O meu retrato de Fidel

imagemAlfredo Duarte Costa*

Não seria necessário partilhar o ideário e a perspectiva política de Fidel para admirar o homem excepcional que era. Bastava, como o mostra este notável testemunho de um ex. embaixador em Cuba, ser um homem íntegro e intelectualmente honesto.

Durante os meus estudos na Universidade de Bruxelas, escrevi dois trabalhos sobre Cuba e a sua Revolução. Passadas várias décadas, quis o destino que eu fosse nomeado embaixador de Portugal em Havana, onde fiquei cinco anos. Neste período de tempo, tive a oportunidade de ter um relacionamento próximo com Fidel Castro, com a sua mulher e com alguns dos seus filhos. A natureza deste relacionamento permitiu-me ser uma testemunha privilegiada de alguns episódios com ele relacionados e de traços da sua personalidade.

Poucos dias após a minha chegada a Cuba, jantei com Fidel Castro, na companhia do então ministro da Economia, Pina Moura, e do empresário Américo Amorim. Iniciada às 21.30, a refeição terminou perto das seis da manhã, quando o ministro teve de recordar a Fidel que tinha de tomar um avião para o México dentro de três horas. As largas horas passadas com Fidel revelaram-me um Homem inteligente e perspicaz, amável, grande conversador, demonstrando um conhecimento profundo sobre todos os assuntos abordados. O Fidel que eu começava a descobrir pouco se ajustava ao que tinha lido ou ouvido sobre ele.

Fidel possuía um enorme carisma e um grande poder de sedução, ao qual era difícil resistir. Presenciei a visita a Cuba de numerosas personalidades portuguesas, representando vários quadrantes políticos. Todos sem excepção pretendiam ser recebidos por Fidel Castro e quando o ambicionado momento chegava, não resistiam a pedir-lhe para tirar uma fotografia a seu lado.

Em 1999, no seguimento do massacre do cemitério de Santa Cruz, em Timor Leste, o representante de Cuba nas Nações Unidas fez uma intervenção no Conselho de Segurança, apoiando a Indonésia. O Governo português, naturalmente, reagiu muito mal a esta tomada de posição, tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, cancelado a visita do seu homólogo cubano a Lisboa, prevista para alguns dias depois. Encontrava-me numa recepção na Embaixada do México, quando o chefe do Protocolo cubano me chamou à parte para me dizer que Fidel Castro me convidava para jantar nessa mesma noite. Perante o inesperado convite, perguntei ao meu interlocutor qual era razão deste e quem eram os outros convivas. Respondeu-me apenas que eu era o único convidado.

Quando cheguei ao Palácio da Revolução, onde reinava um profundo silêncio, estavam apenas presentes um funcionário que me conduziu ao gabinete de Fidel e uma empregada que serviu o jantar. Fidel foi directo ao assunto que o levara a convidar-me, dizendo-me ter conhecimento de que o Governo português não tinha apreciado a intervenção do embaixador cubano e que cancelara a visita do chefe da diplomacia cubana a Lisboa. Confirmei o que me disse e com respeito, disse-lhe que Cuba lamentavelmente estava do lado errado, ao apoiar um regime que oprimia o Povo de Timor Leste. Fidel Castro, depois de me dizer que Portugal era o último país do mundo com quem Cuba desejava ter um contencioso, perguntou-me como poderíamos encontrar uma solução para o problema. Após sucessivas conversas telefónicas com o gabinete de Jaime Gama e com o ministro cubano, que se encontrava em Madrid, propus a Fidel que o seu Governo divulgasse um comunicado afirmando que a posição cubana tinha sido mal interpretada e que Havana não apoiava a Indonésia. Fidel começou imediatamente a redigir ele próprio o texto e ao terminar, leu-mo. Eram duas da manhã quando me despedi de Fidel e no dia seguinte, o comunicado estava em todos os jornais. O convite de Fidel, o modo como me recebeu e o respeito com que me ouviu, parecia contradizer a imagem que alguns lhe atribuíam de ser um dirigente autoritário e intransigente.

Fidel Castro era uma pessoa espartana e desapegado dos bens materiais. Interrogado sobre os bens que possuía, respondeu que quando morresse, teria a glória de não ter um único dólar numa conta bancária ou uma propriedade em seu nome. Fidel vivia nos arredores de Havana numa moradia modesta de um só piso. Utilizava um Mercedes preto dos anos setenta e o avião em que viajava era um velho Iliuchine. Quando um dia lhe chamaram a atenção para o perigo de utilizar um avião com tantos anos, respondeu que não se podiam gastar milhões de dólares na compra de uma nova aeronave, quando esse dinheiro poderia ser utilizado em hospitais e em escolas. Após cessar funções, Fidel entregou à cidade de Havana os 17.000 presentes que recebeu enquanto foi Chefe de Estado, afirmando: “Não pensem aqueles que me ofereceram os presentes que eu não os apreciei. Pelo contrário, foi por apreciá-los que os entreguei ao acervo de Havana”.

Apesar do papel desempenhado por Fidel Castro durante várias décadas, não há em Cuba o culto da sua personalidade. Não existem estátuas, nem ruas ou praças com o seu nome. A sua efígie não aparece em moedas ou em selos, e sempre recusou que lhe fosse atribuída qualquer condecoração. Estas homenagens estão reservadas aos heróis já desaparecidos, como José Marti, Camilo Cienfuegos e Che Guevara.

Fidel Castro foi numerosas vezes acusado de reprimir a liberdade religiosa. No entanto, fui convidado por ele para assistir à inauguração de uma igreja ortodoxa no centro de Havana. O terreno para a igreja tinha sido oferecido pelo Estado cubano e a sua construção paga com contributos de cidadãos norte-americanos de origem grega, no seguimento de uma iniciativa do ex-rei Constantino, que esteve presente, ao lado de Fidel Castro, na cerimónia. Tive, ainda, a oportunidade de assistir à inauguração por Fidel, de um convento destinado à Ordem das irmãs brigiditinas, num edifício que o Estado cubano disponibilizou e restaurou.

Fidel tinha um sentido de humor acutilante. Durante a visita de uma delegação parlamentar portuguesa, presidida por Almeida Santos, o dirigente cubano ofereceu-lhe um almoço. Perante o facto de Fidel falar com profundo conhecimento sobre todos os assuntos abordados, o Presidente da Assembleia da República perguntou-lhe se havia alguma coisa que ele não soubesse. Resposta de Fidel: “Há uma coisa que eu não sei: é estar calado”. Quando o almoço já se prolongava há mais de cinco horas, Almeida Santos recordou a Fidel que tinha conhecimento de que ele viajava naquela mesma noite para a Venezuela, a convite de Hugo Chávez, e que a delegação não queria tomar-lhe mais tempo. Fidel respondeu-lhe: “Já compreendi. Estás cansado de me ouvir”.

Fidel Castro apreciava a companhia da família. Reunia regularmente para almoçar os cinco filhos que tinha com Dália Sotto del Valle, que conheceu em 1961, e os numerosos netos. Dália era uma senhora distinta e amável, que nunca aparecia em público e, de ser tão discreta, apenas o círculo mais próximo do Presidente sabia da sua existência. Os filhos do casal não tinham qualquer cargo político ou no aparelho de Estado. Exerciam as profissões de médico, físico nuclear, engenheiro informático, e um deles era operador de câmara na televisão cubana. Dália disse-me que Fidel sempre fez questão de proteger a família e de a manter afastada da vida pública e dos olhos do mundo.

Penso que Fidel era admirado e respeitado por uma grande parte do Povo cubano. A este propósito, recordo o que Almeida Santos escreveu após uma visita a Cuba: “Falei com muita gente. Como se imagina, já não sou facilmente ludibriável. Pois bem, regressei convencido de que continua elevado o grau de popularidade de Fidel”. As centenas de milhar de pessoas que vimos desfilar nos últimos dias na Praça da Revolução e ao longo da estrada que liga Havana a Santiago de Cuba, para lhe prestar uma derradeira homenagem, parecem prová-lo.

Passaram apenas alguns dias sobre a morte de Fidel Castro. Em todos os cantos do mundo, assiste-se a comentários e debates nas televisões, à publicação de artigos e a declarações múltiplas sobre a sua personalidade. Isto demonstra, independentemente da opinião que cada um possa ter a seu respeito, que Fidel é, além de uma lenda, uma das personalidades mais conhecidas e marcantes da segunda metade do século 20.

Nestes dias, testemunhei comportamentos distintos em relação a Fidel Castro. Na televisão, vi com alguma incredulidade um grupo de cubanos residentes em Miami cantar e dançar para celebrar a sua morte. Quando me desloquei à Embaixada de Cuba para assinar o livro de condolências, e contrastando com a cena de Miami, vi chegar cerca de vinte africanos com T-shirts com a efígie de Fidel. De origem modesta, tinham chegado a Cuba para estudar, quando eram jovens adolescentes, idos dos seus países, onde a vida pouco ou nada lhes reservava. Eram médicos, engenheiros, investigadores e professores que, com discursos emocionados e chorando a morte de Fidel, como de um familiar se tratasse, tinham vindo prestar-lhe uma última homenagem e expressar-lhe e a Cuba, a gratidão por eles lhes terem dado os meios para serem cidadãos responsáveis e destacados profissionais.

É difícil e precipitado fazer neste momento um julgamento isento sobre Fidel Castro e sobre o papel que foi o seu. Por outro lado, qualquer apreciação que possa ser feita dependerá muito do posicionamento ideológico de quem a faz. O passar do tempo, que concede serenidade e faz esbater paixões e ódios, permitirá um dia à História julgá-lo, sendo então possível verificar se esta, como Fidel disse um dia, o absolverá. Poder-se-á, então, saber se a memória que permanece de Fidel, é a de um líder autoritário ou a de um homem notável e profundamente patriota, que dedicou toda a sua existência ao combate por uma Cuba independente e soberana. Perante as críticas que alguns fazem à Revolução cubana, Fidel disse um dia: “Meditem como este pequeno país pôde, durante quase meio século, resistir às investidas da mais poderosa potência. Isto só foi possível com base nos princípios, nas ideias e na ética”.

*Alfredo Duarte Costa foi Embaixador de Portugal em Cuba de 1999 a 2004

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