O Agro é tóxico

imagemJoão Vitor Villas Boas*

“O Agro é Pop, o Agro é Tech, o Agro é tudo. O agro é a riqueza do Brasil”: com esse bordão profundamente colonizado, a Rede Globo vem inundando nossas residências com uma grande mentira – mentira que no pensamento econômico pré-data Adam Smith: a ideia de que o latifúndio pode gerar algum tipo de riqueza e, pior, que essa seria a riqueza de nossa pátria.

Essa mentira se sustenta em duas pernas, igualmente importantes: a primeira é a que coloca nossa agricultura baseada no latifúndio como grande produtora de alimento; a segunda coloca nossos modernos senhores de engenho como grandes incentivadores da produção tecnológica. Vamos analisar mais de perto esses argumentos.

Cereais são a base da alimentação mundial. Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA, em definição aceita globalmente, existem três grãos que compõem a alimentação e definem a produtividade das agriculturas pelo globo: arroz, trigo e milho[1]. Nesse indicador, fundamental à segurança alimentar da população, o latifúndio brasileiro é uma verdadeira lástima. Nossa agricultura “tecnológica” produz apenas 116 milhões de toneladas anuais de grãos, contra 501 milhões da China e 472 milhões dos EUA, países com extensão territorial comparável à nossa [2].

Na produção per capta de grãos a vergonha de nosso latifúndio se aprofunda. Dentre os dez maiores produtores de grãos do planeta, só China e Índia apresentam produções per capta inferiores às brasileiras, e tratam-se das maiores populações do planeta terra. Até na produção de milho, alimento básico nas Américas, é motivo de vergonha o nosso “agorobusiness”, com produtividade de 5,60 toneladas por hectare, contra 10,96 dos EUA e 8,37 de nossos vizinhos argentinos [2].

E para que é utilizada a terra do latifúndio, se não produz os grãos que nos alimentam? Para a produção de soja. O cultivo dessa leguminosa no país começou nos anos 1950, após a publicação de Andrew McClung[3], cientista de solo estadunidense que posteriormente ganhou o Prêmio Mundial da Alimentação – o qual, segundo seus mantenedores, se dedica a premiar aqueles com contribuições relevantes ao desenvolvimento humano, ao aumentar a qualidade, quantidade ou disponibilidade da comida no mundo – pela descoberta de que era possível plantar soja no cerrado brasileiro e, na posse do prêmio, condenou a agricultura brasileira a mais meio século de servilismo aos interesses do império.

A partir de então a fronteira agrícola brasileira não parou de crescer (inclusive durante os governos petistas) rumo ao norte, destruindo cada vez mais um dos maiores patrimônios biológicos de nossa nação: a Floresta Amazônica.

Impulsionados pelo crescente preço da soja no mercado internacional, nossos latifundiários preferem alimentar a pecuária chinesa e estadunidense[4] do que o nosso povo. A soja não é um alimento adequado à dinâmica nutricional das populações, tem baixa densidade energética e necessita de cozimento especial, uma vez que é tóxica aos organismos com apenas um estômago, como os seres humanos.[4] Apesar de excelente substituto proteico da carne, a soja não desempenha o papel que os grãos têm no desenvolvimento econômico, dentro das categorias da econômia política de qualidade.

Hoje, a maior parte do comércio de soja no Brasil é realizado por uma multinacional, a Cargill, cuja sede fica no estado de Minnesota nos EUA, e cujas ações pertencem quase exclusivamente à família Cargill. Esse grande monopólio é a maior corporação privada dos EUA, com quase US$ 110 bilhões de faturamento e US$ 3 bilhões de lucro líquido. Com sucursais no mundo inteiro, é na América Latina que a empresa tem maior penetração, com sede na Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

A Cargill, como não poderia deixar de ser, carrega inúmeras denúncias pelo mundo, como de violação das leis de trabalho e dos direitos humanos[5], desmatamento ilegal[6], contaminações de alimentos com fungicidas e bactérias causadoras de gastroenterite[7], e poluição atmosférica [8]. No mundo real, isso se traduz no altíssimo preço dos alimentos no Brasil, que, por sua vez, explicam a situação miserável de saúde da população mais carente do país. Submetida à fome relativa[9], também chamada de fome especificamente capitalista, essa população tem acesso às calorias que necessita para se reproduzir como trabalhadores, mas apenas através de alimentos ultraprocessados e baratos. Esses miseráveis trabalhadores se somam aos índices grotescos de obesidade e doenças cardiovasculares que se alastram pelo mundo como incêndio. Segundo recente estudo publicado no insuspeito de vocação subversiva The New England Journal of Medicine (NEJM), já atingimos a cifra de 2,2 bilhões de obesos no mundo[10], que se somam aos 800 milhões que sofrem da fome absoluta, segundo a ONU – quando não atingem sequer as calorias necessárias.

No campo da produção de tecnologia o discurso dos latifundiários é ainda mais nefasto. A produção agrícola em nosso país está submetida até o nariz no jogo da produção imperialista global de alimentos, e isso se reflete no uso indiscriminado de agrotóxicos, aceitos em doses até 5 mil vezes maiores aqui em relação ao que é permitido na União Europeia[11]. Consequência direta disso: nosso povo é o que mais consome agrotóxicos no mundo, chegando aos 5,2 quilos por habitante ao ano. O mercado do agrotóxico movimenta cerca de US$8,5 bilhões no Brasil[12], quase tudo remetido na forma de lucros e dividendos ao estrangeiro através de multinacionais como a Monsanto, detentora de larga fatia nesse mercado.

A produção de patentes no Brasil é irrisória, apesar (ou exatamente por conta do) drástico aumento de publicação de artigos (os chamados “papers”) em revistas ditas internacionais, mas que na verdade têm residência fixa em países do centro do sistema, com corpo editorial totalmente embricados nos interesses nacionais dessas potências. Estudo realizado em 2009 por Ludmilla Jacobson, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca-FIOCRUZ, mostra o método perverso usado por essas grandes empresas para invadir e alterar os métodos de produção tradicionais usados por nossos camponeses. Em seu estudo, a pesquisadora avaliou uma população pomerana, instalada na região serrana do Espírito Santo[13]. A comunidade relata que houve grande incentivo de mercado para o início do uso dos agrotóxicos, com argumentos como o do aumento da produtividade, de forma que o uso dessas substâncias foi incorporada e hoje é parte do que essa comunidade chama de “tradição familiar”. O incentivo ao uso dos venenos acaba desencadeando o mau uso, como no caso desses agricultores que relatam a administração de sobras dos produtos, bem como as contaminações que ocorrem pela ausência de material técnico de proteção e pela falta de acompanhamento. Para a indústria, só interessa a venda – alterando profundamente a dinâmica de produção, sem apresentar qualquer tipo de auxílio que vise a sustentabilidade dos agricultores[13].

No Brasil, foi identificado o uso de 283 agrotóxicos diferentes, sendo que 68 destes se apresentam em concentração superior do que aquela permitida pela ANVISA. Os que aparecem em maiores concentração em nossa comida são o Acefato, o Brometo de Metila, a Diazinona, a Fentina, o Fipronil, a Fosfina e o Terbufos, todos com concentração a partir de 10 vezes mais que as permitidas pela agência estatal e classificados como extremamente tóxicos.

Dentre todos esses venenos, o que causa mais espanto é o Brometo de Metila, encontrado em concentrações até 3.575 vezes maior que a permitida. Essa substância é a principal responsável pela disponibilidade de bromo no meio ambiente, sendo um dos principais causadores da degradação da camada de ozônio, essencial para a vida em nosso planeta. O Brometo de Metila é classificado toxicologicamente como tipo I (extremamente tóxico) por causar danos a diferentes órgãos e tecidos, como o pulmão, glândulas suprarrenais, rins, fígado, cérebro, testículos e tecido adiposo[13]. Na intoxicação aguda,

podemos ver dores de cabeça, náusea, vômito e alterações de temperatura corporal. Já na exposição crônica, como aquela vivida pelos trabalhadores rurais, os casos de confusão mental, apatia, visão turva, dificuldade para falar e a fraqueza muscular são comuns. Em estudos realizados na Califórnia, foi relatada a diminuição do peso, comprimento e circunferência cefálica dos recém-nascidos cujas mães foram expostas à substância.

O segundo veneno mais consumido por nossa população é a Fosfina, um inseticida classificado como tipo II (altamente tóxico). A intoxicação por essa substância afeta comprovadamente o coração, o cérebro, os rins e o fígado[13].

O uso indiscriminado desses produtos já apresenta seus efeitos de forma drástica: de 1985 a 2003, o número de intoxicações cresceu 23%, enquanto o de óbitos saltou 6%. Na região nordeste, o aumento das intoxicações foi de alarmantes 164%! Em 2011 chegamos à

marca de 7560 casos notificados desse tipo de ocorrência. Sabemos, no entanto, que a subnotificação ainda é a lei em nosso serviço de saúde.

O suicídio é outro mal oculto advindo do uso indiscriminado de agrotóxicos. Em relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul de 1996(!) já apontava-se que 80% dos suicídios da cidade de Venâncio Aires, a maior produtora de tabaco do Estado, eram cometidos por agricultores. O índice de suicídio por uso de venenos agrícolas foi de 22,6 casos para cada 100.000 habitantes no período de 1980 a 1999 (muito superior à média brasileira para suicídios em geral, de 4,3 casos para cada 100.000 habitantes) no município de Luz (MG), famoso pelo uso dos organofosforados, tipo de inseticida que apresenta alta absorção pela pele. Nessa comunidade, apenas 29% dos trabalhadores rurais usavam proteção ao operar os venenos[14]. Nos municípios do Sul do país, onde ocorre o plantio de tabaco, o índice chegou a 78,7 casos/100.000hab, o maior do Brasil em 2015.

Nosso povo é envenenado diariamente com toneladas de agrotóxicos, ao mesmo tempo em que milhares de pequenos agricultores perdem suas terras e são condenados a uma vida

de miséria absoluta nas periferias das grandes cidades, onde encontram a violência e o descaso do Estado, apenas para sustentar a dinâmica de acumulação de riquezas de meia dúzia

de bilionários. Está na hora de dar um basta nessa realidade! Precisamos destruir a atual estrutura atrasada de nosso campo em nome de um projeto de desenvolvimento popular que dê dignidade ao nosso povo, assegure seu direito a comida, saúde, lazer e trabalho!

Referências

1. http://usda.mannlib.cornell.edu/usda/current/worldag-production/worldag-production-01-12-2018.pdf

2. http://criticadaeconomia.com.br/a-miseria-do-agronegocio-brasileiro/

3. http://old.ibpdev.net/community/soya-bean

4 http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.HTM

5. http://www.crisisgroup.org/home/index.cfm?id=3294

6. http://www.greenpeace.org/international/news/soya-blazes-through-the-amazon

7. http://www.sciencemag.org/cgi/pdf_extract/181/4096/230

8. https://www.epa.gov/newsreleases/cargill-inc-agrees-settle-clean-air-act-violations-vitamin-e-manufacturing-facility

9. http://criticadaeconomia.com.br/as-modernas-formas-da-fome-capitalista-2

10. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1614362

11. http://reporterbrasil.org.br/2017/11/agrotoxicos-alimentos-brasil-estudo/

12. https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/brasil-lidera-ranking-de-consumo-de-agrotoxicos-15811346

13. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/11/11141/tde-05012017-175050/pt-br.php

14. http://www.scielo.br/pdf/rbso/v32n116/04.pdf

*Militante do PCB de Marília SP