Isto é apenas o começo
Em 07 de setembro, as FARC-EP e o Governo Nacional instalaram oficialmente a subcomissão de gênero da Mesa de Conversações, “para garantir uma perspectiva de gênero nos acordos parciais alcançados até agora e em um eventual acordo final”. Em minha opinião, existem dois poderosos argumentos que sustentam a existência da dita subcomissão.
Em primeiro lugar, existe uma necessidade imensa de resolver os problemas das mulheres em situação de conflito na Colômbia, como o direito à verdade das vítimas do conflito, acesso à terra, o direito de participar na política sem estigmatização nem assassinatos, a reparação das vítimas e a não repetição entre outras medidas urgentes.
Assim, tal necessidade sentida é válida para todos que sofrem o impacto do conflito. É preciso reconhecer que nós mulheres vivemos de maneira diferente as consequências do conflito, pelo fato de sermos mulheres e pelos papeis que nos são designados na sociedade capitalista. Ainda que exista menos participação direta das mulheres nos corpos militares – 3,6% da força pública é composta por mulheres (1), nas FARC-EP somos em torno de 40% (2). Nós mulheres carregamos um importante peso do conflito sobre nossos ombros, seja pela perda de tecidos sociais, instalações, facilidades e serviços econômicos e sociais, seja por causa do deslocamento forçado (3), a violência sexual (4), massacres ou outras formas de violência.
Não necessitamos ser apenas escutadas. Nossos anseios mais urgentes devem ser resolvidos, as vítimas reparadas integralmente. No entanto, é óbvio que as leis, as instituições, os mecanismos e os recursos humanos e financeiros existentes não satisfazem suficientemente as necessidades atuais das mulheres quanto à justiça, verdade e reparação. Existem muitos obstáculos, pouco conhecimento específico sobre gênero por parte dos funcionários públicos, excesso de burocracia (5) …
Portanto, a inclusão de uma perspectiva de gênero nos acordos pode ser de ajuda vital para criar mecanismos que possam resolver os problemas mais urgentes das mulheres, derivados do conflito.
Porém, existe outra razão para incluir o tema de gênero neste processo de paz: é uma possibilidade de avançar para além das violações e discriminações diretamente derivadas do conflito. Pois, a maior parte das condições que afetam as mulheres tem causas estruturais que poderiam ser aliviadas ou modificadas após o fim do conflito, porém não solucionadas. Segundo menciona Jenny Pearce: “o final dos conflitos armados, para muitas mulheres, não significa automaticamente o final da violência. Em efeito, «a ausência de guerra não significa necessariamente a ausência de violência em uma sociedade e, certamente, não significa o final do conflito »”(6).
Isto, definitivamente, está certo para a Colômbia. Em 2013, foram registrados 20.739 casos de violência sexual; 47,01% dos casos ocorreram dentro do âmbito familiar ou com o companheiro, enquanto 38,64% foram cometidos por um amigo, conhecido ou companheiro de trabalho (7).
Em 77,58% do número total de casos de violência doméstica no ano 2013, a vítima era uma mulher (52.933 casos) (8).
Na Colômbia, o patriarcado reina em todos os âmbitos da vida pública, porém bastam apenas uns poucos exemplos da vida política para compreender a natureza deste reinado. Ainda que 51,3% da população seja composta por mulheres, apenas 3% dos governos, 17% das assembleias departamentais, 14% dos conselhos municipais e 10% das prefeituras no país estão a cargo de mulheres (ver imagem).
Estas cifras atestam que se trata de um mundo onde os homens encabeçam a política em todos os níveis: um mundo de homens para homens. E para mudar isso, é preciso mudanças notáveis constitucionais, institucionais e culturais.
Cada vez mais se aceita que os processos de paz são a oportunidade por excelência, não apenas para alcançar o final de um conflito armado, mas também para o começo de profundas transformações, que são esperadas há muito tempo. Esta ideia, além de ser reivindicada pelas FARC-EP desde o início destes diálogos de paz, também foi discutida por proeminentes acadêmicos como Johan Galtung, que elaborou o conceito de “paz positiva”; uma paz não consiste na ausência de violência (ou, como as FARC-EP dizem: o silêncio dos fuzis), mas que deve ter um conteúdo de justiça social e democracia (9).
Este significado mais amplo do conceito “processo de paz” é totalmente compatível com o Acordo Geral de Havana, que estabelece, entre outros, que “É importante ampliar a democracia como condição para obter bases sólidas para a paz” e “O desenvolvimento econômico com equidade social, justiça e em harmonia com o meio ambiente é uma garantia de paz e progresso”.
De fato, a ideia que este processo de paz seja o início de uma Nova Colômbia é transcendental para as FARC-EP e para o país, também em termos de igualdade de gênero e direitos das mulheres. O acordo final de paz não deve conter vagas promessas de que vão ser cumpridas leis nacionais de gênero, muitas vezes incompreensíveis e contraditórias (10). Trata-se é de converter este sucesso em um exemplo histórico do esboço de mecanismos concretos para melhorar as condições de vida das mulheres, aumentar sua participação na vida pública e abolir todo tipo de violência contra elas na Colômbia.
A aprovação final do acordo de paz, com perspectiva de gênero, deve ser produzida por uma Assembleia Nacional Constituinte, com a participação de um número proporcional de mulheres e representantes da comunidade de lésbicas, gays, transexuais, bissexuais e intersexuais. De certo modo, a falta de base e movimentos políticos e sociais seria compensada com este feito.
Uma nota final: profundas transformações institucionais e legais são sequer suficientes para chegar a uma sociedade totalmente livre de discriminação de gênero, machismo e sexismo. Devemos buscar as raízes históricas destes males na história da sociedade, de sua divisão e exploração de classe, de modo que a abolição de todo tipo de violência baseado neles requeira algo mais que mudanças constitucionais, jurídicas e/ ou institucionais. São necessárias mudanças verdadeiramente revolucionárias, que desmantelem as bases da exploração e da exclusão social de todos os seres humanos.
Porém, ainda assim, com mudanças profundas na base econômica da sociedade e em sua superestrutura política, não se pode assegurar que mude de forma automática toda a superestrutura cultural, filosófica, psicológica que construiu durante séculos um papel diferente para homens e mulheres. Despojar homens e mulheres dos prejuízos, dos estereótipos e da desvalorização das mulheres e determinadas minorias e grupos sociais requer adicionalmente um enfoque de classe, de raça, de etnia, de gênero, entre outros. Requererá de homens e mulheres novos com novos princípios e valores políticos, éticos e morais.
Para agora e no mais imediato, poderíamos começar pelas mudanças em duas frentes, de classe e de gênero. Como Bell Hooks declarou uma vez: “(…) existe uma convergência total entre as questões de classe e de gênero (…). Estou claramente a favor do tipo de educação que favorece uma consciência crítica que diga: Vamos ver como convergem para que, quando começarmos a tomar uma posição contra elas, possamos adotar por nós mesmos este tipo de atitude estratégica, que nos permita sermos autônomos, como gente que luta de maneira revolucionária em todas as frentes” (11).
Com este enfoque, ao menos a miserável situação de muitas mulheres colombianas poderá ser aliviada, sob a premissa de que as leis e as instituições funcionam como deveriam. Infelizmente, a sociedade colombiana atual é um triste exemplo de um Estado falido. Existe uma grande quantidade de leis ambíguas, utilizadas pelas elites quando e como lhes convenha. Isto é algo que deve ser resolvido em primeiro lugar. Como dissemos em várias ocasiões: nós não esperamos fazer a revolução na Mesa de Conversações, em Havana. Estamos aqui para reivindicar um espaço político para poder lutar por nossas ideias de igualdade e justiça social.
Isto é apenas o começo.
(1) A quantidade total de membros da força pública na Colômbia é 470.988. Segundo o Ministro da Defesa, Juan Carlos Pinzón, existem 17.000 mulheres ativas na força pública (militares e policiais), que são 3,6% da força total. http://www.elcolombiano.com/BancoConocimiento/L/las_farc_cometieron_394_homicidios_y_261_secuestros_a_mujeres_entre_2003_y_2014/las_farc_cometieron_394_homicidios_y_261_secuestros_a_mujeres_entre_2003_y_2014.asp
(2) Estimativas sobre a participação feminina nas fileiras das FARC-EP são de entre 30% e 40%. http://en.wikipedia.org/wiki/Military_structure_of_the_FARC-EP#Female_fighters. FARC-EP estimamos que el número es de aproximadamente 40%.
(3) ASSESSORIA PRESIDENCIAL PARA A EQUIDADE DA MULHER – 2012: 22: 51% da população total de removidos (4.662.600 pessoas em 2012) na Colômbia é composta por mulheres.
(4) Ainda que a maioria dos casos de violência sexual seja cometida dentro da esfera privada e não no contexto do conflito armado, como muita gente acredita, existe um número considerável de casos de violência sexual (94 casos em 2011) cometido pela força pública (58,02%), pelas forças paramilitares (27,16%) ou pela guerrilha (14,81%). www.cladem.org/pdf/ColombiaIA_2013_cedaw.pdf
(5) O acesso à justiça para mulheres vítimas da violência é um problema, já que cada jurista assiste aproximadamente 340 mulheres ao mesmo tempo, enquanto a maioria deles não possui nenhuma especialização ou enfoque específico sobre os direitos das mulheres. Um exemplo dos obstáculos que se colocam é o decreto 2734 de 2012, que estabelece que para uma mulher vítima de violência de gênero ter acesso aos benefícios especiais (também estabelecidos por lei), ela deve apresentar “um exame médico que certifique a medida correspondente aos danos sofridos pela mulher e ela também deve pedir uma avaliação dos riscos para a polícia, que demora mais de 10 dias”. Considera-se que em um país onde a força pública é responsável por 58,02% da violência sexual no marco do conflito e onde são conhecidos seus vínculos com os paramilitares, a polícia não está em condições de fazer este tipo de avaliação.
(6) Pearce, Jenny: ““Sustainable peace building in the south:Experiences from Latin America In Development, women and war: Feminist perspectives” “, Oxfam GB, 1997.
(7) INML e CF, a Revista Forensis: Delito sexual http://www.medicinalegal.gov.co/documents/10180/188820/FORENSIS+2013+8-+delito+sexual.pdf/b733218a-c476-4215-989d-e490635af6c6
(8) INML e CF, a Revista Forensis: Violencia Intrafamiliar http://www.medicinalegal.gov.co/documents/10180/188820/FORENSIS+2013+7-+violencia+intrafamiliar.pdf/dd93eb8c-4f9a-41f0-96d7-4970c3c4ec74
(9) Galtung, Johan: “Peace by peaceful means: Peace and conflict, development and civilization”, Sage Publications Ltd., Londres 1996.
(10) Entrevista concedida por Bell Hooks à Third World Viewpoint, 1995 http://soaw.org/index.php?option=com_content&view=article&id=910
Fonte: http://mujerfariana.org/index.php?option=com_content&view=article&id=177:esto-es-solo-el-comienzo&catid=9:nuestra-vision&Itemid=467
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)