejam e, ao mesmo tempo, desempenhar um papel de liderança no cenário internacional, deve erradicar tortura e abuso em suas casas de detenção, a impunidade de que gozam os agentes de segurança quando não obedecem às leis e deve, finalmente, fazer com que os responsáveis pelo massacre do Carandiru sejam responsabilizados pelos seus crimes e a justiça seja feita.
Tim Cahill – pesquisador da Anistia Internacional Brasil