Colômbia: 50.000 desaparecidos nos últimos vinte anos

Instituições como o Conselho Judiciário Nacional, um estamento burocrático que Álvaro Uribe, nos tempos remotos da primeira candidatura presidencial prometeu acabar, agora se mantém como um apêndice ainda mais funcional e submisso. A Procuradoria Geral da União, o “ente autônomo de controle e vigilância da função pública dos empregados do Estado”, não controla nem vigia, tampouco é autônoma, e o próprio Procurador Geral, Alejandro Ordóñez, é conhecido no país como “o absolvedor”, pois desde sua chegada à instituição se tem distinguido pela eficiência para livrar de culpa toda classe de militares e funcionários uribistas vinculados com massacres e o paramilitarismo.

No outro lado, uma instituição como a Corte Suprema de Justiça, que se nega à nomear o novo Fiscal Geral de uma lista apresentada pelo presidente, por considerar que os postulantes não reúnem as condições mínimas necessárias para o cargo, tem sido objeto de toda ordem de insultos por parte do presidente, de ataques descarados de seus funcionários, e, inclusive, de interceptações telefônicas, por parte do DAS, o organismo de inteligência do Estado subordinado à Presidência.

Na corrente desenfreada e unidirecional do atual governo colombiano, que atropela sem pudor os preceitos constitucionais e legais, sem mencionar os morais e éticos, é onde o MOVICE atua com empenho e disposição, as vezes como um clamor solitário, mas também com uma postura política clara. O Estado colombiano, como responsável pela ação, confabulação, omissão ou permissividade, tem uma evidente responsabilidade em muitos dos crimes cometidos contra os próprios colombianos. Do mesmo modo, o Estado tem a obrigação de responder ante as vítimas, as famílias, as organizações e perante toda a sociedade colombiana, garantindo o direito à verdade, à justiça, à reparação integral, e, sobre tudo, à garantia de que não se repetirão esses crimes.

Iván Cepeda Castro, além de escritor e jornalista, é um destacado líder dos direitos humanos na Colômbia e porta-voz do Movimento das Vítimas dos Crimes de Estado (MOVICE), organização nascida em 2003 que agrupa familiares de vítimas dos crimes de lesa humanidade e algumas organizações que trabalham pelos direitos humanos.

Iván Cepeda viveu na própria carne a violência exercida pelo Estado colombiano, como filho do senador Manuel Cepeda Vargas, assassinado em 1984, durante o genocídio levado a cabo contra a União Patriótica, um partido político que foi vítima de perseguição intencional e sistemática que o conduziu ao extermínio.

Conversamos com Iván Cepeda em Madrid, cidade cenário do lançamento de uma campanha internacional de mais de 30 organizações européias de direitos humanos para chamar a atenção sobre a perseguição que enfrentam os defensores de direitos humanos na Colômbia, por parte das instâncias estatais que deveriam garantir sua segurança.

Como porta-voz das vítimas dos crimes de Estado na Colômbia, que sensação lhe produz chegar à Europa e descobrir que o Governo colombiano é visto como um governo democrático, que cumpre os requisitos mínimos para ser tratado com condescendência pela União Européia?

Não me surpreende. No caso da Espanha, para sermos francos, existem importantes investimentos do capital transnacional na Colômbia. Para citar só um caso: atualmente se debate em quais mãos ficará o terceiro canal de televisão, e o grupo PRISA tem grande interesse nesta concorrência. Entre as propriedades deste grupo, figura “El Tiempo”, o principal diário colombiano, dirigido pela família Santos. Essa família governa o país. Pelo menos, tem ocupado um lugar importante em ambos governos do presidente Álvaro Uribe. O vice-presidente do país, Francisco Santos, é um dos principais acionistas dessa casa editorial, e o ex-ministro de Defesa, que também é candidato às próximas eleições presidenciais, Juan Manuel Santos, também é acionista e dono do periódico. Não são, pois, só coalizões ou alianças. São verdadeiros consórcios.

Portanto, do fato do presidente Uribe ser elogiado, um governo que a duras penas pode passar um dia sem um escândalo – incluindo fatos criminais, como os chamados “falsos positivos” e situações ainda mais evidentes –, por um governo estrangeiro, o único sentido que se pode concluir daí é que seus interesses estão sendo protegidos. Mas cada dia é menos possível ocultar essa situação. É um governo que vem se mostrando em todas suas facetas de corrupção e criminalidade nos últimos anos.

Creio que sim, que há quem se esforce para manter esse tipo de álibi, para ocultar uma situação tão grave como a da Colômbia, mas também há uma consciência crescente na comunidade internacional sobre o que o governo do presidente Uribe representa realmente. Para dizer claramente, um dos aparatos criminais mais mortíferos e destrutivos que existiu nos países de América Latina.

Alguma vez as vítimas tiveram na Colômbia algum espaço de interlocução com o poder para incidir no que se chama de “legislação de paz” ou na política de construção da chamada “reconciliação”?

Não. O Governo e o Poder Legislativo, em sua grande maioria, respondem aos interesses do aparato criminoso que produz tantas vítimas na Colômbia. Daí que não é um interlocutor, mas um inimigo constante destes processos. Mas apesar do Governo se empenhar, por todas as vias possíveis, para que esses processos não sigam adiante, graças à ação das organizações de vítimas, as organizações de direitos humanos, os advogados e os juízes dignos que o país possui, nos últimos anos houve um avanço efetivo.

Esse avanço se materializou em mais de 100 funcionários estatais presos, entre eles um número significativo de congressistas. Muitos membros da Força Pública começam a ser chamados aos tribunais e o fenômeno da chamada “parapolítica” e os crimes cometidos pelo paramilitarismo ganham evidência, tornando-se reconhecido, na realidade colombiana, o funcionamento do crime de Estado.

Mas isso não se deve ao governo nem à interlocução com o governo, é o resultado de uma luta aguerrida, realizada em condições muito desiguais e sempre perigosas, que levam a cabo as vítimas em suas regiões: os camponeses, os indígenas, as mulheres, muitas associações de pessoas que conseguiram construir este caminho em direção ao respeito pelos direitos humanos no país.

Quando se fala de crimes de Estado, são conhecidas as vítimas dos casos argentino ou chileno, mas a Colômbia á uma “caixa preta”: não há conhecimento de qual à dimensão das vítimas e qual à realidade que você enfrente quando decide não calar e exigir justiça, verdade e reparação.

As cifras são cada vez mais completas e claras. Estamos falando de cerca de 50.000 pessoas desaparecidas na Colômbia nos últimos 20 anos, uma cifra que supera de longe países como Argentina e Chile, e a alguns centro-americanos. Falamos do 10% da população deslocada, mais de 4 milhões de pessoas; mais de 150.000 homicídios e uma grande destruição das comunidades: 18 povos indígenas estão à beira do extermínio em processos que sem dúvida se podem catalogar como genocídios, e também de setores como os sindicalistas e os defensores de direitos humanos, que são vítimas de crimes contínuos durante estas últimas duas décadas.

Na Colômbia, estamos na presença de uma criminalidade do sistema, com múltiplas expressões, que tem a conotação de não ser apenas a violência que se apresenta num conflito armado, senão uma violência que promove o Estado para eliminar, anular, neutralizar, organizações inteiras de ativistas sociais. E uma violência que tem ainda a conotação de intentar apresentar as suas vítimas simplesmente como personagens encobertos que atuam em nome da guerrilha.

Para entender melhor de que estou falando, uso como exemplo só um caso. Há um ano está na prisão Carmelo Agámez. É o líder dos camponeses de San Onofre, um povoado no norte da Colômbia que se converteu numa espécie de campo de concentração – e o digo literalmente, não é um exagero – dos grupos paramilitares. Nesse povoado de 50.000 habitantes, as pessoas foram submetidas durante anos a um regime de campo de concentração onde foi-lhes imposto uma estrita forma de vida: uma hora para despertar e acordar, os paramilitares dispunham das mulheres, das pessoas para escravizá-las como peões em suas fazendas… Em fim, um regime dantesco. Ali, Carmelo Agámez conseguiu organizar o movimento camponês e levou à prisão, não somente os paramilitares, mas também seus aliados políticos, seus chefes políticos. E uma vez realizado esse feito, Carmelo foi acusado de aliado dos paramilitares. Ele, que toda a vida foi uma vítima, terminou sendo acusado por eles, como forma de vingança, para levá-lo à prisão. Há um ano que Carmelo está na prisão. Fui visitá-lo há alguns meses. Na mesma prisão estão 70 pessoas: 69 são paramilitares e políticos aliados dos paramilitares, e Carmelo vive na companhia desta gente. Como pode ver, é uma situação de imensa periculosidade, e, apesar disso, Carmelo segue sustentando sua luta mesmo no cárcere.

A campanha eleitoral já começou na Colômbia, e a retórica belicista com relação à Venezuela trata de render resultados em termos de apoio ao governo, ou de se sobrepor a outros problemas que tem o país. Qual á a opção das vítimas neste contexto, onde parece cada vez mais difícil falar das situações de violação dos direitos humanos e do que é necessário reparar dentro do país?

Creio que nós estamos cada vez mais próximos de uma ação política direta. O movimento de vítimas tem travado a luta jurídica, uma luta para ganhar espaços, mas isso se mostra cada vez mais insuficiente. Não basta levar aos políticos à prisão: há que ganhar espaços políticos. E creio que o movimento social na Colômbia começou uma discussão sobre esse tema. Existem partidos políticos, é certo, mas as vítimas e os movimentos sociais querem ter poder, e querem exercer o poder.

Agora, o que está ocorrendo na Colômbia em relação à Venezuela é uma estratégia de longo alcance. Há que recordar, nos últimos anos produziu-se um após outro, vários golpes de Estado. Primeiro se deu um golpe de Estado contra o presidente Hugo Chávez, posteriormente se intentou dar um golpe contra o presidente Evo Morales, mais recentemente em Honduras houve o golpe impune do senhor Micheletti. O que existe é um plano claramente articulado para acabar com estes governos, e, sobre tudo, para acabar com o processo de integração latino-americana.

O objetivo essencial não é um ou outro governo, à união dos países latino-americanos em torno a uma nova política, uma nova economia, um novo tipo de relações que possam configurar uma força claramente oposta às relações tradicionalmente coloniais e imperiais.

Neste contexto, é claro, o governo do presidente Uribe é uma peça central. Alguns falam já que a Colômbia é uma espécie de aeroporto dos Estados Unidos na América Latina, e creio que não são palavras exageradas. Estamos assistindo uma conjunto de acontecimentos onde foi criada uma plataforma para agredir de maneira evidente esse processo de integração. E nas próximas eleições esse vai ser um tema em discussão, evidentemente, e as vítimas vão tomar partido e opinar para enfrentar esse tipo de projeto que pretende destruir a unidade latino-americana.

Quais são as exigências das vítimas na Colômbia à União Européia e seus governos em termos de política exterior em relação ao Estado colombiano?

Creio que os governos colombianos são tratados com uma extrema indulgência, para falar da maneira mais eufemística. Tolerou-se durante anos, através de declarações supremamente tímidas, uma situação que, de longe, á a mais grave quanto aos direitos humanos no hemisfério ocidental.

Falamos de um país que tem uma guerra de 50 anos, ou 10% de sua população na miséria pelo deslocamento forçado, um país em que os crimes de personalidades e de pessoas que defendem os direitos humanos são fatos cotidianos.

E a tudo isto se intenta sempre atenuar dizendo que são situações produzidas pelo terrorismo, produto da luta contra o narcotráfico.

É hora dos governos europeus deixarem a hipocrisia, enfrentarem os fatos que sucedem na Colômbia com a gravidade que tem e proporem saídas. Não digo que todos os governos se comportem desta forma, mas há setores e partidos políticos na Europa para os quais é tolerável uma situação que, vista de maneira objetiva, não é outra coisa que um imenso rio de sangue. Uma realidade totalmente anti-democrática e contra os direitos humanos.

Rebelión publicou este artigo por solicitação expressa do autor, respeitando sua liberdade para publicá-lo em outras fontes.

Original encontr-se em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=96852

Traduzido por: Dario da Silva