“Como insurgentes, não vamos cumprir nenhum segundo de prisão”

"(Entrevista com Jesús Santrich, comandante guerrilheiro das FARC)

Resumen Latinoamericano/ 03 de setembro de 2015 –   Em uma extensa entrevista da ANNCOL com Jesús Santrich, o comandante guerrilheiro das FARC destaca que o processo de paz é político e não jurídico e que “busca um acordo de paz estável e duradouro”. Repudia contundentemente as tentativas dos organismos do Estado, como a Promotoria, de desviar o processo de Paz em termos jurídicos.

– Sabe-se publicamente que a Mesa de Conversações de Havana já começou a discutir o tema JUSTIÇA entre as partes em conflito, sendo criado um grupo de trabalho jurídico. Dentro deste processo, o que significa para as FARC-EP abordar tal tema?

– JESÚS SANTRICH: O tema justiça é compreendido por nós como a superação da desigualdade, da miséria e da carência de democracia, essencialmente, e não como o cenário do punitivo, da sanção ou do penal. Por isso, em um processo de paz falamos de buscar formulações de trânsito para a justiça social.
Em uma longa confrontação como a que vivemos na Colômbia, como consequência de problemas de ordem social e política, então, uma solução que passe pelo reconhecimento dos direitos daqueles que de um e outro lado foram afetados ou vitimizados, implica assumir um sistema de justiça que recorra à abordagem anterior e que, em tal sentido, se fundamente na verdade, na possibilidade da reparação e no compromisso de não repetição. Isso quer dizer que é preciso superar as condições de miséria, desigualdade e exclusão política que geraram o conflito.
– Isto quer dizer que as FARC não abordarão o assunto a partir de um enfoque exclusivamente jurídico?

– O que se adianta em Havana não é um processo jurídico, mas um processo de diálogo para alcançar a paz. As FARC-EP estão ao lado da solução de problemas centrais vividos pela maioria em nosso país, como o da necessidade de uma reforma rural integral que ajude na superação da miséria e da desigualdade no campo e nos setores mais marginalizados da cidade; da solução dos problemas de participação política que, em essência, está relacionado com a necessidade de expandir a democracia e resolver as múltiplas e extensas carências da população rural e urbana. Colocamos sobre a mesa as saídas para alcançar também uma nova política antinarcóticos, integrada à reforma rural integral que, com fundamento nos direitos humanos e respeito às ideias de que este é um problema fundamentalmente social, ajude a superar este flagelo de ordem transnacional. Ao mesmo tempo, assumimos a atenção às vítimas do conflito como um dever que deve ser compreendido como parte essencial da busca da Paz como direito síntese.
Ao cair no terreno da reivindicação dos direitos das vítimas do conflito, assumimos assim os conceitos que nesta matéria regem o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional, expressando a necessidade de adequar sua interpretação e aplicação às particularidades do conflito colombiano, insistindo que tal reivindicação inclua como parte essencial o respeito e garantia dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. E para alcançar tal dimensão, apresentamos a aplicação da justiça restaurativa, reparadora, prospectiva, transformadora, que beneficie as vítimas do conflito e o conjunto da sociedade.
– O que é a justiça restaurativa?

– A justiça restaurativa é a mesma chamada justiça restauradora. Não se trata de uma invenção nossa e seu conceito deriva de um amplo movimento mundial que advoga por uma visão no direito penal diferente à conceituação medieval punitiva e carcerária, que de uma ou outra forma entra no plano da vingança, do chamado olho por olho, dente por dente, muito mais antiquada inclusive que a estritamente medieval.
Para a justiça restaurativa, a vítima e a verdade são os epicentros de sua razão de ser. Nela, quem vitimiza ou comete um crime promove um dano contra uma pessoa ou grupo de pessoas em concreto, contra as relações interpessoais, e isso é o que precisa ser reparado, buscando a reconciliação e não a vingança contra o ofensor. Isto marca uma profunda diferença com a muito generalizada e convencional justiça chamada retributiva, na qual o que se observa é o prejuízo promovido à norma jurídica e ao Estado como vítima principal.
Isto, em termos muito gerais, explica o sentido do que consideramos viável para resolver a questão do componente justiça, no sentido de sanção, no caminho da Paz, procurando que as vítimas do conflito desempenhem um papel protagonista, expressando-se livremente sobre os danos sofridos e como acreditam que devam ser reparados. À vítima se deve responder com medidas concretas de reparação e uma das medidas é a verdade. Vale dizer que é o único caminho que permitiria ao ofensor reencontrar-se com a vítima em um espaço de reconciliação, restituindo, reparando a vítima e o entorno social, com o qual as consequências da falta se resolvem, em grande medida, com a participação comunitária.
– Este tipo de justiça se aplica no marco da Comissão de Esclarecimento da Verdade?

– Enquadramos a justiça restaurativa dentro do que chamamos de “Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição”, partindo da ideia de que sua formulação não confronta com o direito internacional, nem com o apego às causas, origens e consequências do conflito. Por isso, partimos para o seu esboço, para formação de uma Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas que foi a encarregada de apresentar os esclarecimentos sobre a verdade histórica, sobre o porquê do conflito, para assim saber para onde apontar no momento de propor soluções.
Depois projetamos, e ainda estamos na definição de alguns de seus elementos, a “Comissão de Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não Repetição”, a qual, com a participação central das vítimas, deve auxiliar na construção de uma verdade exaustiva e irrefutável que seja a base do esclarecimento dos fatos para a busca de soluções que permitam o caminho para a justiça social e a normalização do país.
Então, estes são os componentes iniciais sobre os quais se avançou mais em sua elaboração, porém são também componentes como o de reparação e o de não repetição em torno dos quais estamos trabalhando medidas específicas. Assim, o Sistema tem vários componentes e um deles é a justiça, porém todos estão estritamente inter-relacionados. Por isso, se denomina sistema integral e nele a verdade deve ser fornecida pela Comissão de Esclarecimento, de maneira exaustiva, porém certamente terá que reiterar algum mecanismo especial que permita abrir campo à definição das sanções a que tenha lugar para aqueles que tenham cometido prejuízos ou as vitimizações. Isto não necessariamente deve ser dentro da Comissão de Esclarecimento.
– Este sistema é também para não combatentes?

– Dentro da visão das FARC-EP, este sistema deve ser para todos os atores. Esta concepção reafirma a ideia de que em Havana não estamos diante de um processo judicial contra a insurgência particularmente, nem contra nenhuma das partes que participaram do conflito em uma ou outra margem, mas que estamos em processo eminentemente político que busca alcançar, não a rendição ou a submissão da guerrilha, mas um acordo de paz estável e duradouro cuja essência é a superação das causas de diversos tipos que geraram o conflito. Nestes termos, e não como o cenário para julgar as FARC-EP, se deve entender a dose de justiça que requer o processo e requer a Colômbia para sair da guerra.
Do anteriormente exposto, mostra-se que na proposta de solução não é objetivo a ideia de submeter a insurgência a tribunal algum de julgamento, sobretudo caso se leve em conta que a insurgência considera o Estado como o supremo responsável pelo confronto e pela vitimizações, este fez colapsar sua própria capacidade para julgar e sancionar, que chamamos de crise total do jus puniendi (o direito de castigar/sentenciar). Em conclusão, o Estado colombiano não pode pretender ser juiz e parte em um processo como o que se desenvolve em Havana.
– Algumas vozes da direita dizem que as FARC buscam a impunidade.

– Se levarmos em conta considerações estritamente judiciais que concernem ao assunto das responsabilidades penais no marco da confrontação, o que não é próprio de um processo essencialmente político, deveremos seguir, não obstante, que em matéria de impunidade não são as FARC as beneficiárias. Não é em torno da insurgência que orbita a impunidade, pois é mais que evidente que o Estado colombiano perseguiu, e em grande medida com gana, as guerrilhas e aqueles considerados sua área de apoio, inclusive mediante procedimentos de guerra suja e de perseguição jurídica, extremos e ilegítimos, que afetaram imensas faixas da população não combatente.
É preciso acrescentar que, para as FARC, as responsabilidades neste campo, independentemente da suprema responsabilidade do Estado e do que deriva da injusta ordem social vigente, nem sequer estão essencialmente no universo dos combatentes da contraparte, os quais e, sobretudo a nível dos baixos escalões, são tomados como bodes expiatórios dos instigadores da guerra suja e dos planejadores da ordem de injustiça que impera na Colômbia.
A impunidade existe, digamos, para os genitores e instigadores do paramilitarismo e para aqueles que fazem parte do Bloco do Poder Dominante, inclusive sua direção política, empresarial, financeira e econômica em geral. Por isso, insistimos que se fosse para assinar responsabilidades às Forças Militares e de Polícia, isto não poderia ficar no campo dos combatentes, pois a cadeia de comando não termina nos Estados Maiores destas forças, mas na Casa de Nariño (n.t.: sede do governo colombiano), na Presidência e no Conselho de Ministros, o que não é uma invenção das FARC, mas um fato tangível e irrefutável que também recorre à jurisprudência internacional cuja observância nos reclama a contraparte.
– A Promotoria Geral da Nação continua falando de imputações contra as FARC e de definir seus máximos responsáveis. O que você pensa sobre isso?

– Em um processo de paz como o que se desenvolve para a Colômbia não se deve insistir, como aqueles que buscam soluções jurídicas para o mesmo, em buscar os máximos responsáveis para os crimes que tenham sido cometidos durante o conflito somente entre os que empunharam as armas, e muito menos não se pode nem se deve pretender que esses máximos responsáveis estão na insurgência, que em última análise, é uma resposta legítima às injustiças impostas pelo regime. Sobretudo, então, seria necessário perguntar, dentro da insurgência ou dentro Estado, quais são os máximos responsáveis se é que nesses termos é que se deseja que falemos. Neste sentido é que dizemos que para a justiça internacional não existe isenção para ninguém, independente de ser um alto funcionário ou o mais elevado representante de um governo ou cargo político.
Nisto deve existir equidade e sensatez porque, geralmente, a partir das grandes mídias se alenta a ideia de que na Colômbia o que ocorre é uma guerra dos terroristas das FARC e do ELN contra a sociedade ou contra a população. E isto é absolutamente falso, em primeiro lugar porque não somos terroristas e, depois, porque nossa guerra de resistência é contra o regime de injustiça que vitimiza as maiorias. Por isso é que não cabe, no nível de avanço que alcançaram os diálogos, pretender que a partir da Promotoria Geral da Colômbia se deva qualificar os fatos e as responsabilidades a partir de obtusos e tendenciosos pacotes de imputações que, evidentemente, apontam somente para os levantados em armas, fundando-se em ficções jurídicas ou nas abstrações algorítmicas da senhora Natalia Springer, enquanto contra os organizadores, instigadores e financiadores do paramilitarismo que se escondem no seio das associações econômicas nacionais e nas próprias transnacionais, não existem duas frases. Isto indica a posição manipulada da promotoria, e do sistema jurídico colombiano. Por que existe uma “unidade de contexto” para construir um prontuário criminal das FARC-EP, empregando nela centenas de funcionários e milionárias somas de dinheiro, contratando pessoas que fabricam os casos e, em contrapartida, não ocorre o mesmo a respeito dos crimes de Estado, incluindo as atrocidades do paramilitarismo? A única ação que se operou para tratar deste último é um processo de ”justiça e paz”, mais ligado à impunidade que outra coisa, pois ainda que se tenha produzido a suposta “desmobilização” de quase 40 mil paramilitares, até o momento não existe mais de 35 sentenças, e como já dissemos, para os instigadores deve existir uma.
– Porém, ainda estando as vítimas no centro deste processo, a reivindicação de seus direitos não implica sancionar os assassinos, não implicaria que alguém tem que pagar na prisão? Que passos teriam que ser dados em matéria estritamente judicial?

– Bom, já expliquei que está sendo projetado um sistema integral que incluirá o componente justiça, ligando-o a outros de reparação e não repetição, no qual a verdade e o protagonismo das vítimas são essenciais. Porém, também devemos partir de que para resolver o conflito, é preciso fazer algo muito importante não só em matéria política, mas também em matéria jurídica: reconhecer que somos rebeldes, que o ocorrido neste último meio século é um levante contra uma ordem social injusta, o que nos coloca novamente no campo político e na ideia de que então a solução ao conflito neste processo de diálogo é essencialmente política, por mais elementos de ordem jurídica que se queira incluir.
Em tal sentido, teríamos que restabelecer o crime político incluindo as mais amplas conexões, devemos pactuar uma lei de anistia também muito ampla para resolver o assunto da ilegalidade da insurgência e se chegar a ter casos que não são anistiáveis, deve existir um mecanismo extrajudicial para obter a normalização. Estes são elementos que devem ser considerados na definição de um Sistema Integral da Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição que conte com o protagonismo das vítimas do conflito, e tenha como eixo, reitero, não uma justiça punitiva retributiva, mas a justiça restaurativa, reparadora, prospectiva e a doutrina da Margem Nacional de Apreciação. No que se refere à ênfase a ser dada, será a nossa história, nossos costumes, nossa forma como colombianos.
– Isto daria a solução jurídica ao processo de paz?

– O mecanismo extrajudicial que opera tomando como base de ação que se garanta a verdade exaustiva e que se assumam sanções reparadoras no seio das comunidades, fornece todas as possibilidades de que os fatos sobre os quais se tratem tenham efeito de coisa julgada. Nada disto conflita com as normas internacionais. Este é o Sistema que devemos construir bilateralmente sob o abrigo do único Marco Jurídico que este processo possui, e que é o Acordo Geral de Havana. Este Sistema, no qual se integra a Comissão de Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição garante perfeitamente também para o Estado, se é que isso preocupa alguém, que se cumpra a obrigação que tem regularmente quanto à investigação e esclarecimento dos fatos ou perseguição e sanção dos responsáveis.
Porém, acrescento que não existe nenhuma norma internacional que obrigue que as sanções devam ser carcerárias ou de privação de liberdade ou inferidas de julgamentos penais. Existem outras formas que vão desde o próprio fornecimento da verdade até as situações em que se procede com efetivos atos de reparação e compromisso de não repetição, que equivalem ao cumprimento de sanções alternativas que extinguem a responsabilidade penal. Tudo isto é uma abordagem e existem especialistas que devem ajudar a convertê-lo em acordo que se ajuste ao que signifique uma saída política que implique também uma solução jurídica, que abra caminhos para a Paz. E é preciso recordar que embora o Estado seja o máximo responsável por ação e por omissão das vitimizações, as FARC-EP, independentemente dos erros que tenhamos cometido sem intenção de causar danos, e sobre os quais estamos dispostos a responder, falamos à margem das vítimas.
– Você acredita que seja possível um acordo nos temos do planejado?

– Bom, isto é para ser discutido, já que cada uma das partes tem suas próprias visões. Porém, sou otimista e acredito que é possível aproximar posições caso sejam deixados de lado os ânimos de retaliação e não sejam alimentados os ódios.
– Nesse campo de aproximações, você acredita que seria possível, por parte da FARC, aceitar um mínimo de privação da liberdade?

– Parece-me que está faltando clareza em minha explicação. Vou ser mais direto e conclusivo:
Minha resposta a isto é NÃO. Quanto a isto, não é possível ter aproximações. Pretender a prisão, persistir na ideia de levar a insurgência ao cárcere é um extremismo inaceitável. Repito que este não é um processo judicial contra as FARC, e que caso se busque os responsáveis para aplicar a justiça retributiva e carcerária, os nichos da impunidade estão dentro do Bloco do Poder Dominante.
Como insurgentes, não vamos cumprir nem um segundo de prisão. A rebelião é um direito universal que exercemos, do qual não existe arrependimento algum e pelo qual não admitimos sanção de nenhum tipo. No mais, não são as comunidade empobrecidas que padeceram os rigores da guerra que clamam a prisão, mas as vozes governistas, que é onde repousa a impunidade. Nisso não existem enganos, pois uma visão intransigente e equivocada na definição de um Sistema de verdade, justiça, reparação e não repetição, que inclua um componente de justiça vingativo, não pode atravessar o caminho que tem sido aberto de forma exitosa para a conquista da paz.
Fonte original:  ANNCOL

Foto: Jesús Santrich, FARC-EP. Foto: Dick Emanuelsson

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2015/09/03/colombia-entrevista-a-jesus-santrich-comandante-guerrillero-de-las-farc-como-insurgentes-no-vamos-a-pagar-ni-un-segundo-de-carcel/

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

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