As Farc não serão e não podem ser derrotadas
Em entrevista exclusiva ao jornal A Verdade, James J. Brittain, sociólogo, ph.D. em sociologia com ênfase em economia política e professor assistente do Departamento de Sociologia da Acadia University, no Canadá, fala sobre as Farc-EP (sigla das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo), contando um pouco de sua história e esclarecendo vários mitos difundidos sobre a guerrilha. Brittain passou mais de cinco anos vivendo em meio às Farc-EP, participando de várias de suas atividades, conhecendo suas estruturas e entrevistando combatentes e camponeses residentes nas regiões sob domínio da insurgência. Parte dessa pesquisa, juntamente com uma extensa bibliografia, resultaram em seu livro Revolutionary social change in Colombia – the origins and direction of the Farc-EP, lançado em 2010, e que já é considerado referência básica no assunto.
A Verdade – Há quanto tempo você vem pesquisando sobre as Farc-EP? Conte-nos um pouco da sua experiência na Colômbia junto à guerrilha.
James Brittain – Desde o fim da década de 1990 eu tenho me interessado e tentado compreender as complexidades da guerra civil colombiana, particularmente do ponto de vista dos mais marginalizados. Isso me levou à realidade daqueles em luta direta com a classe dominante na Colômbia – isto é, me levou a um encontro pessoal com as Farc-EP. Quando comparada com muitas outras partes da América Latina – onde algum tipo de mudança social é vista ou percebida como aparentemente funcional dentro dos limites do modelo eleitoral liberal democrático – a Colômbia demonstra uma realidade bem diferente, e com isso, a necessidade do conflito direto de classe. Isso me levou a começar a me comunicar com a guerrilha e mais tarde, a conduzir pesquisa de primeira mão em áreas sob seu controle/operação durante grande parte da última década.
Que circunstâncias objetivas levaram à formação das Farc-EP?
A resposta é bem complexa. mas vou tentar responder. De forma resumida, muitos daqueles oprimidos por uma grave exclusão social, pela repressão estatal, por um governo apático e pelo agravamento das condições econômicas perceberam que romper relações de classe limitadas e desiguais por meios convencionais era, literalmente, impossível. Em resposta à expansão de interesses capitalistas e a um estado engajado em atividades coercitivas extremas contra uma população rural, e sendo este estado, ao mesmo tempo, inativo na promoção de serviços de saúde, seguro social agrário e uma enorme lista de serviços sociais como educação, as Farc-EP se estabeleceram durante os anos 1960 como um coletivo de autodefesa camponês que criticava a interferência imperialista na Colômbia, enquanto colocava em prática estratégias de reforma agrária e modelos alternativos de desenvolvimento via aliança operário-camponesa. Isso, no entanto, ocorreu apenas depois de décadas de tentativas de alcançar alguma forma de mudança social através de desenvolvimento alternativo e meios pacíficos. Sem nenhuma outra possibilidade, as Farc-EP foram constituídas, então, em maio de 1964.
As Farc-EP são uma organização marxista? A guerrilha perdeu hoje sua motivação ou orientação ideológica inicial, como é divulgado pela imprensa burguesa?
Nos últimos 47 anos as Farc-EP se desenvolveram num movimento sociopolítico complexo e organizado, com membros de todos os setores da sociedade colombiana; populações indígenas, afrocolombianos, trabalhadores rurais sem terra, intelectuais, sindicalistas, professores, setores do proletariado urbano e por aí vai – todos esses lutando por desenvolvimento social através da realização de uma sociedade socialista – e é, com certeza, um movimento baseado na tradição marxista. Como foi notado por Bernard-Henri Lévy após entrevistar membros da guerrilha, o marxismo-leninismo das Farc-EP “não me lembra nada que já tenha ouvido ou visto em qualquer outro lugar… isso é um impecável comunismo; juntamente com Cuba, este é o último comunismo na América Latina e, certamente, o mais forte”. Uma das razões pelas quais muitos ingenuamente pensam que a guerrilha “perdeu sua direção ideológica” pode ser baseada na estratégia de longo prazo das Farc-EP de compreensão e aplicação do marxismo no contexto de uma realidade colombiana. Desde sua formação as Farc-EP permanecem comprometidas à práxis da transformação revolucionária das relações sociais na Colômbia. Para que isso ocorra é necessário que a revolução seja das, com e para as populações marginalizadas dentro do país, o que levou as Farc-EP a confiar na consciência interna e no suporte das classes trabalhadoras rural e urbana. Já foi bem documentado que a guerrilha foi pouquíssimas vezes apoiada – se é que foi mesmo apoiada – por auxílio estrangeiro, e tem, ao contrário, sustentado sua luta pela base. Mesmo em grande solidariedade, a guerrilha se dissociou, tanto material quanto imaterialmente, da União Soviética antes do seu colapso, o que é uma forte indicação de por que a guerrilha não sofreu perdas materiais quando o regime soviético implodiu. De fato, esta estratégia orgânica fez que as Farc-EP se fortalecessem sociopoliticamente e aumentassem por todo o país durante um período em que outras guerrilhas latino-americanas, que eram em parte dependentes de apoio soviético ou cubano, se enfraquecessem ou que passassem de seu radicalismo para uma retórica mais liberal de aspirações políticas.
As Farc-EP têm alguma ligação com o plantio de coca ou com o tráfico de drogas?
Uma tremenda desinformação tem sido apresentada neste assunto. Contrariamente à crença popular, as Farc-EP foram, por muitos anos, severamente contra o cultivo de plantações relacionados à indústria da droga. No entanto, à medida que a economia rural e as colheitas diminuíram ao passar dos anos, como resultado de políticas neoliberais – e não havia mais retorno em plantações tradicionais – muitos camponeses não tinham muitas opções a não ser subsidiar suas rendas com o cultivo de marijuana e, posteriormente, coca. Pelo fato de as Farc-EP serem um movimento do, com e para o povo, seria hipócrita por parte da guerrilha exigir dos camponeses, pela força, que abandonassem uma plantação que lhes fornecia alguma forma de renda no ambiente político-econômico em que se encontravam. No entanto, pensar que isso faz das Farc-EP traficantes de drogas ou “narcoguerrilhas” é, no mínimo, absurdo e revelador de quão pouco aqueles que fazem tais afirmações conhecem ou compreendem da economia política rural da Colômbia.
O ex-conselheiro militar da presidência de Álvaro Uribe Vélez, Alfredo Rangel Suárez, afirmou que “é um erro tratar as Farc como um cartel de drogas porque isso ignora o fato de que o objetivo principal das Farc não é fazer dinheiro com o tráfico de drogas, mas tomar o poder”. Pintar as Farc-EP como uma guerrilha associada ao tráfico tem sido uma tentativa estratégica de desmoralizar a práxis das Farc-EP, deslegitimar as intenções sociopolíticas e econômicas da organização e, finalmente, evitar uma solução negociada para a guerra civil. Já foi amplamente comprovado que não existe nenhuma prova para sustentar a afirmação de que as Farc-EP estejam diretamente envolvidas com a indústria da coca. Até mesmo representantes dos governos da Colômbia e dos EUA já insistiram nessa posição. Por anos, oficiais do exército estadunidense, da Drug Enforcement Agency (DEA) e de sua embaixada na Colômbia já afirmaram que o estado nunca obteve nenhuma evidência de que as Farc-EP estivessem envolvidas no transporte, distribuição ou comércio de drogas ilícitas na América do Norte ou na Europa. Além do mais, o ex-presidente colombiano [1998-2002] e ex-embaixador nos EUA [2005-2006] Andrés Pastrana Arango também manteve a mesma posição de que as Farc-EP não estavam de maneira alguma ligadas ao tráfico de drogas. Pastrana revelou que o estado colombiano não conseguiu encontrar “nenhuma evidência de que eles estão diretamente envolvidos com o tráfico de drogas”. E indo um pouco além da questão do envolvimento com as drogas, há também a (silenciada) questão do trabalho feito pela guerrilha em limitar a indústria da coca para que não se espalhasse completamente pelos setores rurais do país. Após a recusa das Farc-EP em dar apoio ao cultivo de coca durante os anos 1970 e início dos anos 1980, a insurgência mudou sua posição no final dos anos 1980 e durante os anos 1990. Permanecendo em oposição à coca, as Farc-EP começaram a trabalhar com a ONU durante os anos 1980 em inúmeros projetos relacionados à substituição de plantio em regiões sob controle da insurgência. Trabalhando independentemente do governo, a ONU adotou as Farc-EP como parceira em programas relacionados ao desenvolvimento social e à substituição de plantações. As Farc-EP nunca promoveram a produção de coca. A insurgência tem por muito tempo encorajado e auxiliado projetos de substituição de plantios em diversos municípios. Durante os anos 1990 e 2000 as Farc-EP apoiaram com sucesso uma mudança de plantações de coca para outros tipos de plantações lícitas na gestão de Micoahumado no município de Morales. As Farc-EP foram, de fato, a primeira organização na Colômbia a incentivar a substituição de plantio – muito tempo antes do problema da coca ficar fora de controle. Hohe, as Farc-EP permanecem engajadas em projetos autônomos para encorajar os camponeses a cultivar plantações de subsistência.
As Farc-EP estão diminuindo e perdendo apoio popular? Elas impõem recrutamento forçado?
Como tem sido admitido recentemente pelo governo Santos, as Farc-EP não só têm apresentado uma inacreditável habilidade para manter seu poder e presença por todo o país, como isso é revelador do apoio que tem a guerrilha. No entanto, é essencial que aqueles no poder apresentem uma hegemonia que pinta as Farc-EP como fracas ou sem apoio civil. Mas quando alguém examina por toda a história as lutas contra o poder dominante, fica claro que qualquer movimento de guerrilha não pode ser conduzido ou manter operações contra forças do estado sem um significativo apoio social e político. Enquanto algumas frentes das Farc-EP têm sofrido alguns golpes nos últimos anos, a insurgência tem sido capaz de não apenas estabilizar campanhas contra alvos escolhidos, mas também tem aumentado suas atividades ano após ano. Por muitos anos, as Farc-EP vêm modestamente ampliando suas campanhas armadas contra as forças do estado (949 em 2004, 1.008 em 2005, 1.026 em 2006, 1.057 em 2007). Mas os últimos anos, no entanto, presenciaram um salto significativo no número de ataques militares da insurgência, em uma média de cinco ao dia (1.614). Ainda 2010 testemunhou o maior número de ataques da guerrilha contra as força do estado em 15 anos, totalizando mais de 1.947, e mais mortes das forças do estado do que no auge do conflito, no início dos anos 2000. Permanece o fato de que as Farc-EP são o mais longo movimento de guerrilha estabelecido nas Américas e desde o início se desenvolveu num movimento complexo e organizado com 65% de seus membros vindod do campo ou de municípios rurais – dos quais quase 13% são de origem indígena – e os outros 35% de setores urbanos. Isso está muito longe de um movimento que não tem apoio do povo. Quanto à questão do “recrutamento forçado”, a resposta é bem simples: fazer as pessoas lutarem por um movimento de autodeterminação e libertação através da força ou de ameaças resultaria apenas num desperdício de recursos e simplesmente geraria um plantel incapaz de dar resposta às forças do estado, pois estariam ali não para vencer, mas apenas para sobreviver. Ao se examinarem os dados acima, reconhece-se facilmente que, com uma média de seis ataques diários bem-sucedidos contra as forças do estado é possível ver além do que diz a propaganda da mídia dominante.
Qual foi o real objetivo dos EUA com o Plano Colômbia? Como ele afetou as Farc-EP?
A partir da metade dos anos 1990, as Farc-EP demonstraram um crescimento político militar que colocou os militares na defensiva. A partir disso, Washington procurou reforçar as medidas antiguerrilha da Colômbia esperando com isso diminuir a autoridade das Farc. Os EUA não podiam permitir, política ou economicamente, que um movimento de insurgência marxista-leninista chegasse ao poder em nível hemisférico ou geopolítico. Os EUA estavam bem atentos ao crescimento das Farc-EP e sua crescente ameaça aos interesses político-econômicos tanto domésticos quanto internacionais desde antes de 1997-1998. Evidências demonstram que Washington se envolveu com treinamentos às forças colombianas de contrainsurgência e posicionou tropas estadunidenses em regiões específicas do país desde o início dos anos 1990. Em 1990, por exemplo, o posto da CIA na Colômbia era o maior de seu tipo no mundo, e no fim dos anos 1990, os EUA e o estado colombiano já tinham estabelecido a maior campanha de contrainsurgência na história da América Latina, o Plano Colômbia. Para abrandar a oposição em relação ao crescente financiamento da contrainsurgência na Colômbia, o governo Clinton [1993-2001] camuflou o tópico da intervenção militar direta dos EUA sob a retórica de combate ao narcotráfico do Plano Colômbia. Inúmeros analistas já afirmaram que as Farc-EP não serão e não podem ser derrotadas. Alguns deles, como Marc Chernick, notaram que “apesar do constante aumento da capacidade militar do estado, ele ainda não é capaz de derrotar as guerrilhas hoje ou num futuro próximo… sua estrutura organizacional [da guerrilha], sua base de recrutamento e sua habilidade de travar guerra de guerrilhas por todo o território nacional permanecem inalteradas.” Especialistas, desde o ex-embaixador dos EUA em El Salvador, Robert White, até o historiador colombiano Herbert Braun, expressaram que Bogotá ou Washington não podem, de nenhuma maneira, derrotar as Farc-EP. Perto de seu final, o Plano Colômbia, com mais de 7,7 bilhões de dólares colocados na estratégia de contrainsurgência, não apenas falhou em derrotar as Farc-EP como testemunhou algumas das campanhas mais ferozes da guerrilha na década.
Glauber Ataide e Leonardo Péricles, Belo Horizonte
Fonte: http://www.averdade.org.br