No Rio, missa por ‘morte de manequins’ denuncia mídia e violência policial
Em tom de humor, manifestação alerta para a atenção dada à depredação de uma loja de roupas, enquanto moradores de favelas sofrem criminalização. Manifestações contra governador Sergio Cabral e a criminalização de atos públicos e da pobreza ocorrem paralelamente à visita do papa
Um protesto na esquina da quadra onde reside o governador fluminense, Sergio Cabral (PMDB), “celebrou” ontem (25) a “Missa de Sétimo Dia dos manequins da Toulon”. O ato teve o objetivo de denunciar a comoção da mídia tradicional com o saque de roupas a uma loja de roupas de grife, no último dia 17, em detrimento da gravidade de uma série de denúncias de violações de direitos humanos.
A manifestação ocorreu simultaneamente à missa celebrada pelo papa Francisco para fiéis católicos, em Copacabana, como parte da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Foi lembrado o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, morador da Rocinha, que no dia 14 de julho foi detido “para verificação”.
O ato também repudiou a violência policial, como a registrada no Complexo da Maré, durante uma operação do Bope, que deixou ao menos 10 mortos no mês passado e reforçou denúncias de infiltração de militares para tumultuar manifestações populares.
Daniele de Aguiar Sousa, de 30 anos, participante da Jornada, resolveu trocar a missa pelo protesto. “Eu sou católica, da Renovação Carismática, mas estou achando um absurdo isso que estão fazendo. Em nome da Jornada, eu apoio o pessoal. O movimento é muito digno”, afirmou. “O que está acontecendo com eles é uma coisa absurda. A própria polícia jogando coquetel molotov em outros policiais para incriminar as manifestações é inaceitável”, defendeu a estudante.
“Hoje eu vim de padre para celebrar a missa de sétimo dia dos manequins. Afinal, eles estão precisando muito mais da nossa atenção do que os dez moradores mortos no Complexo da Maré e os muitos desaparecidos, como o Amarildo”, ironizou o estudante de Matemática Thiago Verbicalio, 23.
Pai de seis filhos, Amarildo, de 42 anos, dividia com a mulher, Elisabete, um barraco de apenas um cômodo, sem banheiro, e cerca de R$ 300, salário que ganhava trabalhando em uma obra na zona sul. Ele desapareceu após ser levado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Em seus 42 anos de vida, o ajudante de pedreiro sempre conviveu com o esgoto a céu aberto de Pocinho, área pouco conhecida da Rocinha, dominada pela tuberculose e pelo tráfico.
Na quarta-feira (24), Cabral se reuniu com Elisabete e prometeu “mobilizar todo o governo para descobrir onde está Amarildo e identificar os responsáveis pelo seu desaparecimento”. Na semana passada, os quatro policiais militares investigados no caso foram afastados. A PM alega que o pedreiro foi levado a uma UPP por ser fisicamente parecido com um traficante procurado na operação Paz Armada – organizada para prender traficantes – e depois foi liberado – mas, desde então, Amarildo sumiu.
“O Amarildo é mais um de vários”, afirma o escrevente Paulo Henrique dos Santos, 30 anos, ex-morador do Complexo do Alemão. “Todo mundo sabe o que acontece, mas ninguém fala. É uma ditadura velada na comunidade”, explica. “Eu abro a mão para o Cabral por ter feito a UPP e expulsado as armas, mas a droga ainda continua.”
Para o ator João Dabul, 20 anos, é preciso ter cuidado: “A gente foi para Manguinhos [comunidade do Complexo da Maré] tentar cobrir uma manifestação que aconteceria por lá, mas o policiamento foi tão ostensivo que o protesto nem pode acontecer”. “O que está acontecendo na zona sul agora é uma pequena parcela do que acontece há anos nas favelas”, conclui.
Policiamento de multidão
A grande novidade do ato desta quinta-feira foi o surgimento de uma nova divisão da polícia militar fluminense: a de policiamento de multidão. “São cinco unidades, cada uma com 20 policiais, que fazem uma linha mais próxima da multidão”, explicou o coronel Mauro, responsável pela operação da nova divisão.
Segundo o coronel, “a PM não estava preparada para esta nova realidade de grandes multidões no Rio de Janeiro. Para tanto foi feito um estudo de caso com o objetivo de preencher esta lacuna. Hoje faremos nossa primeira experiência”. Os policiais foram criticados por não portarem a tarja de identificação.
Ao longo do protesto os PMs ficaram em meio aos manifestantes, mostraram-se abertos ao diálogo e, vez ou outra, solicitaram revistar os pertences de alguns dos presentes. Quando questionado sobre as revistas, o coronel afirmou que, “com base na fundada suspeita, a polícia pode revistar qualquer cidadão”.
Uma faca foi achada na mochila de um jovem que chegou a ser retirado da multidão. Ele teria sido levado para a 14ª DP (Leblon) para averiguação. A informação não foi confirmada pela Polícia Civil.
Guaratiba é do Barata
Em função da chuva, o comitê organizador local da JMJ cancelou, nesta quinta-feira, a programação do papa Francisco em Guaratiba, zona oeste do Rio. Uma vistoria no local verificou que a lama inviabilizou a ida do pontífice ao local. Há 40 dias, os moradores da região já alertavam que Guaratiba não tinha infraestrutura para receber a JMJ.
Até o momento ninguém esclareceu o total dos gastou realizados no Campus Fidei: uma área de 1,7 milhão de metros quadrados, dividida em 22 lotes, onde estavam sendo finalizados um palco de 75 metros de largura, 15 postos médicos, 4.400 banheiros, 32 telões de LED, 52 torres de som e 83 torres de segurança, entre outros equipamentos.
A prefeitura garante que não teve gastos diretos no terreno, mas, apenas a dragagem dos rios próximos custaram R$ 26 milhões aos cofres públicos. Entre os proprietários do terreno está Jacob Barata Filho, um dos maiores empresários de ônibus da cidade. Com o cancelamento da agenda do papa, ele e os demais donos do Loteamento Vila Mar serão os únicos beneficiados das obras já realizadas no local.
“Esse e todos os demais atos fazem parte de uma jornada de luta que a gente está fazendo, não só no Rio, mas em todo Brasil, em defesa do nosso dinheiro, que está sendo retirado dos cofres públicos para beneficiar interesses particulares”, analisa a produtora Luiette Ornellas, 40 anos.
Ela lembra que, segundo pesquisa Ibope divulgada na quinta, o governador do Rio é o pior entre todos avaliados. “Então nós estamos aqui para fortalecer os nossos 92% de rejeição ao Cabral, dizer que nós não queremos mais ele como nosso governador e também que somos contra a repressão e a falta de liberdade de expressão.”
Controversa por esconder o nome e exibir apenas letras e números na farda, a nova divisão da PM acompanhou os mais de mil manifestantes até pouco depois da meia-noite. Foram quase oito quilômetros do Leblon ao Leme. Pelo caminho muitos peregrinos, assim como a jovem católica Daniele, juntaram-se ao protesto.
No momento da dispersão, PMs correram, supostamente, em perseguição a um homem. Uma bomba de gás lacrimogêneo foi lançada para impedir que os manifestantes corressem atrás. O clima de tensão foi desfeito com diálogo. O ato acabou por volta de 1h30.