Na Colômbia, a vida está em Marcha
Quando recebeu o prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez utilizou os minutos que lhe foram concedidos para revelar ao mundo uma face escondida da América Latina. Na ocasião, referia-se ao continente como possuidor de uma história marcada por dores e violências desmesuradas, por injustiças e amarguras históricas, desaparecimentos políticos, exílios e incontáveis mortes cotidianas.
Como em seus livros, o autor transita entre a história, a política, o cotidiano e a fantasia. Em determinada altura do discurso, vai além. Dirigindo-se a um público europeu, Gabo faz considerações sobre o método: frente à Academia Sueca de Letras, critica os europeus por tentarem adequar nossa realidade a um inválido método de análise, por compararem nossas realidades diferentes com as mesmas medidas, desconsiderando que os estragos da vida não são idênticos a todos. O discurso é breve, no entanto, assim como toda a sua obra, um grande trabalho de reflexão sobre a realidade latino-americana. Através de poucas linhas revela a grande solidão de um continente, que já dura muito mais de cem anos.
Possivelmente, a sensibilidade do autor para traduzir em palavras toda essa solidão e sua razão para se fazer uma crítica ao método vinham de suas próprias observações cotidianas em seu país de origem, onde todos esses traços parecem ser potencializados, onde a dor, a injustiça, as amarguras e os crimes políticos parecem assumir sua forma mais dura, partindo assim de seu particular para chegar ao universo latino.
Há poucos dias estive na Colômbia junto com outros camaradas do PCB e companheiros de outras organizações para uma visita de solidariedade internacional promovida pela Marcha Patriótica. O objetivo da visita era claro, levar uma delegação internacional para ter contato com a realidade do país, realizar um intercâmbio político e garantir uma ampla rede de solidariedade internacional ao povo colombiano, uma vez que esse apoio é fundamental para ajudar na correlação de forças na Colômbia.
O constatado não foi diferente do esperado, mas nem por isso menos preocupante; afinal, a Colômbia é um dos países mais perigosos do mundo para aqueles que se atrevem a lutar. Colecionando mais de 9.500 presos políticos, bate recordes em número de perseguições políticas, assassinato a camponeses, prisões a líderes estudantis e montagens judiciais. De todos os países, é o mais perigoso para se fazer trabalho sindical.
Assim é a Colômbia, um país marcado por uma forma autocrática de dominação burguesa, onde sempre se coibiu e reprimiu qualquer tentativa de participação popular nos processos políticos e sociais. Processos de repressão que podem assumir distintas formas, desde a desaparição física de militantes até tentativas de silenciamento mais sofisticadas que passam pela estigmatização dos movimentos sociais até as toscas montagens judiciais, claramente forjadas, que fazem com lideranças populares.
Em dezembro do ano passado, durante o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, me encontrei no Equador com algumas dessas lideranças sociais da Colômbia. Sempre pela noite, após uma intensa jornada de trabalho com dezenas de reuniões, articulações políticas e debates, por acaso nos encontrávamos sempre no mesmo bar. Ao lado da nossa delegação, claramente esgotada, estava a colombiana, sempre disposta a dançar até a última música. Em determinada altura do Festival algum de nós perguntou a um dos que dançava da onde vinha tanta força. A resposta veio de pronto: o camarada disse que dançava daquela maneira pois não sabia quando poderia dançar de novo.
Dias depois, esse mesmo camarada seria preso em mais um desses claros casos de montagens judiciais. O grau de profundidade dessa resposta e seu significado político só pude compreender há poucos dias, vivenciando a realidade colombiana.
Provavelmente, é essa mesma incerteza em relação à vida que têm os camponeses das áreas rurais que visitamos, que nos apresentaram queixas das explorações de empresas transnacionais que, construindo hidrelétricas ou explorando minério nas margens dos rios, destroem todo um ecossistema, degradando pouco a pouco as condições de vida desses camponeses.
Entre as empresas citadas pelos camponeses estava a Petrobras que, com financiamento e apoio do governo brasileiro e do Estado, se expande para países vizinhos na América Latina, causando sérios problemas sociais. Os aviões tucanos, produzidos no Brasil e exportados para a Colômbia por meio de um acordo militar entre esses países, são apelidados por esses mesmo camponeses como “aviões caveira”, responsáveis por centenas de bombardeios a vilas camponesas.
A isso somam-se as constantes ameaças, tanto por parte dessas empresas quanto do governo, que, através do exército e do paramilitarismo, é responsável pela prisão e assassinatos de centenas de seus líderes. Durante nossa viagem ao campo, paramos para fazer uma visita a uma escola rural. Além das precárias condições materiais da escola, ao seu lado despontava-se um campinho de futebol, onde cerca de meia dúzia de crianças jogava bola de maneira despreocupada. Difícil olhar pra essas crianças e enxergar os “terroristas” estigmatizados pelos grandes meios de comunicação. Duro saber que uma parte delas, em pouco tempo, pode perfeitamente virar estatística entre os falsos positivos.
Parte desses camponeses que conseguem escapar da prisão ou da morte vem sendo sistematicamente separada de suas terras em um processo de expropriação extremamente violento. Hoje, o problema agrário na Colômbia consiste em um dos pontos centrais de qualquer projeto de transformação e é onde se dá o maior acirramento das lutas.
Essa mesma sensação de desrespeito à vida e violação de seus direitos pude perceber nos depoimentos das mães de Oscar Eduardo Gasca, Fabian González Sierra e Jorge Eliecer Gaitán, jovens estudantes que há anos já amargam nas piores condições carcerárias uma prisão injusta, com acusações infundadas, e que sequer têm o direito de uma ampla defesa. Eles são apenas uma pequena parte da lista de 400 presos de consciência que possui a Marcha Patriótica.
Por mais paradoxal que possa parecer, foi justamente nesse país de descaso à vida que vi uma de suas manifestações mais bonitas, mais humanas. Retomando o discurso de García Márquez, é como se frente à opressão, ao saque, ao abandono, o povo colombiano respondesse com a vida. Assim respondeu na manifestação do dia 01 de maio, levando à rua milhares de trabalhadores e estudantes. Comparada aos atuais eventos do 01 de maio no Brasil, onde cada central faz seu ato separado, onde se sorteiam carros, faz-se show com subcelebridades, cabendo apenas à esquerda mais combativa discutir política, essa experiência foi sem dúvidas uma aula de unidade política entre os diversos.
Às perseguições aos camponeses contrasta-se um alto grau de mobilização desse setor, hoje um dos principais responsáveis por impulsionar os processos de transformação no país. Chegamos ao campo justamente no momento em que se preparava o Paro Agrário, Étnico e Popular, paralisação organizada pelos camponeses não somente para reivindicar suas demandas mais imediatas, mas, para a partir delas, colocar em discussão um projeto de poder, de transformações sociais.
Essa mesma clareza da necessidade de um projeto político de disputa de poder combinado a um discurso extremamente bem articulado, vi nas lideranças estudantis, algumas com idade suficiente para fazer-me sentir um veterano. O simples ato de estar dentro da universidade nos faz sentir vivos: os cartazes colados, os muros pintados, estudantes discursando ao microfone e convocando para atividades políticas, mostram a importância que têm na luta os estudantes que se identificam com o sofrimento de seu povo.
Unificando as mais distintas expressões dos movimentos sociais no país, está a bandeira da Paz. Para nós, pode soar um pouco estranho, já que ao falar das manifestações pela paz rapidamente lembramos das passeatas na praia de Copacabana, da classe média vestida de branco clamando pelo aumento do efetivo policial, por mais UPP, por uma política de controle de natalidade para os pobres, etc.
Na Colômbia, dada a particular trajetória de sua formação social, onde, de forma autocrática, a burguesia sempre se utilizou das formas mais violentas de coerção, onde através de um discurso “antiterror” criminaliza o conjunto dos movimentos sociais e tenta obter um respaldo para sua política de massacre social, pedir a paz é condição básica para abrir caminho para qualquer tipo de transformação radical.
Claro que é uma bandeira em disputa. O termo figura no programa político de todos os partidos políticos e candidatos à presidência, ainda que seu conteúdo seja totalmente diferente. Se de um lado Zuluaga, candidato de Uribe, assim como os outros candidatos da ordem, defendem uma paz de cemitério, em que seja silenciada a voz dos trabalhadores e dos movimentos sociais organizados, uma paz extremamente funcional aos interesses do desenvolvimento do capitalismo na Colômbia, os setores de esquerda, tendo à frente a Marcha Patriótica, propõem a paz com justiça social, que é dizer uma paz em que sejam levadas em consideração todas as demandas históricas do povo colombiano. É necessário, pois, acabar não somente com a guerra, mas com todas as condições sociais que a engendra, ainda que tenhamos a ciência de que isso não seria possível nos atuais marcos da sociedade do capital, mas tão somente no socialismo.
Os gritos de paz com justiça social da rua são fortes o suficiente para atravessar o mar do Caribe e ecoarem na mesa de negociação de Havana, onde as FARC-EP e o governo colombiano tentam uma saída para o conflito, iniciativa que só foi tomada, pelo governo, devido às grandes manifestações de massa e à força política que há mais de 50 anos as FARC representam. Há anos, os heroicos insurgentes das FARC já sinalizam sua vontade de estabelecer uma solução política para o conflito, dando inclusive provas unilaterais desse desejo. O avanço das negociações, assim como a abertura de diálogos com outros setores em luta, são condições fundamentais para o aprofundamento das lutas.
Saindo da Colômbia e retomando o cenário da América Latina, vemos que há anos nosso país vizinho vem recebendo contingente e bases militares, se tornando uma espécie de Israel da América Latina. Nas recentes tentativas de desestabilização do processo venezuelano, ficou claro o apoio militar e financeiro dado pelas elites colombianas aos grupos de extrema direita.
A luta do povo colombiano, portanto, ultrapassa as fronteiras geográficas que nos são impostas. Aí se está jogando o futuro de um continente. Para nós, aqui no Brasil, nos cabe exercer aquele que considero ser o sentimento mais humano que se pode alcançar, o internacionalismo proletário, reconhecer no sofrimento de um povo irmão sua própria luta e, sem esperar nada em troca, oferecer nossa solidariedade militante.
Gabo, por sua vez, terminava seu discurso de maneira esperançosa. Dizia ainda acreditar na arrasadora utopia da vida, em um mundo no qual o ser humano fosse livre, e que tivesse a oportunidade de, de fato, decidir sobre as questões essenciais de sua história. Por vezes, confesso, quase perco essa esperança, pois não são poucos os fatos que me levam a crer que estamos cada vez mais próximos da barbárie, ainda que também me recuse a admitir o fim da humanidade e da história.
O que vi na Colômbia, porém, reforça o desejo de lutar, mostra que seu caminho passa por uma árdua tarefa de construção política de uma plataforma unitária e da necessidade de uma organização coesa que expresse as demandas históricas dos trabalhadores. Na Colômbia, pelo menos, os primeiros passos foram dados. A vida, a rebeldia, a necessidade de transformação social, um programa político claro, se unem numa perspectiva comum e se colocam em Marcha. Daqui do Brasil, esperamos em breve que essa Marcha ganhe mais força, que encha de gente as principais avenidas do continente e, sob os gritos de paz com justiça social, abram caminho para um novo futuro, aquele que chamamos de socialismo.
Viva a luta e a resistência do povo colombiano!
*Militante do PCB. Responsável por Relações Internacionais da UJC