“Hoje eu vejo que bandido é o Estado”
Gustavo Dopcke, preso no dia 15, no Rio de Janeiro, na manifestação em apoio a greve dos educadores, conta como foi a experiência do cárcere.
Resolvi transcrever parte do depoimento do manifestante preso em 15 de outubro de 2013, no Rio, por causa da força desse relato e da palavra escrita. E para que não pairem dúvidas sobre o fim do Estado Democrático de Direito no Rio de Janeiro, apoiado pelo governo federal. Ninguém precisa ter bola de cristal para saber quais serão as consequências desse Estado policial. Não coube num post comum do facebook. Publico a transcrição nesse formato de ‘nota’.
“Os policiais revistaram minha mochila, aí encontraram: o respirador e o leite de magnésia.
_ O senhor está preso.
Daí a gente foi enquadrado nesse crime de formação de quadrilha ou bando.
A delegada não mandou a tempo o documento, dizendo que agente estava sendo preso e pelo que a gente estava preso. Então, os nossos advogados não conseguiram entrar com o habeas corpus a tempo. Então, foi o segundo sequestro. Ocorreu quando a gente saiu da 25 DP e foi levado para o (presídio) Patrícia Aciole. Até lá, os advogados não podiam fazer nada pela gente, porque estava todo ocorrendo fora da lei.
Lá, começou a tortura psicológica. Eles começaram a xingar a gente de ‘vândalo de merda’, do que fosse. Eles colocaram a gente para esperar na chuva, com água até o joelho (…). Depois a gente entrou, a nossa roupa foi confiscada, a gente recebeu uma bermuda, uma camiseta branca, e depois todo mundo teve o cabelo raspado. (…) A revista íntima é feita assim: você é colocado nu, aí eles mandam você fazer alguns movimentos para eles poderem ver toda a parte do seu corpo. Daí a gente dormiu ali aquela noite.
Na outra madrugada, a gente foi acordado e levado para Bangu. Aí recomeçou toda a tortura psicológica. Eles xingaram a gente do que dava pra xingar. Colocaram a gente numa fila, agachado. Daí a gente ficou agachado lá, até você não sentir mais a perna. (…) Inclusive, eles sentem muito prazer em torturar a pessoa nesse momento. (…)
Daí a gente foi colocado em dois camburões, onde você não enxergava nada, com algema (…) Chegando em Bangu, eu quase vi meus companheiros sendo torturados, vi eles estenderem a mão e o SOE batendo com a força que tinha. Lá dentro, eu fui descobrir qual era a história: a gente foi transportado com dois que estavam sendo acusados de tráfico, um de estupro e um de assassinato. E o que estava sendo acusado de estupro, eles tentaram queimar o cara lá dentro. Quando a gente saiu, eles queriam saber quem tinha fornecido cigarro e isqueiro para aqueles dois. Então, eles começaram a bater nas mãos dos meninos, até descobrir.
Daí, ali em Bangu a gente foi colocado em pé. Daí, novamente, você tira a roupa, põe a roupa, faz revista.
A gente ficou por volta de duas horas lá. Nessa hora, um dos meninos precisava ir ao banheiro. Daí ele pediu umas dez vezes para ir ao banheiro. Não conseguiu segurar, fez ali mesmo. Então, a humilhação é constante.
Daí, em Bangu, a gente ficou lá um tempo. A gente foi muito bem tratado pelos outros prisioneiros. Toda a ideia que eu tinha de bandido mudou. Hoje eu vejo que bandido é o Estado. O Estado que criminaliza, que colocou as pessoas ali. (…)
Eu dormi uma noite ali em Bangu. Eu sei como fazer faca de cadeia. Eu sei como agir em caso de rebelião. Então, eu tive um curso rápido de como sobreviver na cadeia (…)
Daí eu saí, comuniquei minha família, porque até então, você não tem direito a ligação. Desde esse dia, eu fiquei uma semana sem dormir direito. Eu nunca tive pesadelo na minha vida, estou tendo. Eu não estava saindo, comecei a sair hoje. Estou tentando enfrentar. Então, o trauma ficou. Era isso que eles queriam.
Por mais militante que a gente seja por mais que a gente estude, realmente só ficou claro lá que esses bandidos são os que mais me ajudaram. Um emprestou o chinelo para eu atender meu advogado. Porque em todo momento, você só tem a bermuda e a camiseta. .(…) Eu descubro que eles têm muito mais humanidade que qualquer outro.
A polícia, é muito triste de dizer, não sei se tem alguém aí que faz pesquisa em psicologia, a fração de sádicos na sociedade, eu ouvi uma vez dizer que tinha 1%. Se pesquisar na polícia, eu garanto que vai encontrar um número bem maior. Não sei se eles são incentivados, ou há uma pré-seleção. Mas o sadismo ficou claro: eles têm um prazer enorme em ver você sofrer, e te diminuir.
Eu sempre estudei que o Estado servia para colocar o pobre na pobreza. Para não permitir que o pobre tivesse acesso às riquezas que o país tem, e às coisas que ele produz. Acho que a maior lição é que isso daí ficou claro. Então, você tem a mídia, a Globo, que convence todo mundo que eles são bandidos e que o Estado está certo ao fazer isso, em não dar acesso a essas pessoas para saírem da pobreza.
Daí, se agente reclama, o Estado chama a polícia pra bater na gente. São outros pobres também, ali não tem nenhum rico. “
7 de novembro de 2013 às 18h30min