ALFONSO CANO: OUTRO DIRIGENTE REVOLUCIONÁRIO QUE ABRAÇA A IMORTALIDADE

Lá, em meio ao incontido fogo guerrilheiro contra o regime da vergonha e venda da pátria que nos oprime, Alfonso Cano cumpriu seu compromisso com a morte, em exercício de sua missão histórica, para orgulho e exemplo dos revolucionários da Colômbia, da América Latina e do mundo inteiro.

As paragens de Sumapaz, vinculadas gloriosamente à história pela heroica resistência campesina à voracidade latifundiária em boa parte do século vinte, seria testemunha da chegada do jovem Alfonso Cano às fileiras das FARC-EP. Nesses belíssimos campos da cordilheira oriental, ocorreu seu encontro com os dois grandes fundadores, Manuel Marulanda Vélez e Jacobo Arenas, que não vacilaram em integrá-lo como membro pleno do Secretariado Nacional, a exigente direção revolucionária encarregada de conduzir as distintas estruturas das FARC em todo o país.

Sua trajetória rebelde

Aquela decisão não  foi gratuita. Alfonso já contava com uma longa e fértil trajetória rebelde, florescida em meio ao turbilhão mundial dos anos sessenta, época na qual a juventude se encarregou de derrubar por terra mais de um mito edificado pela sociedade de mercado.

Os estudantes, essa torrente de energia continuamente mobilizada e renovada, desmascaravam a brutal agressão imperialista contra o humilde povo do Vietnã, manifestavam entusiasmadamente seu respaldo incondicional à Revolução Cubana e sua admiração pelas emblemáticas figuras de Fidel e Che, somavam-se comovidos à solidariedade com os camponeses que se levantaram em Marquetalia, aplaudiam o levante das comunidades negras contra a discriminação racial no território dos Estados Unidos e vibravam emocionados com as lutas dos africanos e asiáticos contra o colonialismo.

Alfonso Cano encarnou de forma exemplar essa geração íntegra, comprometida com a causa universal dos oprimidos. Soube fundar sua ativa militância revolucionária numa crescente formação marxista que, unida ao seu incansável trabalho, tinha de conduzi-lo a ocupar as mais importantes responsabilidades dentro da Juventude Comunista. Sua espontânea contribuição clandestina às FARC acabou por distanciá-lo das atividades legais. O apoio logístico ao movimento armado, assim como a instrução ideológica e política de seus combatentes, faria parte de suas delicadas tarefas durante vários anos. Finalmente, depois de passar pela dura frágua do cárcere, determinou vincular-se inteiramente à guerrilha nas montanhas.

Pouco depois de sua chegada à Sumapaz, marchou pela espinha da cordilheira rumo ao município de Colômbia, no distrito de Huila, onde teria que efetuar um primeiro encontro da delegação do Secretariado e da comissão do governo, como passo prévio para a abertura do processo de diálogos entre as FARC e a administração de Belisario Betancur. Assim, é possível afirmar que, a partir do momento em que o Camarada Alfonso Cano desceu do ônibus em San Juan del Sumapaz, iniciou seu trabalho pela paz do país, colocando-o acima dos múltiplos riscos e esforços. Esse seria para sempre o espírito de seu compromisso.

Um defensor da solução política

Foi na Casa Verde, ao lado de Manuel e Jacobo, onde se iniciou, de maneira diligente, seu papel no Secretariado. É daquela época que rondam os Acordos de La Uribe, que datam os cimentos da doutrina fariana sobre a superação do conflito social e armado na Colômbia, segundo a qual está fundamentada a solução dos problemas estruturais que originaram a revolta. Estas informações contrariam totalmente a versão oficial e das falsas posições de esquerda, que apregoam consistir a fórmula para a paz a renúncia dos revolucionários aos seus princípios, sua submissão às posições das classes dominantes e à traição ante as ofertas e agrados das classes dominantes.

Coube a Alfonso encabeçar a delegação de porta-vozes das FARC nas conversações entre a Coordenadoria Guerrilheira Simón Bolívar e o governo de Cesar Gaviria, em Caracas e Tlaxcala. Tais conversações fracassaram no momento em que o governo optou por levantar-se da mesa, a fim de evitar a discussão com a guerrilha e os dirigentes sindicais sobre o pacote de medidas econômicas neoliberais implantadas com os sonoros nomes de modernização, abertura econômica e privatização.

Também o vimos em Caguán, durante a etapa dos diálogos com Pastrana, ao lado do camarada Manuel e demais membros do Secretariado, traçando as linhas que guiaram essa nova tentativa de encontrar saídas civilizadas para o conflito que nos envolve há mais de seis décadas. A nova tentativa naufragou novamente quando o governo da época, argumentando razões similares as de Gaviria, acabou de maneira unilateral com o processo, abandonando a discussão dos temas acordados na agenda.

Após assumir o comando das FARC, o camarada Alfonso Cano, consequente com esta linha de conduta política, assegurou em carta dirigida aos comandos e guerrilheiros, em junho de 2008: “Persistiremos em nossos esforços para alcançar a paz democrática pelas vias civilizadas do diálogo tal como temos feito há 44 anos, porque é nossa concepção revolucionária, porque assim são nossos princípios”.

Semanas antes de morrer, em mensagem enviada ao Encontro Nacional pela Paz, realizado na cidade de Barrancabermeja, expressou, assim, seu pensamento: “As FARC-EP querem hoje reiterar, uma vez mais, nossa crença na solução política, nossa crença no diálogo, nossa crença em ser viável a chave central deste evento. Consideramo-la justa. O diálogo é o caminho. Convocamos todos vocês a que, a partir deste evento, irriguem o país e o mundo com esses imensos desejos que temos, ao menos a grande maioria do país, de encontrar as soluções políticas para o conflito”.

Esse era seu pensamento, sua concepção de paz para a pátria: uma paz cimentada sobre a base do progresso e bem-estar para o povo, fundada numa verdadeira democracia, com emprego, salário justo, terra para os camponeses, saúde e educação para todos. Talvez por isso a burguesia militarista e sanguinária, assim como seus porta-vozes contratados, todos inimigos do povo da Colômbia, assegurem que se tratou de uma pessoa intransigente, contrária à solução política.

Suas contribuições para a luta

Junto com Manuel e Jacobo, foi designado a Alfonso integrar uma equipe, em cuja composição resumia a essência histórica das FARC-EP: camponeses, trabalhadores e estudantes reunidos sob as bandeiras ideológicas do marxismo-leninismo aplicado a nossa realidade, para vertê-lo em diretrizes certeiras ao acionar político e militar do Exército do Povo, em conclusões de conferências e plenos, declarações e manifestos que desenvolvem o conteúdo do programa político-partidário, o plano estratégico e a plataforma bolivariana.

Sua inestimável contribuição à linha político-militar das FARC-EP é encontrada em inúmeros documentos, que se caracterizam por sua condição enquanto membro do Secretariado Nacional. Neles, se coloca presente sua magistral capacidade de síntese do pensamento coletivo, sua atinada visão da realidade nacional e seu manejo certeiro do método marxista para desentranhar a essência dos fenômenos e dar resposta precisa aos complexos problemas que se apresentam à direção revolucionária num país como o nosso.

Comunista integral, não vacilou na defesa dos mais caros princípios organizativos quando os mesmo pudessem sofrer declínios ou fosse exigida a luta ideológica interna contra toda expressão estranha à ideologia proletária.

Em abril de 2000, diante de mais de trinta mil entusiastas assistentes e com a presença da maioria do Estado Maior Central, Alfonso Cano assumiu a direção do Movimento Bolivariano pela Nova Colômbia. Com um sisudo discurso, colocou claramente, de maneira incisiva, o caráter violento e criminoso do regime. Dessa forma, sustentou a necessidade de levantar esta inovadora ferramenta organizativa como alternativa para a unidade dos humildes da Colômbia, em sua luta para alcançar a paz com justiça social e soberania.

Nos mesmos dias, no desenrolar de uma reunião em Villa Nueva Colombia, sede dos diálogos com o governo, sob a assistência de embaixadores e representantes de 29 nações e do Estado Vaticano, expôs, em nome do Estado Maior Central das FARC, as razões históricas do conflito, desvelou a dupla moral da burguesia colombiana e do imperialismo norte-americano no tema da luta contra as drogas, denunciou a inclemente espoliação de nossos recursos naturais e reclamou a solidariedade da comunidade internacional na busca da solução política para o conflito. Sua proposta final de moratória do pagamento da dívida externa como forma de liberar recursos necessários para nosso desenvolvimento terminou por acarretar o aplauso de todos os participantes.

Justo reconhecimento

Sua designação como integrante da direção da Coordenação Continental Bolivariana se constituiu no reconhecimento dos povos da América Latina e do Caribe quanto ao seu inquebrantável compromisso com a libertação do domínio imperialista. Reconhecimento que adquire um caráter duplamente meritório numa época como a atual, no momento em que a ideologia dominante se encarrega de proclamar que o imperialismo não foi mais que uma construção mitológica do passado, e se faz objeto de indescritíveis riscos a todo anti-imperialista consequente.

O homem revolucionário

Alfonso era dono de uma imensa capacidade para a análise. Nada escapava a sua aguda e certeira observação, que logo tomava corpo em frases precisas ao falar ou escrever. Como expositor e conferencista de temas ideológicos ou assuntos específicos da problemática realidade colombiana, convertia numa rica experiência o privilégio de escutá-lo. Excelente conversador, de maneiras amáveis no trato e fino humor bogotano, transmitia grato acolhimento ao seu interlocutor, enquanto, com seu olhar de grandes olhos abertos, indagava as razões ocultas por trás dos gestos e pessoas.

Jamais abandonou sua paixão pelos esportes. Fã apaixonado do clube Milionarios, da capital da república, em cujas divisões inferiores chegou a jogar, não hesitava em começar uma discussão com torcedores do Independiente Santafé que ousassem desafiá-lo. Sempre seguiu com atenção os resultados do campeonato. Vibrava ou sofria com as atuações de seu time. Em épocas anteriores, quando a dinâmica do confronto permitia, era possível vê-lo frequentemente jogando futebol com seus camaradas ou manejando com destreza a raquete numa mesa de pingue-pongue.

Entre os jogos de mesa, o que mais gostava era do armador de palavras. Através de suas cartas, conseguia desentranhar os pormenores mais recônditos da personalidade de seus rivais. Seduzido pelo automobilismo, seguia emocionado as transmissões das provas e desfrutava com as conquistas de Juan Pablo Montoya na Fórmula 1. Era um amante dos animais. Cuidava e atendia com carinho aqueles escolhidos como mascotes. Entre estes, se encontraram sempre os cachorros, que até sua própria morte o arrancaram especial afeto.

Em seus momentos de lazer e entretenimento, não faltou nunca o ritmo dos boleros antilhanos e das clássicas canções de salsa, enquanto degustava um gole de Remy Martin. E na hora de dançar, sabia fazê-lo com a especial habilidade de quem aprendeu sobre tais artes nos lugares preferidos da boemia dos anos sessenta e setenta do século passado.

Porém, sem dúvida, sua verdadeira paixão foi a leitura. Era comum encontrá-lo submerso nela durante horas e horas, devorando um livro atrás do outro, com incansável dedicação, sem que lhe faltasse tempo para ler assiduamente diferentes tipos de revistas e publicações. Isso permitiu que ele estivesse inteirado sobre diversos tipos de assuntos. Este hábito veio de muito jovem, talvez reforçado pela exigente discussão política que o cercava no ambiente quente de seus anos de estudante na Universidade Nacional. Desde então, nenhum campo do saber escapava a sua atenção, ainda que seus favoritos fossem a filosofia, a economia, a política, a história, a literatura, a linguística e as distintas manifestações da arte.

O quadro de teoria e prática

Sua inquestionável política e moral estiveram enraizadas na formação intelectual construída ao longo dos anos, ao lado da qual sempre julgou de igual importância seu desempenho nas diferentes atividades revolucionárias. Alfonso demonstrou por toda vida sua inegável capacidade teórica e uma incessante prática material, que fizeram dele um destacado quadro integral do movimento do armado, disposto permanentemente a conjugar pensamento e ação do modo mais consequente e valoroso.

Esse inabalável traço de seu caráter nunca pode ser perdoado por seus detratores, aqueles com quem sempre contaram os desertores da luta revolucionária legal ou armada. Uma vida exemplar, a serviço da causa dos pobres até as últimas consequências, constitui uma marca acesa, que queima e arde desesperadamente na consciência de toda essa inteligência subserviente ao grande capital, que hoje, como ontem, destila sua frustração nos meios de comunicação e no mundo acadêmico “politicamente correto”.

Após o falecimento do camarada Manuel, seus companheiros do Secretariado Nacional não titubearam um instante para designar Alfonso Cano como novo Comandante das FARC-EP. Desde a fundação da organização, só Marulanda tinha ocupado esse cargo. O novo Chefe assumiu o comando numa etapa de intenso confronto com o regime, na qual se demonstraram amplamente suas capacidades como condutor político-militar, já evidenciadas em seu desempenho como Coordenador dos Comandos Adán Izquierdo y Occidental. De modo rápido, soube ganhar o reconhecimento e o respaldo dos comandos e tropas guerrilheiras, que vieram materializar, na prática concreta, os planos de sua correta orientação.

Prova disso é  o nível alcançado pelas FARC no distrito de Cauca, onde o Camarada Alfonso passou seus últimos dias à frente dos audazes destacamentos guerrilheiros. Esses destacamentos, diariamente, colocavam as tropas oficiais em aperto, cujos comandos não conseguiram explicar as razões de seu fracasso à tentativa de conter o irrefreável acionar da insurgência. Lá, em meio ao incontido fogo guerrilheiro contra o regime da vergonha e venda da pátria que nos oprime, Alfonso Cano cumpriu, de forma heroica, seu compromisso com a morte, em exercício aguerrido de sua missão histórica, para orgulho e exemplo dos revolucionários da Colômbia, da América Latina e do mundo inteiro.

O Comandante Alfonso Cano caiu em combate, oferecendo sua vida de maneira generosa pela libertação da pátria e como demonstração do compromisso irreversível que inspira os comandos e combatentes do Exército do Povo. Sua vida e sua morte nos mostram o caminho por onde é preciso transitar a vitória popular e a Nova Colômbia.

Seu testamento epitáfio

Seguindo o caminho traçado por Manuel e Jacobo antes de partir, contou com tempo e dedicação suficiente para completar as lacunas sobre as quais devemos continuar trabalhando nesta trama da história. Assim, o certificam as palavras dirigidas a todos os membros do movimento quando assumiu o comando das FARC-EP:

“Camaradas: os caminhos que conduzem ao desdobramento da luta popular em suas mais variadas formas e à conquista do poder, nunca foram fáceis, nem em nosso país e nem em nenhuma outra parte do mundo, nem agora e nem antes. Somente a profunda convicção na vitória, na justiça, na validez e vigência de nossos princípios e objetivos e um monolítico esforço coletivo, garantirão o triunfo. Aos reacionários que fazem contas alegres com as baixas das FARC, informamos que a intensidade dos confrontos nos fortaleceu. Estreitamos vínculos com as comunidades, suas organizações e suas lutas populares, elevando a disciplina e o respeito pela população civil e aumentando nossa qualificação e aprendizagem. Caíram guerrilheiros porque assim é a luta, porém ter seu generoso sangue derramado é evidência de nosso total compromisso com o povo. Outros camaradas já cobriram a trincheira e muitos mais continuam chegando às fileiras. Também foi assim com a façanha de nossa independência e todos os processos libertadores da humanidade onde se desataram demônios da guerra…”.

“… Somos uma força revolucionária com suficiente história, solidez e consistência para superar o falecimento de nosso Comandante-em-chefe, porque o mesmo nos instrumentou e contribuiu ao esforço coletivo de consolidação política e militar. O Secretariado, o Estado Maior Central, os Estados Maiores dos blocos e frentes, os comandos de todo nível, os comandos e combatentes das FARC-EP garantirão o triunfo”.

Palavras que parecem redigidas a propósito de sua própria morte, como se de seu próprio epitáfio se tratasse.

CAMARADA ALFONSO CANO!… MORRER PELA PÁTRIA É VIVER SEMPRE!

Montanhas da Colômbia, janeiro de 2012

SECRETARIADO DO ESTADO MAIOR CENTRAL

FORÇAS ARMADAS REVOLUCUIONÁRIAS DA COLÔMBIA – EXÉRCITO DO POVO (FARC-EP)

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)