Violência e corrupção: Crise da polícia

A saída do chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Allan Turnowski, na terça-feira trouxe à tona os métodos violentos e corruptos utilizados pelos agentes

A atual crise da segurança pública no Rio de Janeiro, que culminou com a saída do chefe da Polícia Civil, Allan Turnowski, na terça-feira (15), trouxe à tona os métodos violentos e corruptos utilizados pelos agentes do estado em suas funções.

A crise iniciou com a Operação Guilhotina, deflagrada na sexta-feira (11) em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública do estado. Ao todo, foram expedidos 45 mandados de prisão contra policiais civis e militares envolvidos com tráfico de drogas, armas e munições, milícias e com a máfia dos caça-níqueis. Eles também são acusados de venda de informações e roubo durante operações nos complexos do Alemão e da Penha. Até o momento, 38 pessoas foram presas, entre elas o delegado Carlos Oliveira, que foi subchefe da Polícia Civil e considerado braço-direito de Turnowski.

Para o pesquisador da Justiça Global Rafael Dias, as provas coletadas pela Polícia Federal comprovam as violações apresentadas por organizações de direitos humanos desde a época das operações. “Essas evidências que vieram à tona ajudam, de alguma maneira, a quebrar aquela imagem da polícia como algo bom, como se estivesse combatendo o tráfico”, afirma.

Em entrevista, o pesquisador fala sobre a situação atual das comunidades e a necessidade de reformas na polícia, a fim de combater a corrupção existente na instituição.

Após as operações policiais, a Justiça Global divulgou, junto com outras organizações de direitos humanos, uma série de denúncias a respeito de violações contra moradores. Como se deu o processo de apuração dessas denúncias?

Logo depois da ocupação do Complexo do Alemão e da Penha, as organizações de direitos humanos foram até lá [comunidades] ouvir os moradores e, a partir disso, a gente construiu um relatório com denúncias sobre situações de violações de direitos humanos naquelas localidades. Ouvimos, por parte dos moradores, que houve invasão de casas. Os moradores foram sistematicamente invadidos, e os direitos violados também. As pessoas foram roubadas pelos agentes da polícia, houve tortura, agressão, uma vasta gama de violações. Então copiamos os informes do que aconteceu naqueles dias e nos dias que precederam [às ocupações] e enviamos para relatorias da ONU e de direitos humanos informando a situação em que se encontravam as comunidades. E com a Operação da Polícia Federal agora, a denúncia que fizemos ganha materialidade, ou seja, a própria Polícia Federal, nas escutas telefônicas que fez, captou conversas de policiais falando dessas invasões e dos roubos a que os moradores foram submetidos. Houve também uma busca dos policiais, como se fosse um saque de guerra. O saque foi indiscriminado: os policiais tentavam saquear o dinheiro do tráfico de drogas localizado no Complexo do Alemão e na Penha, mas também invadiram indiscriminadamente as casas dos moradores. Até a fala do coronel da Polícia Militar, Mário Sergio Duarte, naquele momento, era dizer que a ordem era vasculhar casa por casa. Então a gente percebe que houve ali uma violação coletiva do direito dos moradores.

Qual a situação nas comunidades após as ações policiais no final do ano passado?

A Polícia Militar saiu das comunidades que, agora, estão sendo ocupadas por uma força de pacificação composta por agentes do Exército, das Forças Armadas. Existe também um batalhão de campanha lá, que integra os policiais, mas quem está fazendo o policiamento ostensivo armado atualmente são soldados do Exército. E já houve denúncias de maus-tratos e violência relacionados a esses agentes das Forças Armadas. A gente acompanha com muita preocupação porque houve uma intensa violação dos direitos humanos contra os moradores, que acontece até hoje.

Quais são as principais denúncias contra essas forças de segurança?

As principais denúncias são agressões, injúrias contra os jovens das localidades e abuso de autoridade.

Já houve denúncias de violência policial em áreas onde UPPs estão implantadas. Essas denúncias contra as forças de pacificação são semelhantes?

Lá [nos Complexos do Alemão e da Penha] ainda não existem UPPs, essa força de pacificação seria preparatória para as UPPs. Então há uma diferença. Mas em outras áreas em que existem UPPs também ouvimos relatos de que existe abuso de autoridade, proibição de manifestações culturais, policiamento cotidiano da vida daquela comunidade. Dessa maneira, é um modelo muito parecido.

Como funcionava o “garimpo” feito por policiais?

O que a gente viu nas notícias que foram divulgadas e também antes da Operação Guilhotina, com os moradores, é que os policiais entravam em todas as casas da comunidade, não discriminavam o que era casa de traficante ou casa de moradores e buscavam armas, dinheiro, drogas, joias. Pertences que tinham algum valor eram saqueados. Esse tipo de lógica da segurança pública, de guerra, leva a isso, a um saque indiscriminado, que é uma violação de direitos humanos e também uma ação criminosa.

Os fatos revelados pela Polícia Federal coincidem, então, com os relatos dos moradores durante as ocupações?

[Os fatos] batem totalmente com o que foi denunciado e falado pelos moradores. E naquele momento a operação foi elogiada pela mídia corporativa, que não chamava a atenção para o que estava acontecendo, violação dos direitos humanos e uma organização criminosa por parte dos policiais que, agora, com a operação da Polícia Federal, ficou evidente com provas, escutas telefônicas. Por isso ficou insustentável a permanência do chefe da Polícia Civil [Allan Turnowski], que caiu.

Qual a relação entre essas denúncias e a crise na segurança pública que culminou na saída do chefe da Polícia Civil do estado?

Em grande parte, ele [Turnowski] não saiu por causa da violação contra os moradores, mas pelo nível e pelas redes de corrupção de que a própria polícia fazia parte. A relação da polícia com as milícias, esse tipo de conluio das forças policiais é que levou à queda do chefe da Polícia Civil. Não necessariamente as violações porque o estado produz violações de direitos humanos e nem por isso o secretário de segurança pública ou outros agentes do estado são responsabilizados. A situação política ficou insustentável por causa da abrangência e da evidência das redes criminosas que atuavam na cúpula da polícia. Uma das provas foi a corrupção que aconteceu no Alemão, mas há a relação do braço-direito do chefe da Polícia Civil [o delegado Carlos Oliveira] com as milícias, com informantes repassando ordens para o tráfico. É importante chamar a atenção também para que um dos heróis da chacina de 2007 do Complexo do Alemão também era repassador, vendia armas para o tráfico. Essas evidências que vieram à tona ajudam, de alguma maneira, a quebrar aquela imagem da polícia como algo bom, como se estivesse combatendo o tráfico. Essa dicotomia, de certa maneira, acabou. A própria polícia ajuda nas engrenagens do tráfico, é uma relação que alimenta o próprio tráfico de drogas.

Como você avalia, a partir dessas denúncias, a cobertura que os meios de comunicação realizaram na época das ocupações?

Essa hegemonia do discurso midiático também, de alguma maneira, se quebrou. [Os meios] queriam passar que era uma operação bem-sucedida. Houve uma inovação dos equipamentos utilizados, o emprego de blindados da Marinha, ea imprensa cobriu isso de forma entusiástica, como a conquista de um território que não tivesse soberania do Estado. Por outro lado, houve grandes violações de direitos humanos, o que não é novidade. Então essa nova ação da polícia no Complexo do Alemão e a forma como foi apresentada parecia algo de novo, mas ela repetia o mesmo esquema que já se viu, de relação da polícia com o tráfico, a relação criminosa da polícia. Isso é algo a ser levado em conta e que, naquela época, não foi. Houve um elogio que escondeu essas coisas que se repetem na política de segurança do Rio de Janeiro.

A Justiça Global lançou uma nota defendendo a responsabilização do governo do estado em relação a esses crimes praticados por policiais. Na sua avaliação, quais foram os erros do poder público e o que deve ser feito para combater a corrupção dentro da polícia?

Isso levanta a discussão sobre a reforma da polícia. De certa maneira, as nossas políticas apresentadas pelo poder público e pelo governo federal passam por cima do debate que, a meu ver, é central, que é a reforma da polícia, de que polícia nós queremos, que segurança pública nós queremos. Isso é um fator primordial para que não haja corrupção nas forças policiais. A discussão da transparência, do controle externo, das ouvidorias externas, da corregedoria independente, tudo isso é fundamental porque temos hoje um modelo militarizado de segurança pública que produz mais violência em vez de preveni-la.

Diversas organizações de direitos humanos, como a própria Justiça Global, apontam que é preciso mudar o modelo de segurança pública porque, se não houver uma mudança estrutural, os erros vão se repetir. Esse modelo atual, que aposta na militarização, no discurso e nas ações de guerra em grande magnitude e não na ação policial baseada na inteligência, está fadado a repetir esses erros que nós estamos vendo.

A gente também não pode ficar refém, esperando as ações da Polícia Federal. Essas ações são importantes, mas não são suficientes. Você vê grandes casos de corrupção como esse dentro da cúpula da Polícia Civil. O que se pretende é uma reforma ampla dessas instituições, uma reforma estrutural com participação social nesses debates.

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/5700