Na Colômbia, camponeses exigem 10 milhões de hectares de terras
Em entrevista exclusiva, o líder da Associação Nacional de Zonas de Reserva Campesina, César Jeréz, analisa a questão rural no país, tema prioritário dos diálogos de paz de Havana
22/03/2013
Matheus Lobo Pismel e Rodrigo Simões Chagas,
de San Vicente del Caguán, Colômbia
O fim do conflito armado colombiano, que já dura mais de meio século, passa necessariamente pela solução do problema agrário. Para discutir um tema prioritário dos diálogos de paz de Havana, organizações camponesas de todo o país reúnem-se nesta sexta-feira (22) e no sábado (23) para o 3º Encontro de Zonas de Reservas Campesina (ZRC), em San Vicente del Caguán, ao sul do país. A cidade, entrada da Amazônia colombiana, recebe cerca de 3 mil camponeses que buscam fortalecer as iniciativas da Associação Nacional de Zonas de Reserva Campesina (Anzorc).
As ZRC são resultado de décadas de acúmulo político do movimento camponês. Em 1994, após uma série de marchas do setor cocaleiro, o projeto – que foi construído pelos próprios camponeses – chegou ao Congresso e virou lei. Desde então, a luta é para que sejam realmente viabilizadas. “Atualmente, existem seis zonas de reserva oficializadas. Outras sete já cumprem os requisitos e querem se constituir ainda neste ano. E há várias que ainda estão se inteirando, convencendo-se de que a luta deve ser por aí”, explica César Jeréz, porta-voz da Anzorc, que responde por 50 processos organizativos e territoriais que pretendem tornar-se ZRC.
Em resumo, as Zonas de Reserva Campesina servem para garantir a democratização da terra, um primeiro passo em direção à reforma agrária. São instrumentos jurídicos para que o camponês não seja forçado a se deslocar de seu território devido ao interesse de mineradoras multinacionais ou de latifundiários. Os planos de desenvolvimento das ZRC preveem sistemas produtivos sustentáveis, além de apoio técnico e financeiro que deem estabilidade e segurança ao pequeno agricultor.
A proposta para o tema agrário das FARC em Havana inclui a reivindicação de 9,5 milhões de hectares para a criação de 59 ZRC. Com o término de mais uma rodada de conversas na quinta-feira (21), o chefe da delegação do governo, Humberto de la Calle, se pronunciou otimista em relação aos avanços da mesa na questão rural. Mas, em relação às ZRC, disse que o governo pretende reformulá-las e que, de maneira nenhuma, terão autonomia institucional e política.
A mesma cidade onde hoje acontece o encontro fez parte da zona desmilitarizada dos diálogos de paz de Caguán, entre 1999 e 2002. Como atividade do evento, os camponeses entregarão formalmente propostas às partes da atual mesa de diálogos em Havana, Cuba. O governo enviará um representante para receber o documento, enquanto as FARC participarão através de videoconferência.
Na cerimônia de instalação do encontro, estiveram presentes o prefeito de San Vicente del Caguán, Domingo Emílio Perez, a diretora do Instituto Colombiano de Desenvolvimento Rural (Incoder), Miriam Villegas, o representante do ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural Andrés Bernal, e o porta-voz da Anzorc César Jeréz.
Tanto a diretora do Incoder, quanto o representante do ministério da Agricultura, rechaçam a possibilidade de autonomia às ZRC. Miriam Villegas reafirmou o compromisso com o fortalecimento das Zonas de Reserva Campesina, independente do que ocorra nos diálogos de Havana, “mas não o modelo proposto pelas FARC, e sim o que já existe e está previsto em lei”.
Em seu discurso, Jeréz enfatizou que o país vive um “momento chave para a paz” e que “apesar do que vem publicando a grande mídia, o encontro não é financiado pelas FARC”. Também esclareceu que as propostas sobre ZRC não foram elaboradas pela guerrilha, mas apenas sistematizadas a partir de dezenas de fóruns populares sobre a questão agrária. Recordou o prejuízo que representou o governo do ex-presidente Álvaro Uribe para os movimentos sociais colombianos e reiterou a importância de participação das organizações camponesas na mesa de diálogos de paz em Havana.
Na última sexta-feira (15), entrevistamos César Jeréz em Bogotá. Além de porta-voz da Anzorc, Jeréz é um dos líderes da Associação Campesina do Vale do Rio Cimitarra (ACVC), que recebeu o Prêmio Nacional de Paz em 2010. Confira abaixo:
Gostaríamos que você começasse com um resgate histórico das mobilizações campesinas até chegar à elaboração das Zonas de Reserva Campesina.
César Jeréz: Primeiro temos de ter claro que o conflito social tem sido historicamente pela terra, pela sua formalização, pelo desenvolvimento dos territórios campesinos. Um dos eventos mais importantes na história recente é a guerra entre liberais e conservadores, nas décadas de 1940 e 50. Liberais, pequenos proprietários, e conservadores, latifundiários. Chamam essa guerra de liberal-conservadora, mas, no fundo, foi uma guerra pela terra. Essa guerra se soluciona com a chegada de uma ditadura militar, a última que tivemos, e depois com um pacto entre liberais e conservadores que se chamou Frente Nacional, para revezarem-se no poder, mas sem resolver o problema agrário.
Nesse processo, foram formadas algumas guerrilhas liberais para responder à agressão dos conservadores. Reivindicavam fundamentalmente a terra. Um aspecto muito importante foi a influência das revoluções russa e cubana. Isso dá dois enfoques sobre o problema da terra: o enfoque dos comunistas e o da teologia da libertação. Os comunistas, nas zonas rurais do partido, começam a influenciar os guerrilheiros liberais. Começa uma transição política ideológica.
A ditadura de Rojas Pinilla [1953-1957] faz acordos para desmobilizar guerrilheiros, mas não os cumpre, como sempre. Assassinam guerrilheiros liberais e isso gera muita desconfiança nos guerrilheiros que ainda estavam nas montanhas. Essa é a história de Manuel Marulanda [principal idealizador das FARC]: não se desmobiliza porque fica desconfiado de que não cumpram o acordo e o matem.
No começo ele era liberal…
Neste momento, era liberal e vinha nesta etapa de influência comunista. Há um momento de contradição entre os guerrilheiros liberais e alguns já se tornam comunistas, guerrilheiros comunistas. É a origem das FARC. Essas guerrilhas eram de autodefesa de massas e se concentram em certos territórios, como Marquetalia, El Pato, Rio Duda, zonas de colonização camponesas, e se estabelecem aí para resistir.
A teoria dos conservadores diz que são repúblicas independentes de comunistas e aí vem toda a agressão. Na resposta é que realmente se configura a guerrilha das FARC. Prestem atenção: eles se concentram em um território para ter terra e começar uma economia campesina, mas chegam até lá e são atacados.
Há uma tendência história entre movimentos guerrilheiro e campesino. As guerrilhas, como as FARC e o ELN, sempre influenciaram os movimentos sociais. Tem existido uma relação e isso não se pode negar. Uma relação política. A única diferença são as formas: armada ou de movimentos.
O movimento campesino sempre esteve na história do país por esse mesmo contexto: problema da terra não resolvido, uma reforma agrária que nunca foi feita e exercício de violência a todo o tempo para despojar campesinos, proporcionar deslocamentos. Isso sempre foi funcional ao modelo de desenvolvimento, porque este campesinato se tornou mão de obra barata nas cidades. Percebam que esse problema da terra é funcional ao modelo de desenvolvimento do país. Ou seja, para “eles” este status quo não é somente normal, é beneficiário. Por isso que não querem resolver.
O movimento campesino da Colômbia sempre teve como bandeira histórica a reforma agrária. Sempre foi um movimento dinâmico, mas sempre foi perseguido. O maior acúmulo dos movimentos sociais foi nos anos 70 e, nos anos 80, já vêm todas essas práticas de contra-insurgência, doutrina de segurança nacional, “inimigo interno”… Pensavam que a influência das revoluções cubana e soviética ia fazer triunfar revoluções na América Latina.
O impacto nos movimentos sociais foi forte: ciclos repressivos que se repetem, um mais forte que o outro. Isso explica a situação atual do movimento campesino. Está em recomposição, sobretudo depois dos dois períodos de Uribe que foram muito repressivos. Existe uma correlação de forças desfavorável nas Zonas de Reserva, onde já não podemos impor reforma agrária. É parecido com o Brasil: o MST é grande, mas não tem força suficiente. Então começam a ser criados mecanismos para garantir ao menos certos níveis de reforma agrária.
Com o acordo de paz de Uribe, nos anos 1980, começa-se a falar de ZRC. Depois nos 1990, com a mobilização dos campesinos cocaleiros, é quando se assume essa proposta de ter territórios campesinos que se chamam Zonas de Reserva Campesina.
Conquistam a lei 160 em 1994 e, dois anos depois, conseguem que se crie uma regulamentação. As ZRC são efetivamente um acumulado e têm duas linhas: político-social, que é a parte organizativa e, desde 1994, a linha administrativa que é a interlocução com o Estado, exigindo o cumprimento da lei. Por isso há zonas de reserva formalmente reconhecidas pelo Estado e há uma maioria que são de fato, mas que o Estado não quer constituir juridicamente.
Durante os dois governos de Uribe, a repressão foi tão forte que muitas organizações deixaram isso quieto. A nossa foi uma das que conseguiu manter a luta pelas ZRC.
Anzorc ou a Associação Campesina do Vale do Rio Cimitarra (ACVC)?
A ACVC. A Anzorc havia sido criada há 12 anos, antes de Uribe, mas pela pressão, não tinha condições de consolidar-se. Quando muda o governo e Santos tem que atender à pressão do movimento campesino, fazer acordos de novo e reativar as ZRC (ao mesmo formalmente), começamos a reconstruir a Anzorc.
O certo é que é a expressão mais importante agora. A Anzorc conseguiu fazer que o Estado a reconheça como interlocutor político, que faça acordo com a gente. Existem diferentes relações com setores sociais, instituições, Igreja, partidos políticos, guerrilhas. Ou seja, Anzorc pretende ser um interlocutor com todo o espectro para fazer valer sua proposta, para legitimá-la.
O acumulado pode se resumir no que está acontecendo neste momento, no qual há um movimento campesino que está se recompondo e há um processo de paz onde se toma esse ponto como uma possibilidade de começar a solucionar o problema da terra.
Neste momento, em Havana, estão sentados para falar sobre as ZRC. Esse é o tema mais conflitivo, porque a guerrilha exigiu que se começasse a solucionar o problema com 9,5 milhões de hectares. O Estado e os meios de comunicação dizem que isso é descabido, mas a Colômbia tem 35 milhões de hectares para as vacas, para a pecuária. Este ano vão entregar para as multinacionais, para a grande mineração, mais 20 milhões de hectares. É um problema de uma negociação em que o governo quer que as FARC se desmobilizem e as FARC fazem propostas de reformas. Reformas que, no tema da terra, são estruturais. Começariam a resolver o problema da terra.
Nesse sentido, as organizações campesinas estão em grande destaque. Um reflexo disso é o escândalo midiático. Todos os dias atacam as zonas, atentados, agressões… Este momento é histórico, mas também muito perigoso. Se firmam acordos de paz, pode haver uma dinâmica progressiva. Se não, volta um ciclo repressivo muito forte. Esse é o risco. Pode ser que tenhamos que ir para o Brasil… A coisa fica complicada.
E quanto ao Plano de Desenvolvimento Econômico. Existem estudos para que se viabilizem as Zonas?
Sim. Todos os planos de desenvolvimento já têm os programas, projetos, planos de investimento… Tudo está formulado. O problema é que o governo diz que não tem dinheiro para financiar.
Outro problema é que, durante os oito anos de governo de Uribe, se desmontou a pouca institucionalidade agrária que havia. Agora se quer fazer acordos e o governo não conta com as ferramentas, nem com gente, nem com dinheiro. Os planos de desenvolvimento são multimilionários, porque são “aqui não tem nada e vamos começar a pôr educação, saúde, infraestrutura”.
Mas, se há um acordo para o fim da guerra com as FARC, não se justifica ter um exército de 500 mil homens, nem investir 7% do orçamento nacional em guerra. Esse dinheiro tem que ser revertido em um plano de desenvolvimento rural que garanta o desenvolvimento dos territórios camponeses com um fundo de terras, com um fundo de financiamento, que pode vir do que se economize com o investimento na guerra, mas também dos recursos que tem o país.
Está comprovado que a economia camponesa em todo o mundo é um motor de desenvolvimento. Então nós dissemos “pronto, territórios para economia campesina, territórios para agroindústria, cadeias produtivas, mas com condições, para que se redistribua o benefício”. Não estamos em uma postura fundamentalista: “reforma agrária, socialismo”. É uma questão de tática e estratégia. Quando você está fraco, não pode querer impor algo que não é capaz… Nós dizemos que, se há processo de paz e há um impulso nas Zonas, nós podemos nos recompor e avançar mais, porque aí sim teremos garantias.
Queremos ir para Havana para expor diretamente nossas propostas. Já mandamos uma carta aberta, que foi o que suscitou todo este escândalo midiático, porque nós dissemos “vamos para Havana, queremos ir para Havana!” e todo mundo reagiu. As FARC responderam e quando falam é como se falasse o diabo. Ficamos nós tendo que lidar com toda essa questão.
E os acordos que já se conseguiram anteriormente com o governo, como estão?
A maioria não está sendo cumprida. O único ganho da lei, da regulamentação, que é muito restrita, é um mecanismo que limita a propriedade nos territórios campesinos, que se chama UAF (Unidade Agrícola Familiar): um limite de terra mínimo para garantir sua renda básica familiar. Na teoria, deve impedir que as pessoas concentrem mais que esse limite, mas se viola em todo o país. Faz parte do problema que temos que solucionar.
E a influência dos militares.
Terrível. Militares, narcotraficantes, Álvaro Uribe, grandes empresas, agronegócio, tudo isso que é muito próximo. Eles são esse núcleo que todos os dias, de maneira coordenada, estão lançando ataques. Querem arrebentar o processo de paz aqui neste tema das Zonas de Reserva Campesina. É toda uma estratégia dos meios. “Aqui é o ponto onde vamos romper, porque não podem entregar as zonas de reserva às FARC” (risos). É um ponto de inflexão. Caso passe desse ponto pode haver continuidade.
Santos demonstra vontade política?
É difícil falar de vontade política desses caras. São muito pragmáticos. O enfoque do governo é negócio, negócio para desmobilizar. E o enfoque das FARC é: “não estamos derrotados, não estamos fracos, estamos em todo país. Sofremos golpes, mas queremos o processo e temos estas propostas, que são de caráter reformista”. São reformas. Levar o capitalismo ao campo (risos). O campo na Colômbia é feudal. Tem que se pensar por onde se abre a autonomia territorial de maneira transitória, uma transição democrática, porque revolução não vai ter. Aqui há muito dinheiro investido em armas. Temos os gringos aqui…
Um horizonte dos movimentos camponeses pode ser brigar por uma autonomia territorial, onde nós mandamos, administramos, ordenamos o território e a economia. Mas eles não querem saber disso. Os indígenas, os afrodescendentes já têm, mas os campesinos não podem ter. Identificam-nos como um opositor político muito mais forte. O campesinato que tem sido um problema histórico.
Qual o tamanho da esperança para que o governo convide a Anzorc à mesa?
Muito difícil. Hoje as FARC soltaram um pronunciamento no qual dão a entender que por eles não há problema. Mas o governo… Tem que haver acordo entre as duas partes.
Pode ser que cheguem a um acordo sobre as ZRC sem ter escutado a Anzorc?
Pode ser que sim, porque às FARC interessa manter a mesa. Ao governo interessa rompê-la. Inclusive podem deixar isso como que em suspensão, como dizem os gringos, “stand by”. Porque se eles se fecham, o governo diz “pronto, não querem? Levantemos”.
O que esperar do Encontro de Zonas de Reservas Campesina?
Pode ser um fato político. Primeiro, o debate, encontramo-nos, recolher insumos, propostas, mostrar gente e mostrar força. Fazer alguns acordos com instituições, amigos. Isso pode ser importante. Mas, além disso, só nos resta brigar. Ou seja, mobilizar milhares de camponeses. Para impor um fato político aqui tem que paralisar parte do país.
E não é uma maneira de pressionar para ir à Havana?
Não somente ir, mas pressionar para que lá haja um acordo imposto por nós. Temos que medir as forças e, por enquanto, é muito difícil.
O que você conhece do MST? Mantém relações?
É uma referência importante. Um movimento que tem muitas coisas para ensinar, porque carrega um grande acumulado de luta. Eu estive no Brasil várias vezes reunido com o MST. Sabemos que há diferentes linhas políticas, por isso, o fato de que se manterem unidos em torno da reforma agrária é uma referência importante. O modelo de escola própria, o modelo de formação nos assentamentos, a agroecologia que conseguiram desenvolver, a coordenação a nível internacional, o papel importante na vida do camponês. Toda essa parte simbólica, as místicas, o papel das mulheres. Aqui, por exemplo, ainda há muito machismo político na esquerda a ser superado.
Nós mantemos uma relação importante com o MST. Agora a iniciativa da ANZORC vai ser ingressar na Via Campesina. Há vários líderes do MST que conhecem o processo das ZRC e estiveram presentes no primeiro Encontro em Barrancabermeja [em 2011, que reuniu mais de 30.000 pessoas]. Também nos interessa fortalecer essa relação e esse respaldo tão importante.
Fotos: Matheus Lobo Pismel e Rodrigo Simões Chagas