Pactos de Moncloa: de novo a grande farsa?

imagempor Ángeles Maestro

Rodolfo Walsh diz que as classes dominantes procuraram sempre que os trabalhadores não tivessem história, nem teoria, nem heróis, que a experiência coletiva se perdesse e que cada luta devesse começar de novo. Quando as principais organizações das classes oprimidas se tornam cúmplices na amputação da memória, o desastre é muito maior.

Mais uma vez, quando se ouvem ranger os fundamentos da economia capitalista, os seus representantes políticos invocam o encantamento dos Pactos de Moncloa.

Numa recente aparição, o Presidente do Governo de Espanha, referindo-se à encruzilhada “histórica” que estamos vivendo, fez a seguinte declaração: “Essa unidade a que apelo deve ser transformada numa certeza: todos os partidos políticos vão trabalhar em novos pactos de Moncloa”.

Há alguns dias, o guru do El País, Joaquín Estefanía, dedicou a sua coluna de opinião ao mesmo assunto, com o pomposo título de O Compromisso Histórico Espanhol. É curioso, porque este ex-diretor do El País, durante os anos da Transição, foi membro da Organização Revolucionária dos Trabalhadores (ORT), que propunha “quebrar o Pacto da Moncloa” [1] . O próprio Estefanía escreveu um livro importante intitulado: A Trilateral Internacional do Capitalismo (o poder da Trilateral na Espanha ), publicado pela Akal, em 1979, e esgotado em poucos dias. Nele, analisou com nomes e sobrenomes as ramificações da Trilateral nos diferentes órgãos do poder institucional e comercial do Estado espanhol. Jesús Polanco, fundador do grupo PRISA, fez uma proposta ao jovem Estefanía, pela qual ele vendeu a sua alma: ser diretor de economia do El País em troca de não haver uma segunda edição do livro. Às vezes, Roma paga traidores. Jesús Polanco tornou-se membro da Trilateral em abril de 1982 [2] , provavelmente como expressão do apoio do capital internacional à vitória do PSOE, que ocorreria alguns meses depois.

O caso de Estefanía, como tantos outros (o mais conhecido é o dos cartões Black, do Bankia) é representativo da face oculta da Transição: o suborno de líderes políticos e sindicais da esquerda.

Os capitalistas apelam sempre a um pacto social quando as coisas não estão correndo bem para eles. Esquecem rapidamente o seu liberalismo e apelam à solidariedade, ao consenso e ao Estado. Não há dúvida de que a ideia luminosa saiu das fileiras do Ibex 35. Os Pactos de Moncloa foram o seu maior negócio (se não contarmos o golpe fascista de 1936). Na Transição, a vantagem é que os lucros não tiveram nenhum custo político. Pelo contrário. Como em qualquer grande pacto social, para o capital o benefício é duplo: consegue impor os seus objetivos e o inimigo de classe se autodestrói. E o PSOE, representante privilegiado da grande burguesia e perpetrador das agressões mais sérias contra a classe trabalhadora desde a Transição, agora está correndo para cumprir o seu papel.

A maior estupidez que a classe trabalhadora poderia cometer seria acreditar no que a mídia e, claro, o governo estão divulgando profusamente: que se o VOX não deseja novos Pactos de Moncloa, é porque eles são bons para os trabalhadores e trabalhadoras. Como já escrevi ao analisar a sessão de investidura [3], o grotesco da extrema direita serve como um espantalho preventivo, diante do que qualquer outra opção é considerada um mal menor.

Recuperar a memória

Diante de uma situação extremamente dura como a que se avizinha, os trabalhadores precisam recuperar a memória e analisar objetivamente o que esses pactos realmente significaram e o que aconteceu desde então até agora. E, acima de tudo, o que implicou deixar-se arrastar por falsos apelos à unidade, que significaram sempre retrocessos para nós (agora diretamente para o abismo) e ganhos para eles.

Nos Pactos de Moncloa houve um elemento-chave: o PCE, liderado pelo seu Secretário-Geral, Santiago Carrillo. O resto eram meras figuras decorativas, ao ponto de a Aliança Popular não os ter assinado e ninguém se lembrar disso; porque não importava. O objetivo central era domesticar o movimento operário poderoso, combativo e organizado que atravessava o território do Estado espanhol. Um movimento operário estruturado, em torno das Comissões Operárias, ou Comissões de Representantes, saídas das próprias assembleias de fábrica ou dos locais de trabalho e, portanto, enraizadas, para além das qualificações ou da ideologia, no conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras e garantidores de um dos elementos-chave da luta operária: a unidade de classe.

A força organizada daqueles que criam riqueza e possibilitam a vida tinha conseguido impor, através de lutas extremamente duras, com os sindicatos ilegalizados e centenas de sindicalistas na prisão, a mais progressista Lei de Relações Laborais conhecida.

E isso foi feito no meio de uma crise econômica. Chamo a atenção sobre isto porque, quando a Lei foi promulgada, em abril de 1976, a situação era muito semelhante à vivida no momento da assinatura dos Pactos de Moncloa, dezoito meses depois; no entanto, ao contrário dos Pactos, o seu preâmbulo não se refere à crise, mas às “aspirações legítimas dos trabalhadores”. A crise e os sacrifícios de “todos”, necessários para superá-la, são o mantra que se repete quando do que se trata, como agora, é impor novos cortes nos direitos e nas condições de vida.

A Lei de Relações Laborais de 1976 estabeleceu [4], entre outras coisas, que a natureza do trabalho determinava o tipo de contrato; isto é, todos os contratos eram indefinidos, com algumas exceções. Foram proibidas e sancionadas agências de colocações e de trabalho temporário; foi reduzido o dia de trabalho, a licença de maternidade foi prorrogada, etc. Mas, acima de tudo, as demissões sem justa causa foram regulamentadas de maneira favorável aos trabalhadores e às trabalhadoras. O Artigo 35 dispunha o seguinte: “Quando num processo de demissão o Magistrado do Trabalho considera que não há justa causa para o despedimento, na sentença que assim o declara, ele deve condenar a empresa à reintegração do trabalhador nas mesmas condições de antes da sua ocorrência, bem como o montante do salário não recebido desde o momento da demissão até que a readmissão tenha lugar”. Na seção 4 deste mesmo artigo, era proibido que a demissão fosse substituída por compensação financeira, salvo acordo voluntário entre as partes [5] . Este artigo foi essencial, como agora se vê, para combater as “listas negras” e a repressão sindical.

Esta lei é fundamental para desmontar o argumento central daqueles que assinaram os Pactos em nome da classe trabalhadora: que a correlação de forças não permitiu fazer outra coisa. Nesse sentido, é importante destacar que isso ocorreu contra a corrente dos restantes países centrais do capitalismo, onde os amplos direitos laborais conquistados pela vitória contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial (que era sobretudo uma guerra de classes) entraram em fase de demolição, com a picareta das políticas neoliberais.

Na Espanha, a correlação de forças na luta de classes era diferente. Apesar dos ataques extremamente duros no final da ditadura – os fuzilamentos de 27 de setembro de 1975, o assassinato de cinco trabalhadores e as centenas de pessoas baleadas e feridas em 3 de março de 1976 em Vitória, ou a matança dos advogados dos sindicatos em Atocha, em 24 de janeiro de 1977 –, a combatividade e a organização do movimento operário eram grandes e crescentes. Além disso, não se tratava apenas de ações trabalhistas. O movimento estava impregnado de conteúdos políticos de ruptura com o regime moribundo e de reivindicações de democracia e controle operário nas empresas. A força organizada da classe operária foi capaz de superar os ventos neoliberais que começavam a varrer as políticas sociais numa CEE [6] com poderosas centrais sindicais e um alegado paraíso dos direitos sociais.

Um ano e meio depois, os preceitos dessa lei ficaram em águas de bacalhau. Não houve mudança na correlação de forças, mas uma monumental traição da classe.

É curioso ler que o PCE defendeu os Pactos, argumentando que as medidas agressivas contra a classe operária não durariam mais de “um ano e meio”, o tempo para acabar com a crise, ou que a participação neles seria a maneira de evitar um golpe de Estado. Aconteceu exatamente o contrário. A crise continuaria a se aprofundar e, de fato, foi o grande pretexto para o novo golpe que viria com a cinicamente chamada reconversão industrial, e o barulho dos sabres tomaria forma em 23 de fevereiro de 1981. O saldo real e esmagador foi que, perante os dois acontecimentos, a classe operária já era muito mais débil.

O mais importante dos Pactos de Moncloa não foram as suas medidas concretas contra a classe operária: perda de poder aquisitivo dos salários, facilitação das demissões [7] etc., em troca de uma reforma fiscal tímida, muito abaixo da existente na Europa Ocidental e que, progressivamente, todos os governos foram mudando a favor do capital. Enquanto isso, como sabemos, a evasão e a fraude fiscal assumem proporções gigantescas.

A mudança qualitativa introduzida pelos Pactos de Moncloa e que os coloca como a pedra angular do retrocesso irreparável sofrido pelos direitos sociais e trabalhistas desde então até agora, é de natureza ideológica. Esses acordos plasmaram, com a assinatura daqueles que tinham maior influência entre a classe operária, a preeminência da lógica do capital sobre qualquer outra consideração e a aceitação da ordem capitalista como algo natural e permanente. Capitulou-se perante o dogma central do capitalismo: para que a classe operária vá bem, a prioridade é restaurar a taxa de lucro do capital e, em prol da competitividade, eliminar os obstáculos que se lhe opõem: acabar com a negociação coletiva, reduzir ao máximo os custos laborais e “flexibilizar”, tanto a contratação como a demissão.

Sob essa égide, e com um debilitamento progressivo (organizativo, político e ideológico), contrarreforma atrás de contrarreforma, corte atrás de corte, chegamos à tristeza da situação atual: com milhões de trabalhadores na miséria, mais de um milhão de jovens com altas habilitações na emigração, serviços públicos degradados e submetidos à lógica do lucro privado e a condições de trabalho da semiescravidão.

O balanço desses quarenta anos em termos de classe é tão óbvio que não vale a pena discutir. Os enormes negócios das privatizações dos bancos públicos e das empresas estratégicas de transportes, comunicações, energia etc. são as grandes fortunas do Ibex 35, monopólios que, por sua vez, estão em grande parte nas mãos dos grandes bancos.

A exploração e a miséria de milhões de trabalhadores (12 milhões em situação de extrema pobreza) estão escondidas sob números ultrajantes. Enquanto os lucros empresariais dos grandes monopólios registraram um crescimento de 60% nos últimos anos, o salário médio sofreu uma perda de poder de compra de 133 euros por ano.

E, nestas condições, falam-nos de Pacto Social? Que mais querem roubar?

Não convém nos enganar. Nas crises, o investimento de capital diminui e há até uma fuga maciça de capital como a que já está acontecendo (eles são tão patriotas) porque não veem possibilidade de recuperar a taxa de lucro. E o investimento não regressa até um “saneamento” (isto é, a destruição de empresas fracas, principalmente pequenas e médias empresas) e condições mais favoráveis de exploração da mão de obra.

Por fim, quando, tanto o governo como o BCE colocam o poder de decisão sobre os fundos públicos nas mãos de bancos e grandes empresas, estes não serão usados apenas para se resgatar a eles mesmos, mas também os seus interesses se opõem à salvação das dezenas de milhares de pequenas e médias empresas, de que dependem milhões de trabalhadores.

Não insistirei aqui na mesquinhez das ajudas diretas do governo, comparadas com as aplicadas por outros governos, e na sua passividade vergonhosa de intervir nas empresas privadas, mesmo quando a situação assume implicações dramáticas na saúde pública. Tudo isto dá uma ideia do que não se pode esperar deste executivo de coligação consigo mesmo, ou se, como poderia acontecer, alguma das três direitas acabe por ser incorporada na tomada de decisões.

Não podemos continuar a ser vítimas do círculo vicioso que nos amarra desde a Transição: fugir do PP para que o PSOE governe, e depois de verificar que estão praticando as mesmas políticas, seguir o mesmo caminho em sentido contrário.

Quando a situação é tão dramática como a que vivemos (e sabemos que a que está para vir será muito pior), não podemos permitir que o caos e a barbárie continuem a imperar.

É intolerável que os mecanismos repressivos prevaleçam no confinamento (com o horror de ver diariamente os representantes do exército, da guarda civil e da polícia prestando informações sobre a evolução da pandemia) enquanto a produção de bens não essenciais é mantida para maior glória do capital e condenando a uma evidente sobremortalidade nos territórios onde se concentra a classe operária, forçada a trabalhar com o risco da sua vida [8] .

Não podemos permitir que permaneça impune o desmantelamento dos serviços públicos de saúde, que está causando a escandalosa falta de atendimento e centenas de mortes perfeitamente evitáveis. Porque essa deterioração, perfeitamente planeada pelos departamentos de saúde, têm responsáveis concretos que têm defendido a superioridade da saúde privada, permitindo a entrada maciça de capital privado (incluindo fundos abutres) na gestão com fundos governamentais de saúde pública [9] e reduzindo e precarizando a extremos inconcebíveis as condições de trabalho do pessoal.

É uma irresponsabilidade enfrentar a catástrofe social e econômica que se avizinha, permitindo que a oligarquia financeira e monopolista continue a impor a sua lei de fome, doença e morte.

Precisamente, o desastre atual é o resultado de uma esquerda fraca e covarde que, sob o eufemismo do pacto social, passou a aceitar a ditadura do capital, tanto mais selvagem quanto mais se debilita a classe operária. E ainda estão justificando o seu incessante gotejo de concessões com o argumento de uma “correlação adversa de forças”, a qual, curiosamente, essa mesma esquerda contribuiu para alimentar, paralisando mobilizações e bloqueando mensagens combativas.

É hora de enfrentar a situação a partir de perspectivas diferentes. De posições que, necessária e inevitavelmente, precisam enfrentar a lógica do capital.

Não há outra: ou se salva o capital ou se salva o povo. Resolver este dilema é uma questão de poder. Nesse sentido, o que a Red Roja propõe não é um plano de choque dos muitos que estão sendo propostos como petições ou exigências dirigidas ao governo, e que podem muito bem ser compartilhadas, mas que não possuem, nem consideram, o poder político para as realizar.

O apelo da Red Roja coloca a necessidade de mudar radicalmente a abordagem e construir um poder alternativo, baseado na hegemonia da satisfação das necessidades sociais, que necessariamente tem de romper com a ordem existente, e que tenha o povo no posto de comando [10] .
01/Maio/2020
[1] elpais.com/diario/1977/11/02/espana/247273207_850215.html
[2] elpais.com/diario/1982/04/17/economia/387842406_850215.html
[3] redroja.net/…
[4] www.lahaine.org/est_espanol.php/el-hundimiento-del-engranaje-de
[5] www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1976-8373
[6] Comunidade Económica Europeia
[7] O empresário tinha a liberdade para despedir 5% do pessoal se a luta dos operários o obrigava a romper os tetos salariais estabelecidos pelos Pactos de Moncloa.
[8] elpais.com/espana/
[9] Em 1997, foi promulgada a lei que permitia a administração por empresas privadas de todos os tipos de hospitais, centros de saúde e centros socio-sanitários “públicos”. Obviamente, o financiamento é sempre público. Foi aprovado no Congresso dos Deputados com os votos do PP, PSOE, PNV, Coligação Canária e Convergência e União. Uma análise das consequências da lei acima mencionada pode ser vista aqui. Maestro. A, ” Lei 15/97: a arte de confundir-se com a paisagem”. www.diagonalperiodico.net/cuerpo/ley-1597-arte-confundirse-con-paisaje.html
[10] redroja.net/…

[*] Médica, dirigente da Rede Roja, Red Roja@MaestroAngeles

O original encontra-se em blogs.publico.es/… e a tradução do castelhano em
pelosocialismo.blogs.sapo.pt/pactos-da-moncloa-a-grande-burla-93294

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .